Aventuras e desventuras com a cara metade
Fui com a cara metade à capital. É sempre um prazer visitaresta Lisboa de Costa, remoçada e reinventada sem perder a sua genuinidade. Os sentidos agradecem as sensações que a cidade proporciona. Os cheiros, os sabores, as imagens inebriam por mais que a visitemos. Lisboa é hoje como há quinhentos anos uma cidades de desvairadas gentes de estranhos falares. Respira-se alegria nas suas ruas carregadas de simbolismo.
Os olhares perdem-se e encontram-se em olhares de todos os tons, resvalam por corpos dengosos, seminus, cantando hossanas às bênçãos da temperatura estival. E não fora a cara metade, sempre vigilante, de certo me perderia em êxtases sem limites. Assim perante o respeito pelos sagrados laços em que me deixei enredar, refugio-me na imaginação de contos de mil e uma noites.
Na hora de maior calor repousei num centro comercial da cidade. Por momentos, separei-me da cara metade e senti que regressava às origens de plena liberdade. Circulei então como um jovem ancião ou vice-versa, tirando partido do falso e dissimulado estatuto de passarinho fora da gaiola.
Sol de pouca dura. Se o mundo é pequeno, um centro comercial, por maior que seja, é claustrofóbico. Vai não vai lá tenho a cara metade à perna. "Já te telefonei seis vezes e não me atendestes, disse em tom recriminatório". Confesso que não ouvi o telemóvel. Aliás verifiquei que o som estava no zero. Juro que não sei como aconteceu. A minha relação com esta tecnologia deixa muito a desejar.
-Afinal já me encontraste, retorqui. E não entendo qual é o grilo. Já não tenho idade para me perder. A não ser que me perdesse com alguma cara linda. Ou será que imaginas que teria ido com ela para outros horizontes? Vontade não me falta. O problema é não haver cara linda, apenas linda e sem ser cara metade.
Para ser honesto não garanto, com fidelidade, se disse o que disse, ou apenas pensei que o devia dizer. Enfim lá regressamos ao nosso passeio conjunto de mão dada, talvez para evitar que alguém ficasse só com meia cara. E logo voltava a tarefa de andar à procura da metade perdida. No fundo é esta a nossa sina. No fundo será que gostamos de viver neste contentamento descontente?
Quando puder volto a calcorrear as ruas da capital. É um vício assumido. E sendo um passeio recorrente é sempre uma nova experiência. Mesmo com a cara metade. E acredite ou não, tudo volta à estaca zero. E a história poderá ser outra, mas também poderá ser a mesma. Aconteça ou não. Tudo culpa da liberdade da imaginação, que se recusa a andar com cara metade.
MG