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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

 

 

Deixei de viver na capital há mais de trinta anos. Contudo, de tempos a tempos desço ao povoado, como costumo dizer, para tomar um banho de cosmopolitismo e matar velhas saudades. Na minha última visita deambulava pela praça dos Restauradores quando um desconhecido me abordou com um sotaque que me pareceu familiar:

-Tu não és o Carlos Antunes?

-É como me tratam. Com quem estou a falar?

-Eu bem me parecia. Não te vejo desde os anos setenta mas reconheci-te de imediato. Estás na mesma, parece que os anos não te fizeram mossa. Eu sou o João. Fomos hóspedes na casa da dona Conceição.

-Claro, o João Saramago. Quem diria. O corpo disforme, o cabelo escasso, a voz arrastada. Caraças. O que é feito do João garboso, atlético, trigueiro natural como marca do seu Alentejo? Onde está o sedutor que se gabava das suas performances durante as intermináveis noites com a namorada. Porque raio nos castiga assim a puta da vida.

-Caramba pá, o tempo esqueceu-se de ti, continuou João. Até parece que vendeste a alma à juventude eterna. Qual é afinal o teu segredo?

-É muito simples, respondi. Saí há muito do bulício da cidade. Vivo na parvónia: sossego, ar puro, vida saudável; além disso sou um solteirão empedernido, não tenho mulher para me torrar a paciência, nem filhos para me fazerem cabelos brancos.

-Pois eu, Carlos, casei muito novo. Como sabes tive de juntar os trapinhos à pressa com a Virgínia a minha primeira e única namorada, porque ficou prenha apesar de todos os cuidados que tínhamos. Será que a reconheces? Está aqui ao meu lado.

Lembrava-me, claramente, desse casamento. Fui convidado mas não estive presente. Tinha as minhas razões. Não havia dúvida. Estava ali a mesma Virgínia: a mesma beleza selvagem, o mesmo rosto que roçava a perfeição, apenas mais flácido, os mesmos fascinantes olhos azuis, apenas com menos brilho. Como não reconheceria Virgínia depois do que nos aconteceu num fim-de-semana alucinante.

Tudo começou quando o Joaquim, um outro hóspede, me convidou a ir passar o sábado e o domingo à casa praia de uma amiga da namorada, chamada Leonor. A Leonor que conheci numa passagem de ano, era uma quarentona desinibida e viúva de afectos. Aceitei o convite. E lá teria ido se a “mamãe” Conceição como a tratávamos não se tivesse metido no caso, com as suas “finas” ironias, durante o jantar. “Então senhor Carlos quando é o casamento?” Embaraçou-me. Sou discreto, não gosto de ver a minha vida nas bocas do mundo. Previ que o assunto teria novos capítulos, com muitos pormenores. Não tenho estofo psicológico para aguentar insinuações. Admito a minha fraqueza. Dei o dito pelo não dito. Arranjei uma desculpa esfarrapada. Pus-me de fora.

Contudo, o Joaquim não quis deixar a Leonor a servir de pau-de-cabeleira e arranjou uma alternativa. E quem estava mesmo à mão? Nem mais nem menos que o garanhão do João Saramago. O João não se limitou a aceitar. Teve de dar espaço à sua habitual bazófia: “ela só vai ganhar com a troca. Nunca teve na cama ninguém tão bem artilhado. As réguas da escola que tinham vinte centímetros não chegavam para mo medir”. Se já estava em baixo a soberba do João pôs-me mais pequenino que um verme. Mas a vida quando menos se espera dá cambalhotas surpreendentes. Mal sabia eu que o melhor estava para vir.

Naquele Sábado ia sair depois do jantar para afastar as teias de aranha que me povoavam a mente quando “mamãe” Conceição me chamou:

-Senhor Carlos espere, tem aqui um telefonema. Atendi.

-Está, disse uma voz tão distante que parecia que vinha do além.

-Estou!

-Fala a Virgínia. Desculpa se incomodo. O João disse-me que ia ao Alentejo visitar os pais e aqui na casa onde estou hospedada está tudo de fim-de-semana e até a patroa foi ver uns familiares. Estou um pouco abandonada e aborrecida. Se não tens nenhum compromisso convido-te para ir ver um filminho.

-Era mesmo isso que ia fazer, disse procurando esconder a surpresa. Onde nos encontramos?

Montei-me no meu velho mini e apanhei a Virgínia Junto à fonte luminosa quando ainda tinha luz e água. Perguntei-lhe: tens algum filme em mente? Escolhe tu, respondeu. Estava meio bloqueado. As mulheres encabulam-me. Por isso deixei rolar o mini pelas ruas da cidade. E só deixou de rolar quando na praça dos Restauradores, junto ao cinema Condes, foi parado pela traseira de um carro estacionado. Ainda não consigo explicar como aconteceu. Ou me distraí com o cartaz “DAVID E GOLIAS” ou me perturbei com a beleza da companhia inesperada. Raio, isto não começa bem, murmurei. E agora? Perguntou Virgínia. Agora bate-chapas e tinta…A Virgínia deve ter percebido a minha perturbação. Fez uma fuga para a frente: vamos esquecer o filme; vamos tomar um drink e bater um papo; concordas? Bater um papo é coisa a que não resistia, naqueles tempos revolucionários. Aonde? Perguntei Na minha casa, respondeu. Engoli em seco. Deixei-me levar, o que podia fazer? Não sei dizer não a uma dama. Sou mesmo um fraco.

