Rua da Saudade
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MATRIARCAS ACIDENTAIS
No início dos anos setenta, Lisboa era uma cidade calma, serena, tranquila. Recebeu de braços abertos provincianos em demanda do seu Graal e acarinhou-os como uma mãe . Fui essa a sensação que senti quando ali me refugiei na fuga a uma futuro de horizontes limitados num Portugal de paisagens paradas no tempo.
Nessa época, chegavam à capital migrantes de todos os cantos do país para trabalhar na jovem indústria dos arrabaldes e no crescimento dos serviços da "primavera" marcelista. Para os acolher desenvolveu-se uma espécie de hotelaria paralela, as hospedarias familiares. Foi assim que me instalei na casa de dona Regina, também ela migrante do árido Alentejo. Divorciada, mãe de três filhos, uma casada com um pequeno industrial da periferia, um desertor da guerra colonial em França e o Tonico livre da guerra por defeito físico.
Ali, naquele andar do centro, como na cidade, estava representado um microcosmos do país. A Olinda de Trás-os-Montes, o Noro de Freixo-de Espada-à- Cinta, o Camacho das Caldas, o Coelho das beiras, Os manos Rato do Alentejo, e o Benjamim do Alviela. Éramos uma comunidade familiar por obra do destino. Viviamos emoções, partilhávamos desejos, descobriamos sonhos, "filosofávamos" nos cafés, palmilhávamos ruas, cinemas, bailes populares.
Entretanto,D. Regina a nossa matriarca, cozinhava as refeições, tratava da roupa, compunha as camas. Todos tínhamos uma mãe natural nos sítios mais recôndito de um país distante com quem nos mantínhamos ligados pela perdida tradição epistolar. Na casa de D. Regina tínhamos uma mãe acidental mas sempre presente. Tratava-nos como "os seus meninos" e procurava proteger-nos de malfeitorias, alertar-nos para perigos e até "interferir" com boa intenção, nos namoricos.
Nas encruzilhadas da vida desfez-se este agregado familiar acidental. As hospedarias dos anos setenta foram levadas no turbilhão da evolução social. As mamães hospedeiras esfumaram-se. A cidade cresceu, o antigo centro desertificou-se de vida plena , empurrou para os subúrbios o bulício humano.
Perdi o contacto físico com D.Regina, mas continuou sempre presente na minha lembrança. Para todas as matriarcas acidentais e especialmente para mamãe Regina, onde quer que esteja, a minha profunda gratidão .
MG