Por dentro dos livros, por fora da vida
Parêntesis na novela mexicana em que se tornou a política em Portugal. Parêntesis nas banalidades que escrevo e leio sobre isso, com mais ou menos destaque. Parêntesis no discurso do medo, como forma de perpetuar no poder um governo incompetente. Parêntesis nos sound bites do "é tudo igual" ou a "alternativa socialista é a mesma coisa" que contestando o que está o apoia objectivamente. Parêntesis. Período de nojo.
Resta-me escrever sobre coisas que não interessam mesmo nada a ninguém. Como sobre o facto de eu ter, muitas anos depois, voltado à Universidade. Pois voltei. E voltei, com coerência, porque nunca disse que voltar era irrevogável. Palavra que nunca disse, nem direi, enquanto tiver vergonha na cara. O certo e garantido é que voltei e gostei de ter voltado. Sinto-me muito bem e chega. O que lá faço ou deixo de fazer é assunto irrelevante. De uma forma geral faço o que faz qualquer frequentador daquele espaço. Por exemplo, vou até ao bar, peço o meu café, sento-me a ler as notícias de um jornal gratuito (a vida está difícil) e/ou descontando as distracções que são muitas vou folheando um livro. Um dos livros em que me embrenhei nessas estadias no bar, foi "A Sala Magenta" de Mário Carvalho, prémio Fernando Pessoa 2009. A história gira à volta das reflexões de um realizador de cinema "intelectual" já entradote nos anos e chamado Gustavo.
As suas fitas premiadas em festivais de cinema do quarto mundo, rodaram em sala vazias. E aí não posso deixar de fazer comparação com a minha estulta pretensão de querer ser escritor, convencido que escrevo coisas que podem interessar a alguém. Nem no Botswana.Uma treta. Mas depressa fujo à angústia de baixar o ego, quando levanto os olhos do referido livro e os mergulho nuns encantadores olhos castanhos, onde me refresco por uns breves segundos. Mas, carregadas baterias, volto à sala magenta, local de festas de Maria a mulher da vida do Gustavo, que todas as noites o recebia e todas as noites o escorraçava como cão vadio, depois de lhe dar comida. Esta estranha atracção por Maria, que nem era boa de cama, não impedia Gustavo de se perder nos leitos de outras mulheres, ocasionais e passageiros. Desde a mulher do crítico social Silvério que se ia deitando com este e com aquele a pedido do marido para lhe contar as experiências, até à insonsa Marília com que fazia sexo mole. Quando preciso de respirar e levanto os olhos das vidas de papel impresso, para voltar aos olhos castanhos que tinha deixado em banho Maria, já eles estavam ocupados a olhar para um marmanjão com ar de pára-quedista. Sem hipótese. Ainda passei o olhar por uns fugidios olhos ingenuamente azuis, mas célere regressei à vida plasmada em letras impressas. Na literatura e na vida o sonho não tem limites. Se outra razão não houvesse esta é suficiente para estar na Universidade.
Como nos filmes premiados sem espectadores do realizador Gustavo, perdidos de olhos em olhos, deixamos passar o tempo, até acabarmos como ele, com um pé (ou outra coisa qualquer) engessado e preso por misericórdia na casa de uma irmã, Marta, professora aposentada e desquitada de um professor de matemática que, num último arroubo de juventude, foi atrás da aritmética de um lambisgóia de tenra idade. E eu que nem sou de matemática, apenas vou tirando medidas, enquanto passeio o olhar pelas muitas lambisgóias que dão cor ao bar.
Gustavo, na vivenda que a irmã comprou nas margens da lagoa Moura, no Alentejo profundo, vai partilhando com ela e com os eventuais leitores, as recordações de um passado sem futuro, num presente de bucolismo rural tardio. Numa reflexão em que a vida, feita de pequenos nadas, termina num nada absoluto. Na viagem entre a ficção e a realidade, perco-me na terra de ninguém e já não sei se aqueles olhos verdes em que me banho, não serão as águas da lagoa moura pejadas de belas sereias. E já não sei se estou por dentro do livro e por fora da vida ou vice-versa. E num arroubo de lucidez, caio e mim, e não percebo porque perco tempo com esta história, que nem interessa ao menino Jesus, enquanto o país, onde nasci, está a afogar-se numa lagoa de lágrimas contidas.
MG