O pião
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Quem não gostaria de voltar à infância com todo o saber acumulado e começar de novo? Mas, caindo na real, só é possível voltar à infância viajando nas recordações acantonadas na memória. Muitas vezes, essas viagens ao passado, são desencadeadas por pormenores quase sempre imprevistos. Foi assim, que hoje, me cruzei com um despoletador de memórias e me revi nos tempos de criança. Foi assim, que tive um encontro imediato de terceiro grau com um pião, um dos brinquedos que me abandonou quando terminou a idade dos sonhos. Esse ingrato, esse filho pródigo, hoje voltou. Perdoei a sua longa ausência e recebi-o como um príncipe de um rei que nunca existiu. Tal como me aconteceu, estão visíveis na sua pele as marcas do tempo: notam-se uma outra ruga, alguns aleijões, várias cicatrizes provocadas pelas agruras da vida.
O meu velho pião, a que chamava piorra, talvez devido ao seu corpo mais raquítico e franzino, acompanhou-me no tempo de brincadeiras de pobre de país pobre. Foi um companheiro incondicional de brincadeira, sempre disponível a actuar nas frentes de batalha com outros mais avantajados da sua espécie. E muitas vezes, sofreu no coiro as consequências das disputas, não por culpa sua, mas pela inabilidade do seu dono na arte do manejamento. O velho pião, por ser filho de um artesão ocasional, sem a perfeição e a robustez de outros mais sofisticados, viu o seu corpo retalhado e pisado, pelo ferrão afiado dos nascidos de poderosos tornos. Mas resistiu e deu luta, com dignidade.
Apesar dos tempos de chumbo que pautaram essa infância, no contexto da realidade de um meio rural de horizontes perdidos, foi gratificante ter voltado a esse universo, onde a felicidade se resumia às coisas simples de um dia a dia de subsistência, que o rodopiar de um pião, ou o rolar de um "riol" (berlinde) tornava mais ameno. E se hoje no século XXI, há ainda, neste mundo cão, muitos meninos sem infância, naquele tempo dos meados do século XX, tive o privilégio de ter sido criança. Foi isso que me mostrou este pião, perdido e triste, entre outros objectos do passado e que adoptei como um novo companheiro. E a nossa relação quotidiana, vai servir, para não deixarmos enterrados nas brumas da memória esse nosso passado mítico. Porque só assim vivemos plenamente.
MG