O pecado da gula
Quando Deus fez o Homem dotou-o dos atributos indispensáveis para a sua sobrevivência: olhos para ver, pernas para andar, braços para executar, boca para comer e sexo para se reproduzir e software para programar. Mas o homem, dotado de espírito inventivo, depressa ultrapassou o seu Criador e deu aos seus componentes outras funções, sem que se mostrasse agastado. Foi assim que a boca foi usada para morder, mordiscar, beijar, enfim, apenas tendo como limite a imaginação. Mas tendo a boca como função primordial comer, não deixa de ser irónico, que desde tempos imemoriais lhe seja atribuído, o pecado da gula.
Esse pecado tomou na Idade Média proporções preocupantes. As restrições ao consumo de carne assumiam, na Quaresma, o seu expoente total. Proibição absoluta. Contudo, como não há regra, sem excepção, logo os propostos representantes da divindade criaram a Bula, uma forma de dar liberdade gastronómica a quem pagasse uma taxa ao poder eclesiástico. Eu, que sou apenas um simples mortal, sem acesso às fontes divinas, acho, nessa qualidade, que o perdão do pecado a troco de vil metal é apenas coisa da humana realidade.
Reflectindo sobre o assunto acho que tem uma explicação lógica. O que os clericais pretendiam era proteger os seus semelhantes de doenças escondidas nos alimentos processados com carne. E se alguns tinham condições para comprar Indulgências, a maioria não adiantava comprá-las, porque depois não tinha dinheiro para comprar comida. É certo que os mais endinheirados, incluindo o alto clero, o poderiam fazer, mas decerto o evitariam como pessoas bem informadas. A saúde do povo estava garantida. Poderia morrer de fome, mas nunca de doenças cancerígenas. O céu estava garantido.
A proibição religiosa acabou por passar à história, mas os fundamentalistas do cientifismo, herdeiros genéticos do passado e usando o software recebido da divindade, chegaram à mesma conclusão que os fundamentalistas da igreja medieval: carne processada ou desprocessada, especialmente de cor vermelha, manda-te desta para melhor. Ou seja, se abrires a boca a iguarias carnívoras, podes morrer, mas se deixares de comer morres seguramente. Triste dilema.
Portanto coma. Use a boca como bem entender. Esqueça o pecado religioso ou científico. Cumpra o plano divino. Use os instrumentos corporais de acordo com o plano divino. Não ponha em causa a máxima, "crescei e multiplicai-vos". Faça sexo em segurança. Procure não cair da cama. Coma com moderação. Faça da refeição um prazer e não uma tortura. Saboreie uma posta mirandesa, regada com um vinho de boa cepa. Não se esqueça, Nas bodas de Canaan Jesus transformou a água em vinho. In vino veritas. E na sua pregação está a palavra mas está também a boa comida. Siga o exemplo.