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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

23 Mar, 2016

O morto-vivo

A trágica notícia chegou em carta manuscrita no correio da manhã. Clotilde Cavaco abriu o envelope surpresa, tirou a folha de linhas e começou a ler. De repente mudou de cor. Do rosado ao branco passando pelo roxo o seu rosto gastou todas as cores do arco-íris. As pernas recusaram-se a segurar o corpo em abalo sísmico. Espalhou-se pelo chão como um baralho de cartas em mão de batoteiro.

Aparecido Cavaco o irmão caçula saiu detrás do balcão onde pesava uma barra de sabão macaco para a Maria parda e correu a socorrê-la, Um copo de água, gritou. Helena atirou o filho encueirado para dentro da alcofa de palha, pegou no púcaro e de uma lata de Zinco serviu-se da água milagrosa do poço velho. Mais lívida que a cunhada esparramada no chão de ladrilhos vermelhos entregou o púcaro de alumínio ao atarantado consorce. Uma chapada de água trouxe Clotilde do seu apagão ao mundo real.

Maria Helena apanhou o papel de carta do peito arfante da desmaiada e começou a soletrar em voz balbuciante, Querida mãe, espero que se encontre bem de saúde, que eu quando esta receber já não devo estar vivo…

Enquanto ajudava a atarantada irmã a retomar os cinco sentidos, Aparecido ia tomando conhecimento da desventura do sobrinho. Que aconteceu ao adão? Desgosto de amor? Não, pior, continuou Helena com voz embargada, Como a mãe sabe chegou o dia de ir às sortes e para me apresentar a bom geito como todos os moços que lá vão mandei fazer um fatinho sem luxos no alfaiate aqui da vila, querida mãe o meu patrão, senhor Josué Salazar não me pode pagar a semanada e não tenho dinheiro para levantar a encomenda e mestre Cunhal não fia, não posso passar pelo vergonha de ir mal vestido, prefiro desaparecer deste mundo tão madrasto. Adeus mãe, mesmo morto gosto de si. A má nova correu célere pela voz da regateira mor, espécie de pasquim dos tempos idos, a Maria parda: O adão está morto e bem morto, digo-o eu que ouvi com estes que a terra há-de estar muito sem os comer.

Clotilde, recuperada, rompeu num pranto inconsolável. Aparecido tentava desesperadamente acalmá-la, Mulher aquieta-te, se conheço bem o teu filho e também, que gaita, meu afilhado, não está morto porra nenhuma…eu…eu vou tratar do assunto. Vou cuidar da mortalha, disse em tom irónico.

Montado na sua motoreta Saches,, saiu roncando num rasto de fumo cinzento de tristeza e dor. Já o sol do meio dia tinha engolido toda a sombra das ruas poeirentas da terra mãe de adão quando chegou à casa da Senhora Claudina, posto misto de registo civil , correio e bate-papo, o esperado telegrama. Clotilde não teve coragem para o abrir. A Claudina colocou as lunetas e Senhora do seu nariz, abriu com esmero perante a impaciência geral o pardo papel .Leu-o com a sua voz bem timbrada: está vivo de boa saúde.

Já o sol se começava a esconder-se atrás dum serro, depois de um dia de trabalho a amadurecer searas quando chegou a camioneta da tarde Do seu bojo de lata pintada e onde se lia a união faz a força, com a cedilha comida pelo tempo, saíram os moços das Sortes do ano em que tivemos um general sem medo. Alegres e bem aperaltados vinham acompanhados pelo tocador de concertina que iria abrilhantar o baile comemorativo dos novos soldados da nação. O mais ousado puxou da pederneira e com uma faísca certeira acendeu a bolsa de pólvora dos irrequietos foguetes, pum pum , pum.

Só então, enfiado no seu fato de ver a deus saiu algo envergonhado mas garboso o infeliz adão, recebido com abraços de alegria como se tivesse chegado de outro mundo. Os foguetes subiam na quietude da tarde e ribombavam assustadores para a passarada que formou uma nuvem de asas negras em direcção a outros horizontes.

A moçada que comparecera em força para receber os novos bravos do pelotão, gritou num coro afinado: viva o morto vivo.