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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Escrevi este texto depois da última consulta do dentista. Hoje recuperei-o por que chegou a altura delá voltar. Estou num estado ambivalente. Para além do stress de ocupar aquela cadeira, estou em pulgas para saber se a minha dentista foi acusada do assassinato do marido ou se a vou encontrar remoçada para nova aventura. É que ela ainda vira a cabeça a muito sedutor carente. 

 

Chegou o dia de ir ao dentista. A cadeira do dentista é para mim a tortura made in século XXI. Estou convicto que se Torquemada andasse por aí, com acesso a tal instrumento acabava com os hereges em três tempos. Mas a verdade é que não anda, pelo menos até ver, pois como as coisas estão  não sei não. Enfim, tem que ser tem que ser. Porém não me armo em herói e confesso que vou transido de medo. Bem se alguém não vai, com medo, para essa cadeira, que atire a primeira pedra. Pela minha parte, preparo-me o melhor que sei: faço um retiro espiritual, invoco todos os santos, enebrio-me de pensamento positivo e à cautela tomo um xanax. Depois, entrego-me nas mãos da minha dentista, que as mulheres agora estão de corpo e alma em todas as profissões.

 

A minha dentista é a doutora Isabel Alçada. Para o caso o nome tem pouca relevância, mas aproveito para aplicar umas técnicas que aprendi num seminário de escrita criativa. A doutora para além da competência em bem manejar as brocas e outros instrumentos picantes, tem uma indisfarçável paixão por um clube de futebol com o qual também me identifico. Para não ser ostracizado por algum leitor, não vou dizer se somos benfas, lagartos ou "dragons" carago. O que digo é que temos grandes bate-papos a propósito. Ela descarrega a tensão e a pressão de mais uma jornada e eu dou-lhe corda e vou adiando a hora da broca me perturbar a paz bucal. E entre golos falhados, bolas no poste, juízos de árbitros acima de qualquer suspeita (gatunos) remato, para impressionar, que o futebol moderno vive menos de tácticas e mais de dinâmicas, coisas que aprendo com os comentadores de futebol. Remato mas sempre ao lado que a doutora está sempre à defesa e não me deixa marcar nem um golito. Adiante, que já vou na linha doze  e ainda não se passou nada que agarre o leitor. Nem um "enrolanço" repentino, na cadeira, com a doutora, na altura em que entrava de surpresa o eventual companheiro e que me dava uma surra de criar bicho e me partia o resto dos dentes sãos.  Nem sequer aconteceu uma tentativa de assassinato da dentista por um cliente tresloucado. Vontade não tem faltado, a chatice é que ela é de carne e osso e não uma personagem de enredo literário. Nem sequer se sabe da densidade da personagem, ou se é loura ou morena. A continuar por este caminho já tinha chumbado em escrita criativa

 

Assim que entro no consultório, sou informado pela assistente, que a doutora teve que se ausentar. Aí pensei, hoje é o meu dia de sorte. Pensamento não era completado e já a solícita assistente me informava sem deixar cair o verbo: -a doutora fez uma escapadinha mas deixou uma substituta e está à sua espera senhor José, concluiu. Uma vez que a assistente identificou o narrador, que queria ficar incógnito, vamos enfrentar a nova torturadora. Enfrentei-a de nariz empinado para não dar parte de fraco. Cumprimentou-me com um sorriso tímido. -Chamo-me Ana Maria Magalhães e estou a substituir, provisoriamente a Isabel Alçada. Então qual é o problema? Abri a boca e mostrei-lhe a cratera que me dava a imagem de anti-drácula. -Ainda se pode fazer alguma coisa doutora? Pouco, respondeu. Foi apenas o que lhe ouvi dizer. Depois, só se ouviu o som dos instrumentos num frenesim ininterrupto. Não sei se a doutora substituta sofre por algum clube, se é apoiante do governo ou se tem página no facebook. Estava ainda embrenhado nas minhas especulações quando a dentista voltou a falar: -Já tem de novo o seu dente. Não vi. Os dentistas não têm, como os cabeleireiros, um espelho para mostrar a obra. Uma falha. Mas senti o buraco tapado e pareceu-me boa a reconstrução. Antes de sair arrisquei perguntar: quando volta a doutora Isabel Alçada? No seu estilo economizador de palavras disse: -quem sabe? Está presa preventivamente. Foi considerada arguida na morte do marido. Questões passionais. Bolas, agora que a aventura acabou é que aconteceu algo capaz de fazer progredir a história...