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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Já não me espantam as contradições da natureza humana. Do mesmo modo aceito, naturalmente, as minhas. Antes angustiava-me com a ida ao dentista. Agora espero, ansiosamente, que chegue o dia. Chego até, como imitação daqueles relógios que contam os dias ao contrário, a riscar os dias no calendário. E isto desde que a doutora Isabel, a minha dentista, ficou viúva. Ao contrário do que mentes invejosas possam pensar, o meu interesse, garanto, que se limita a prestar solidariedade, a uma alma  destroçado pela perda do marido, apesar da sua reputada infidelidade. É certo que a doutora é também licenciada em partir corações, e muitos devem andar alvoroçados, mas isso não pode ser a motivação de um bom samaritano.

Quando entrei na sala de espera o meu coração, de bom samaritano, batia aceleradamente.Tive de respirar profundamente para diminuir a ansiedade. A recepcionista do sorriso brilhante informou-me:

-A doutora ainda não chegou. Depois baixando o tom, como quem revela uma inconfidência sussurrou "continua a ter problemas relacionados com o ex-marido. Partiu mas deixou os sarilhos". A conversa foi interrompida pela chegada da dentista. Reparei no mesmo porte de fazer parar o trânsito, mas a expressão denotava alguma tristeza inesperada. Enquanto me dirigia para o consultório a frase "partiu mas deixou sarilhos" perseguia-me como um fantasma.

-Boa tarde doutora.

Manteve o rosto fechado e um olhar que parecia ausente daquele local. Em fracções de segundos passaram-me pela imaginação os mais desvairados absurdos.

-Boa tarde, disse secamente. Sente-se. Vamos então fazer os moldes?

-Foi para isso que cá vim.  De certo não se esqueceu?

-De maneira nenhuma. Desculpe-me mas hoje não estou nos melhores dias...

Notei que procurava ultrapassar a frieza inicial

...recebi uma notícia...que me dilacerou e ...

Senti que estava com dificuldade em articular as palavras, que lhe saiam tão pesadas como chumbo. Recorri à lugares comuns de psicologia de café:

-Mas doutora sou seu paciente à muito tempo, comungamos algumas coisas, como a paixão clubista, e isto na vida acontece o mesmo que no desporto, um dia perde-se, noutro ganha-se. Se tem a ver com o assassínio do seu marido, a vida continua...

- São assuntos pessoais. Vamos ao que interessa.

Acomodei-me na posição que me determinou, e num último olhar, não pude deixar de apreciar a beleza de um rosto  prisioneiro da melancolia. As suas mãos enluvadas davam a sensação que recusavam executar a tarefa. Um tremor contínuo atrapalhava a feitura dos moldes.Parecia que uma raiva contida se descarregava de forma involuntária. Respirou profundamente.

-Vamos parar, disse, mostrando alguma serenidade. Fiquei aliviado. Com tanto instrumento de tortura à mão estava a sentir-me em maus lençóis. Nunca se sabe quando alguém, mesmo com cara angelical. perde o controle.

-Hoje, continuou, não consigo concentrar-me. Nem que fosse de ferro conseguiria aguentar. Quem conseguiria depois de saber que uma amante do Ernesto declarou que tem um filho dele e que o vai propor como herdeiro. E ainda acrescentou que tem estudo confirmado de ADN. O meu marido partiu mas esqueceu-se de levar os sarilhos.

Despejou este discurso num jacto, como se aliviasse o estômago de incómodo repentino. Talvez não pretendesse fazê-lo perante um paciente, embora velho conhecido. Contudo, há momentos em que os filtros pessoais, sofrem tão grande impacto, que se rompem inesperadamente.

-Tudo bem doutora. O meu dente pode esperar. O que é preciso é que tudo se resolva da melhor maneira. Foi o que consegui dizer, com a certeza que era uma banalidade sem sentido. Mas que poderia dizer? No fundo, de uma ou de outra forma, resolver-se-à. E então voltarei ao consultório onde espero encontrar a bela dentista a fazer jus à sua beleza e à sua competência.

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