Descalço
Durante a minha infância a pobreza era assumida como um destino. Mais pobre que os pobres, da aldeia onde nasci, era o Descalço, caldeireiro itinerante. Em tempos de apologia da pobreza e de concretização de um processo de empobrecimento como um objectivo necessário e até como um castigo para os portugueses, aqui presto justa homenagem ao Descalço, esteja onde estiver. Nesta sociedade condenada, pelos seus principais dirigentes, à pobreza sem fim, os "Descalços" vão começar a multiplicar-se, perante a apatia geral. Este povo transporta consigo, os genes da subserviência, numa postura de descalços de dignidade.
Descalço nasceu pra vida
descalço continuou
sapatos nem de defunto
nunca nos seu pés usou.
Num saco de linho sujo
trazia a sua existência
um prato, um copo de vinho,
e a sua competência.
A sua casa era o mundo
dormia em lençóis de nuvens
tapado com raios de sol
vestido de vagabundo
num andar de girassol.
No adro da velha igreja
exercia a profissão
remendava uma panela
velha na sua função,
numa chapa de metal
desenhava um belo peixe
para a sua refeição;
envolto em manta de vinho
deitava o sono no chão
fosse inverno ou fosse verão.
Partia como viera
até um dia voltar
o nome que mãe lhe dera
não sabia soletrar
nem na forma de sonhar.
Descalço nasceu na vida
sapatos nunca rompeu
saiu sem despedida
e nunca mais apareceu
foi numa rota perdida
ou
descalço foi para o céu