A aventura no dentista continua
Desde que a minha dentista, doutora Isabel, foi presa preventivamente, que não ia ao seu consultório. Na última consulta fui atendido por uma substituta de poucas palavras. Não percebi se a doutora foi presa por perigo de fuga ou por perturbação de investigação. Por norma são estes os argumentos dos juízes justicialistas. De qualquer modo, custa-me acreditar, que uma cidadã sem estatuto mediático, tenha poder para influenciar seja o que for. Para mais, ao que me constou, ainda não é acusada de coisa nenhuma.
Por causa dos devaneios de um dente queixal e muito queixoso, que deu em se armar em protagonista, clamando ,estou aqui, tive de o mandar para a cadeira de tortura, para ver se entrava nos eixos. A porra é que somos inseparáveis e tive que acompanhar o estafermo. Disponível estava apenas a doutora Ana, que me costuma atender nestas circunstâncias. Com a discrição habitual analisou a situação e concluiu. Este dente só lá vai com uma plástica, ou seja precisa de uma coroa. Vou tranfrei-lo para a doutora Isabel, especialista nessa área. Embasbaquei:
-Mas doutora Ana Magalhães, a sua colega não estava presa por suspeita de assassinato do marido?
-O juiz não conseguiu provar a acusação e saiu em liberdade. Mas está proibida de abandonar o país. As investigações continuam. Depois de sair o paciente que está a atender, vai recebê-lo.
Tremo por dentro. Para além de me entregar nas mãos de uma torturadora licenciada, vou por-me à disposição de provável assassina. É certo que não passa de uma suspeita mas não ponho as mãos no fogo por ninguém. E ali estava em vias de pôr a boca na mira das brocas. Por dentro tremo mas por fora mantenho-me firme como aço. Não deixo nenhum músculo dar sinal de fraco.
-Senhor José, pode entrar, disse uma solícita empregada. Gabinete ao fundo. Percorri aquele espaço com o coração nas mãos. Mas tremiam tanto que receei que o deixasse cair e se partisse e antes de chegar junto da doutora. Desejava que aquele corredor se prolongasse até à eternidade. Mas terminou no gabinete da doutora Isabel Alçada.
Na entrada a figura imponente da doutora esperava-me como um sorriso.
-Seja bem aparecido, disse. E eu já a pensar em serial killers
-Quem desapareceu, pelos vistos, foi a doutora!
-Pois tive uns contratempos. É público que fui acusada da morte do Ernesto, o meu marido. A nossa justiça é especialista em acusar sem provas. Como podia assassinar o homem que me deu tudo. O amor, os filhos, a estabilidade, a segurança. Montou este consultório, comprou outro na capital e sempre me respeitou. É verdade que nos últimos tempos andava um bocado afastado dos negócios. Não se consegue esconder que era mulherengo. Também é público. Que havia de fazer? Matá-lo?
Isto pode parecer um discurso surrealista. Com toda a propriedade. Porque raio é que a dentista tem de estar a justificar-se perante um banal paciente, ainda por cima aterrorizado? Mas garanto que foi assim que aconteceu. Eu sei que somos do mesmo clube, e costumávamos discutir futebol. No fundo era uma forma de descontrair antes das brocas me começarem a devorar a massa dental. Quanta não terão devorado.
A doutora fez uma pausa no discurso. Reparei, talvez pela primeira vez, nos seus olhos cor de mel. Bem doces por sinal. Tão saborosos como deviam ser os lábios, bem desenhados, num rosto que me lembrava a Brigitte Bardot quando se dedicava mais à fauna humana. Para não falar num corpo que podia ter sido esculpido por Miguel Ângelo. Como podia um ser que parecia tão luminoso, tirando a sua profissão, ser uma assassina? Por outro lado, como podia o ex-marido andar enrabichado por outras mulheres, quando tinha, em casa, este monumento?
-Que havia de fazer? Matá-lo? disse ela
-Era o que merecia, apeteceu-me dizer, mas não disse. Até porque, puxando ao meu lado bom, ninguém nos deu poder para cometer tal acto, e o direito à vida é inalienável, mesmo para grandes estupores.
-A nossa justiça devendo ter os olhos vendados, pelos vistos, tem-os bem abertos para ver o que mais lhe convém. Espero e desejo que prove a sua inocência.
-Provarei. Há muito para investigar, até entre as cinco referenciadas a quem prestava assistência. Mas diga-me o que precisa da minha pessoa?
-Parece que tenho aqui um dente que quer ser coroado.
-Vamos lá ver.
-Chegou a vez das brocas falarem sem contraditório. E eu, de boca aberta, sem poder dizer palavra. Quando elas se calaram a doutora Isabel mandou-me sair da cadeira.
-Volte dentro de duas semanas. Venha preparado para estar aqui cerca de hora e meia.
Naquele instante não consegui evitar que o pensamento fugisse à vigilância da consciência.
-Hora e meia? O que tu queres sei eu.
Consegui, no entanto, em tempo útil, amordaçar as palavras antes que se fizessem som. e como boomerang me caissem. Perguntei:
Tanto tempo doutora!
-É o tempo necessário para moldar a coroa. Não se assuste. Está em boas mãos.
Daqui a duas semanas lá estarei. Nas mãos da viúva acidental. Talvez a aventura continue.