Migração e transparência
No dia em que se comemora a diáspora portuguesa, veio-me à mente uma imagem esquecida no arquivo mais recôndito das minhas memórias da infância.
Recordei-me de, ainda moço imberbe, ir cortar o cabelo à barbearia do Zé Filipe. Da minha visita a essa casa rural adaptada a local de tosquia capilar, continua viva na minha lembrança uma cadeira de madeira giratória. E sobretudo, dois automóveis feitos de vidro transparente que me causavam curiosidade e prazer pela sua beleza e raridade.
O Zé Filipe, na altura um jovem em início de vida, acabou por fechar a sua barbearia e migrar, como muitos outros para os arredores da grande capital. Aí foi operário em construção e encontrou o modus vivendus de sobrevivência que a sua barbearia, perdida numa aldeia da serra de Caldeirão e Mu não lhe garantia.
Muitos anos depois, quando a juventude de mestre Filipe já se esvaía, os cabelos rareavam e embranqueciam ,regressou à sua aldeia e reabriu a barbearia. Em boa hora o fez, pois já que não havia no local quem tratasse das escassas cabeleiras de outros retornados, que como ele, quiseram acabar os seus dias no lugar onde tinham aprendido a identificar-se com um país.
Nas minhas visitas temporárias a esse lugar, vejo mestre Filipe envelhecer feliz e tão ou mais excêntrico do que quando foi forçado a partir. Nunca mais voltei a entrar na sua barbearia, talvez com receio de já não encontrar os objectos que encantaram a criança que ainda hoje guardo dentro de mim.
MG