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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

21 Set, 2009

DIAS DE CONTRABANDO

 

Felisberto foi agricultor e contrabandista do Guadiana.  O seu dia começava cedo. Nunca deixava que o sol lhe levassse a palma. Quando este, estremonhado,  raiava no horizonte já Felisberto estava, acompanhado da sua fiel burra Narcisa, a emprenhar a terra  que havia de parir o pão com que alimentava a familia.

Mas a terra, umas vezes mãe, outras madrasta, nem sempre lhe dava rendimento à medida da sua ambição. Felisberto não se resignava à doce e propagada  mediocridade do seu país. À noite quando todos se recolhiam às palhas do colchão, para curar o corpo das mazelas de mais um dia de labuta e retemperar as forças para outro e mais outro sempre igual, Felisberto metamorfoseava-se de contrabandista e com Venício, o seu companheiro de contrabandear e outros pecados, punha o saco às costa e desafiando fronteiras partia para a sua aventura.

Cada nova viagem era uma aventura sempre diferente, sempre desafiadora. Enfrentava os perigos escondidos na noite: o frio, a chuva , o vento. Enfrentava o rio , umas vezes calmo e colaborante, outras turbulento. Enfrentava os adversários directos, os guardiões da ordem, da lei e da grei. Enfrentava o perigo de perder a sua carga e os proventos que ela representava.

Numa dessas viagens caminhou vários dias em território espanhol, dormindo de dia e caminhando protegido pela escuridão. Chegou ao destino, entregou a mercadoria e com o dinheiro recebido,  comprou nova mercadoria para vender no seu país.

Iniciou o regresso, de novo dormindo com o dia e caminhando na companhia cúmplice da noite. Quando chegou junto da fronteira sentia-se bem. A missão estava quase cumprida e já pressentia o cheiro da sua terra. Faltava-lhe vencer só mais uma barreira: atravessar o rio frio e caudaloso. Na companhia do seu amigo Venício, começou a fazê-lo como sempre o fazia: nadando sem roupa e puxando um pesado oleado, onde carregava todos os seus haveres. O silêncio era  entrecortado pelo chap, chap do seu corpo deslizando na água.

Mas dos rumores aconchegantes do rio ecoou um grito assustador, quase inumano: pára ou disparo... Felisberto ouviu e olhou! E viu em águas espanholas um vulto e a sua voz, gritando berrando...-deixa a carga. O vulto cada vez mais próximo, cada vez mais assustador remava numa lancha que voava sobre eles como uma ave predadora.

-Conho, disse para o Venício, vamos largar os oleados e acelerou as braçadas que o levaram até à margem em segurança. A voz e o vulto esfumaram-se na escuridão.

 Um grito contido saiu-lhe da voz embargada:

-Canalha

O canalha , era o Palma o guada-fiscal, que identificou pela voz e  que era quase seu vizinho. Nesse dia o canalha não estava sequer no seu posto e no seu serviço. Navegava em águas proibidas, tão ilegal quanto Felisberto. Mas era um homem da lei e um homem da lei não se contesta.

Felisberto percorreuu os cinco quilómetros que separavam a fronteira da sua casa, tendo apenas como vestuário, um chapéu, onde sempre transportava o dinheiro  sobrante dos seus negócios.

Elvira, a sua mulher, agastada e triste,  dizia: -nem a tua roupa salvaste.

Felisberto, limitou-se a responder -  já estou, outra vez, vestido.

 

Esta estória é real e Felisberto é o meu pai.

Mateus Gonçalves