À saída espero por si
Imagine que está numa terra que se assume, convictamente, medieval. Imagine que viajou para o reinado de Afonso II. Imagine-se numa luta contra os infiéis. Imagine-se a comer uma ementa das classes populares do século XII, obrigatoriamente sem colesterol. Imagine-se no solar das fogaças travestido de estalagem servido por atraentes estalajadeiras. Imagine que diz uma qualquer laracha dirigida aos acompanhantes quando está a ser servido por uma moça "medievalmente" disfarçada. Imagine que após ouvir os seus comentários, ela lhe dirige a palavra dizendo: "quando eu saír volte a dizer-me isso." Imagine que está acompanhado por uma cara metade. Imagine tudo isto em Santa Maria da Feira, num tempo que sendo actual consegue ser simultaneamente passado.
Na realidade, por muito que imagine, não consigo ter o dom da ibiquidade e mandar metade de mim de regresso ao hotel com a dama de companhia oficial e ficar com a outra metade à espera que a moça acabasse o serviço que desempenhava, para voltar a dizer-lhe aquilo que, honestamente, não lhe disse. Porque o que disse não lhe era destinado, nem era nada que não pudesse ser dito publicamente. E se o que disse não foi o que ouviu, tinha interesse em saber o que queria, realmente, que lhe dissesse. Presumo que sendo ela na altura "medieval" e eu um turista de outro tempo não falássemos a mesma linguagem verbal.
Se estivesse estado na sua saída para lhe dizer "isso" e não estive por razões óbvias, talvez nos tivéssemos entendido na linguagem universal. Assim fica a persistente dúvida a atazanar-me o sossego. Assim fica a consciência pesada de ter deixado a moça pendurada, na saída, à espera que lhe dissesse o que não sabia que lhe havia de dizer. O que não tem remédio, remediado está, pelo menos até ao regresso da idade das trevas a Santa Maria da Feira. E aí espero voltar e estar atento à saída da estalajadeira, que quer que lhe repita a frase que nunca lhe disse, na esperança que o que lhe disser só faz sentido dito à saída.
MG