Percorremos um corredor até uma salinha com um sofá, um televisor e um velho piano de cauda.

-Uau, aqui mora gente fina? Disse  para quebrar o silêncio.

-A menina Amélia foi uma menina bem. Na juventude aprendeu a tocar piano e a falar francês. Quando os pais morreram estava solteira e sem profissão. Agora para sobreviver aluga quartos. Põe-te à vontade, Senta-te que eu já venho.

Quando Virgínia regressou caiu-me o coração aos pés. A moça vestia uma curta e transparente camisa de noite que deixava ver roupa interior com bolinhas amarelas. Até parece que ainda estou a ver. Sentou-se ao meu lado. Procurei manter a serenidade enquanto pensava: “como vou sair desta?" Lancei um assunto:

-O que achas do governo Vasco Gonçalves? Parece que os “comunas” estão a pôr-nos  a pata em cima. Ainda mal saímos de uma ditadura e estamos quase a entrar noutra…

-Não percebe nada de comunas. Sou mais de põr a pata em cima, respondeu Virgínia. Sem me dar mais nenhuma  “deixa”  agarrou-me e pespegou-me  um beijo na boca que me fez ver estrelas. Quando parou para respirar consegui dizer:

-Que se passa Virgínia, porque fizeste isto?

-Não me digas que não gostaste?

Sou um fraco. Não consigo pregar uma mentira, mesmo piedosa. Fui sincero:

-Claro que gostei. Mas, por acaso, tu não és a namoradinha de um amigo meu? Ou por acaso vocês estão zangados e estás carente  de afecto?.

-O teu amigo, esse grande cabrão, disse aumentando o tom de voz,  está agora a “chifrar-me” com uma coroa desavergonhada, possivelmente embalados pelas ondas do mar.

-Ó Virgínia , tu sabias?

-Claro que sabia. Achas-me com cara de tansa? Mas isso agora não interessa nada. Nâo estamos em revolução? E mulher na revolução  é biombo de sala? Liberdade, igualdade, amor livre  é exclusivo de macho?

Senti que estava a ser usado e a praticar pecado venial com mulher de outro, mas não fui capaz de resistir. Apeteceu-me fugir, mas não o fiz.Sou mesmo um fraco.  Deixei-a despojar-me da pouca roupa que vestia e sem saber como fui parar à sua cama no escurinho do seu quarto. Foi uma noite interminável. Numa coisa o João tinha razão: a moça tinha estofo de maratonista e vi-me e desejei-me para a acompanhar até à meta.

O dia tinha começado há muito quando acordámos. Apenas me lembrei de dizer:

-Espero não te ter desiludido. Estás habituada a andar num grande carrão e hoje tiveste de te contentar com um mini.

-Foi uma noite inigualável e irrepetível. O que interessa é a eficiência. Grandes para quê, meu amigo?

 

Amigo Carlos, disse João, nem estou em mim. Nunca imaginei que te iria encontrar  trinta anos depois. Mas ainda não apresentei a nossa melhor produção, a Olinda, que já está uma mulher, quase a sair doutora.

 Olinda fazia jus ao nome. Era linda de morrer. Mas o mais curioso é que me pareceu ter voltado aos anos setenta, ao tempo da juventude de Virgínia. O mesmo corpo esbelto, o mesmo rosto no qual apenas destoavam uns luminosos olhos castanhos. Cumprimentei-a:

-É muito bonita menina. Tem a quem sair. Vocês de facto esmeraram-se.

-Apenas destoa na cor dos olhos, eu tenho os olhos verdes e a Virgínia os olhos azuis.

-Às vezes vão buscar essas características a antepassados remotos. Nem tudo pode ser perfeito. Acontece amigo João

.

Acontece senhor Carlos, disse “mamãe” Conceição mal entrei.

O quê, dona Conceição?

-Ainda não sabe? O truca-truca do nosso João com a Leonor correu mal. Foi uma noite interminável. A batalhar, a batalhar e o coiso a dar sempre nega atrás de nega. A Leonor bem ajudou com toda a sua experiência e nada. Eu acho que foi castigo por ter deixado a namorada, uma moça tão linda, abandonada e triste. Deve ter passado um fim de semana interminável. “Pois passou“, comentei em surdina , “e pela boca morre o peixe, mas ainda bem que não fui eu o cordeiro, pois  já estava a prever isto, fosse qual fosse o resultado ou não conhecesse em a “mamãe”.  O que está a dizer senhor Carlos? Nada, nada, dona Conceição, enquanto ia saindo de fininho da conversa.

 

-A conversa ainda só está no início mas estamos com pressa. Vamos assistir a um concerto. Dá-me o teu contacto, Carlos. Assim que a Olinda sair doutora vou dar uma festa de arromba e já estás convidado… não é Virgínia?

Olhei para Virgínia. Vi um certo brilho nos seus olhos. Estarei presente com muito gosto, disse. O que posso fazer? Não sei dizer não, especialmente à Virgínia. Esta fraqueza nasceu comigo e comigo viverá. Despedimo-nos. Enquanto me afastava revi de novo Olinda. Perseguia-me uma interrogação. Mas onde é que já vi estes olhos castanhos? Quando passava junto ao ex-cinema Condes fez-se luz no meu espírito. Eureka.” Vejo estes olhos sempre que me olho no espelho”. Bolas! Agora tenho razões de sobra para voltar, pois é evidente que o pequeno David venceu Golias mais uma vez.

MG