9-A minha vida não dava um romance
Aforismos e sarilhos
Como se diz na gíria, sou um pouco bota de elástico. Não consigo integrar-me nessa modernice do casa descasa. Tenho feito o possível por manter um casamento que desejei, e que tem passado por fases melhores e piores. Quando o Zé começou a trabalhar no ensino nocturno, com a tanga que queria ganhar mais uns trocos, cheirou-me a conversa fiada. O que me pareceu foi que procurava novas paisagens. Ainda pensei em comprar uma gabardine mais moderna, mas concluí que o problema não estava no embrulho e deixei andar. Em má hora. Quando acordei já o Zé andava meio enrolado com uma cabra sem vergonha, armada em leoa. Digo-o porque me meti a caminho e descobri que a fulana se transportava num carro de alta cilindrada com o símbolo do leão, que lhe tinha oferecido o paizinho, aquando da conclusão do curso. Há gente assim. Nasce com a bunda (e que bunda) virada para a lua. Tinha chegado a hora de agir. In extremis consegui salvar o Zé das garras da predadora. Mas sabia que a situação não estava resolvida. Depois daquela noite quente e luarenta, a solicitar amores, perguntei ao meu homem:
-Então pá, indo directo ao assunto, o que fazias, altas horas, com a gaja da mini-saia?
-Afinal agora deu-te para ciumar? Já te disse que a acompanhei para não ir sozinha aquela hora tardia. O que tem de mal? A noite estava agradável e ficamos a falar de assuntos comuns, nomeadamente de futebol, pois somos ambos do clube do leão.
-Tá bem abelha, cantas bem, mas não me alegras, foi o que me apeteceu dizer-lhe, mas contive-me. Não era a altura de atirar lenha para a fogueira. Fiz-me de peixe morto, e encerrei aquele diálogo. Sabia, porém, que o caso não estava terminado, e já tinha bolado o meu plano. Ia procurar a tipa, confrontá-la, e pôr os pontos nos is, nos esses e em todas as letras que precisassem de ser pontuadas. Sei que sou discreta e tímida, posso até parecer uma mosca morta, mas se me fazem chegar a mostarda ao nariz, viro fera e não há leoa que me pare. Conhecia-lhe os hábitos e sabia onde devia encontrá-la. Estudei ao pormenor como iria enfrentá-la. Tinha a meu favor o factor surpresa.
-Bom dia. Posso interromper o seu pequeno-almoço por uns minutinhos? Sou a Maria Alice mulher do Zé, seu colega, do ensino nocturno.
-Sente-se, disse secamente e com um sorriso muito amarelado.
-Falando mal e depressa vim aqui gastar o meu precioso tempo, para te dizer (tinha chegado a hora de endurecer o discurso) que o meu marido, com papel passado, não está disponível para desmamar pitas de pernas ao léu. Se ainda precisas de chucha, procura outro, que há por aí bastantes gajos bem melhores. Se não fosses cega tinhas visto que o homem já está um pouco usado. De facto até é competente mas não o tenho poupado. Além disso aturo-o há cerca de dez anos, e também me deve algumas rugas, mas ainda dou conta do recado, não preciso de muletas. Portanto espero não voltar a encontrar-te a propósito, porque pode fiar mais fino. Se for preciso dou-te um estalo nessas fuças de lambisgoia. Faço-me entender?
Naquela pequena pastelaria, com venda de pão, éramos os únicos clientes sentados. Pessoas sonolentas, entravam e saíam, depois de fazer as suas compras. Esforcei-me por falar num tom calmo para não chamar a atenção. Nem a menina bem nutrida, e de grandes óculos de abelha, que estava atrás do balcão se apercebeu da baixaria. Dito o que tinha ensaiado, levantei-me e saí discretamente.
Como acontece, muitas vezes no teatro, a um bom ensaio não corresponde uma boa estreia. Tinha estudado até ao pormenor o que queria dizer aquela desavergonhada, mas na hora da verdade passou-se tudo ao contrário. Por cima da porta onde me encontrava nervosa e insegura lia-se “Pastelaria Lua-de-mel”. Enchi o peito de ar e entrei. Atrás de um balcão corrido uma garçonete bem nutrida atendia clientes com ar apressado. Ao fundo, sentada numa mesa de fórmica estava a razão do meu martírio. Aproximei-me e perguntei:
-É a professora Mercedes? Eu sou a Alice mulher do seu colega Zé, do Ensino Recorrente. Podia dar-me um minuto de atenção?
-Concerteza…o que se passa com o Zé?
-Sinto-me um pouco constrangida em abordar o assunto e nem sei bem como começar. Não tinha conhecimento que o Zé era casado? Perguntei.
-E tinha que saber? Nem ele me disse, nem eu lhe pedi o bilhete de identidade. Somos colegas de trabalho e costumamos falar sobre coisas sobre as quais temos afinidades, como futebol ou política por exemplo. Mas a que propósito me faz a pergunta?
