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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

I Guardador de rebanho

 

O meu nome é Zé. Um Zé Qualquer. É assim que me chamam na minha já longa vida, apesar de longa ser um eufemismo ou um lugar comum, como preferirem. A vida não é longa coisa nenhuma. Nunca chega para fazermos tudo o que gostaríamos de fazer. Deixemos especulações e voltemos ao fio da narrativa.

Chamo-me Zé, mas já me chamaram muitas outras coisas. Filho da puta, grande cabrão, parvo de merda, nabo do carago(foi mais na tropa quando não acertava o passo com a carneirada) e outros mimos que não vêm ao caso. Nem estes nem outros, que são desvios à narrativa central.

Diz-me como te chamas e dir-te-ei quem és. Zé, está na cara, é nome de pobre, que nem sempre de pobre diabo. Da barriga da mãe de onde saí, saíram aaí maís onze se a memória não me atraiçoa. Como se vê não havia recursos para nomes pomposos. O meu pai gabava-se, na venda do Zé d`Alzira, entre um copo de três e um jogo de sueca, que cada vez que tirava as botas e ficava em ceroulas, metia mais um na “fábrica” da mulher. E dizia-o com propriedade, pois recordo-a ou prenha ou a parir. Da outra variante não tenho lembrança, que nas duas camas disponíveis a lotação estava esgotada e alguém tinha que pernoitar no palheiro.

Lembro-me, isso sim, de ver zés e marias acabadinhos de chegar . Uma vez, por mero acaso, até vi atravessar a porta de saída creio que da Maria dos Remédios. (ou seria a Maria da Consolação?) Foi durante a ceifa, num dia em que o estio mostrava a sua verdadeira face. Era como se o inferno tivesse descido aquele outeiro.

lembro-me

A minha mãe gritou “ áuguas”. E eu larguei o molho de trigo e na minha inocência juvenil corri a buscar a infusa onde estava água para da canícula. Quando cheguei já ali estava uma nova Maria,

da Encarnação?

O meu pai a gritar, e a cortar o cordão com a foice, “ não é da infusa que precisamos mas do alforge para deitar a tua mana, grande burro” (aí está). E lá montamos a minha mãe, na lindinha, a burra cinzenta, com a Maria de regresso a casa. E durante esse verão, pelo menos, a mãe não voltou à ceifa. Sim que entre uma e outra "parição" e uma outra amamentação a mãe ainda ajudava nas lides do campo, quando a faina apertava.

No espaço que sobrava entre guardar a vaca, duas ovelhas, e uma cabra, comecei a ir escola. Tinha que ir porque era obrigatório. Foi lá que comecei a conhecer o mundo para além do horizonte curto da aldeia. Foi lá que percebi aquele mistério da crucificação de que ouvia falar na catequese, em que Jesus tinha sido crucificado ao lado de dois ladrões. Ali estava, à nossa frente, a representação da cena com o crucifixo, no meio dos ditos ladrões.

tão verdade como me chamar Zé

O senhor professor que era um bom católico e um grande patriota, a quem tínhamos de saudar de braço esticado, dizia-nos que aqueles dois de ar severo, eram o senhor Presidente da República e o senhor Presidente do Conselho. Na minha ignorância campónia, não entendia o significado daquelas palavras. Presidente só conhecia o da Junta de Freguesia. E o meu pai, sempre que ele nos visitava, murmurava entre dentes “aí vem o ladrão contar as galinhas e os ovos que elas poem, com a lengalenga dos interesses da nação”. Bate certo. Presidente igual a ladrão. Se calhar não apenas pilha galinhas, mas “pilhador” de coisas mais avantajadas. E aqueles dois que ladeavam Jesus, na parede da escola, só podiam ser chefes de quadrilha. Pensava eu na minha ingenuidade de um zé qualquer.

Quando fiz exame da 4º classe, com distinção, passei a moiral dos animais a tempo inteiro que as bocas para alimentar não paravam de crescer, embora as mais velhas tenham ido servir a senhoras da cidade. Mas a Maria dos Remédios

ou seria a da Purificação?

deixou-se enganar por um gandulo da cidade, com promessas de ludibriar tolas, e apareceu em casa com uma barriga maior que o globo da escola primária e ali pariu mais uma alma inocente, que pai teve que alimentar. Que havia de fazer? Pai é Pai. O que valeu foi que o Zé tendeiro já sem mercado entre as moças casadoiras, comprou o produto desvalorizado e ainda levou o brinde.

(continua)

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