Titubeei . Depois de um silêncio comprometido disse:
-Eu conheço o Zé há muitos anos e mantivemos uma boa relação até ao período que coincide com o seu trabalho nocturno. Chega cada vez mais tarde a casa com reflexos no nosso relacionamento. Também sei que certos homens escondem o seu estado civil para fazer conquistas amorosas…
-Creio que percebi. Se quer saber se andamos enrolados, não andamos. O Zé é um cavalheiro que me tem acompanhado a casa a uma hora bastante tardia. Simplesmente. Sabe o que lhe digo: vim substituir uma colega que está com licença de maternidade. Tenho um horário cheio de buracos, trabalho em todos os turnos. Brevemente, volta a colega, e vou pregar a outra freguesia, mas não pense que sou uma espécie de marinheira com homens em todos os portos, nem tenho um íman entre as pernas para atrair machos. Tenho mais que fazer.
Alguma verdade haveria naquelas palavras mas não me convenceram. A afirmação que iria partir em breve deixou-me mais sossegada. Evitei pôr mais na carta. Encerrei a conversa: “
-Não ponho em causa a sua seriedade. Como mulher, deve saber, que os homens podem parecer uns santos mas, às vezes, perdem a cabeça com qualquer rabo de saia. Peço desculpa pela minha insegurança e aceito o seu esclarecimento.
Após a o diálogo com a Maria Alice sobre a Mercedes o assunto ficou encerrado. Ela partiu para novos horizonte e eu terminado o contrato dei por finda a minha aventura no ensino. Como se previa, a Alice engravidou, como tanto desejava. Começou com uns enjoos matinas e continuou com a barriga a crescer. Apesar do mal-estar a Maria Alice andava entusiasmada. Eu não tanto. E muito menos o fiquei quando ela fez a primeira ecografia. Para espanto meu em vez de um estavam lá dois. Isso mesmo. Naquela barriga viviam gémeos e como diz o ditado não há fome que não dê em fartura. Fazer o quê? Tristezas não pagam dívidas. Aguentar e cara alegre.
-Da barrigada de aforismos saiu o Pedro e o Paulo, que nascendo da mesma fornada tinham sido gerados de óvulos diferentes. Daí que se apresentassem ao mundo com caracteres físicos opostos. Enquanto o Pedro era magro, o Paulo tinha tendência para a obesidade. E se o Paulo adornava a sua face de anjo querunbim com uma cabeleira loira, o rosto comprido e seco do Pedro estava encimado por uma melena castanha e áspera. Estes traços exteriores tinham correspondência na personalidade.
Desde muito novos que as diferenças comportamentais se começaram a notar. Nos primeiros anos tivemos trabalho redobrado. No fundo, eram duas bocas a protestar por insondáveis razões: fome, frio, calor, alegria, mal estar, tristeza e sabe-se lá o quê? O livro de instruções nunca é preciso nem claro. Tive de abandonar o trabalho no ensino para dar apoio à Maria Alice. Muitas noites dormíamos por turnos. Até na empresa comecei a marcar passo e a minha provável chegada ao Conselho de Administração ficou pelo caminho. Mas ainda bem. Lá me teria cruzado outra vez com a sempre menina Maria Ana, secretária do Conselho, depois de ser unha com carne com Presidente, um ancião que pintava, regularmente, o longo cabelo embranquecido.
Na adolescência as diferenças evidenciaram-se. O Pedro concentrado na sua formação era um mouro de trabalho. A carreira estava à frente de tudo. Nem um namorico tinha no seu currículo. Mais tarde apercebemo-nos que se tratava de opção de vida. Formou-se em veterinária. Vive num casarão rodeado de animais e recebe ajuda de um amigo. Adoptou duas crianças, uma veio da Ásia e outra das antigas colónias portuguesas. O Paulo foi um pouco mais problemático como se dizia. No polo oposto, levava uma vida boémia. Gostava de experiências sociais. Passou pelas drogas leves e por noitadas de música e álcool. Quando conseguiu terminar o curso de informática, integrou-se numa empresa de telecomunicações, casou-se e estabilizou. Mas por pouco tempo. O que ele gosta de fazer é pintar. Tem alma de artista. Fez uns cursos de artes visuais e montou um atelier no apartamento. Tem passado a maior parte da sua vida de baixa médica. Sofre de ataques de pânico. Apenas nos pincéis encontra tranquilidade. Já tem três filhos todos de mulheres diferentes. Tem mesmo alma de artista.
Quem tem filhos tem sarilhos. E uma vez iniciados nunca mais acabam. Eles vivem a sua vida mas as preocupações e os trabalhos continuam. A nossa casa agora é uma espécie de Creche. Mesmo aposentados não há descanso para os guerreiros. Especialmente para a Maria Alice. Quem corre por gosto não cansa. Mas cansa, cansa.
Continua