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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

                                                                             Ficção

 

Ó Miguel,

 

Travei o passo, mas continuei a avançar. Afinal há mais marias no mundo. Aquele chamamento não devia ser para a minha pessoa. Nem estava muito interessado que fosse, pois quando alguém me aborda é para me pedir algo, ou vender alguma tralha.

 

-Miguel Vasconcelos,

 

Hesitei. Diacho, se calhar sou eu o visado. Desde que o dito nome é sinónimo de traição tornou-se pouco comum. Continuei a caminhar, mas pelo sim pelo não, fui olhando pelo rabinho do olho. E aí começou a desenhar-se na retina a figura esguia de Félix Chato Fininho. Agora não havia dúvida, o Chato estava no meu encalço. Não tinha alternativa. Parei, virei-me devagar e afivelei um sorriso de circunstância

 

-Então Miguel como vais?

 

O Chato foi meu colega de trabalho. Não o via há uns tempos, mas é o tipo de cidadão que não queria encontrar nem para beber um copo de bom vinho alentejano. Nem o recomendaria para genro da sogra mais empedernida. Aliás o fulano nem sogra tem. Em tempos foi casado com uma sua aluna dos cursos nocturnos, uma alentejana roliça e bem torneada, mas agora vive sozinho num T2 da periferia. Articulei mecanicamente uma frase batida, "gosto em ver-te" enquanto que  a ideia que me borbulhava na mente era "gosto em ver-te coisíssima nenhuma".

 

-O que tens feito?

 

O que me apeteceu dizer foi: "o que tens a ver com isso ó "palhaço" andante?". Comedi-me. Há palavras que se tornam anátemas. Essa coisa da frontalidade é uma grande treta. Em nome da boa educação, temos que engolir muitos sapos. Mas que custa custa. Eu até compreendo que a criatura também seja filho de Deus, embora às vezes não pareça. Penitencio-me se é blasfémia. Mas este arrependimento é só retórica verbal, senão não tinha perguntado "como vai a família" a um gajo que vive sozinho, não sei se por opção, contingência ou espírito de eremita.

 

-... (silêncio)

 

Nem sei como a ex-mulher ainda partilhou com ele a mesma cama durante uns anos. Mas que partilhou, partilhou. Tanto mais que lhe fez uma filha. O que para ela não era coisa nova, pois quando se juntou com o Chato trouxe como prémio um filho de uma  outra relação não concretizada. Era o que se chamou, em tempos, uma mãe solteira. Se calhar embarcou na aventura por se encontrar numa situação de fragilidade. E estava ali disponível o setôr Chato Fininho que lhe garantiria alguma estabilidade. Ou então, foi mesma paixão da aluna pelo mestre. Acontece muitas vezes. Quem nunca lhe sucedeu é porque é mesmo um estafermo inconcebível. Seja como fôr, se a moça se embeiçou por tão assumido cretino, não merece crítica, pois à primeira qualquer cai. Não sou nenhum santo, mas quando lhe percebi o embaraço do estupor, puxei pela minha costela misericordiosa, e mudei de assunto:"quero dizer...como vai a tua filha?"

 

-Faz tempo que não a vejo. Alíás, só me visita para me cravar. É tal e qual a puta da mãe...

 

Embatuquei e mordi a língua para não disparatar. Não gosto de ver destratar uma donzela, seja qual for a sua orientação sexual. Sou, ainda, um cavalheiro à antiga. Atalhei conversa. Meti um lugar comum: "e essa saúde?"  Resulta sempre.O Chato começou a discursar com todos os pormenores sobre mil maleitas, mas deixei do ouvir. Veio-me à superfície do pensamento mais uma especulação. Imaginei a ex-mulher, anos a fio a aturar esta verborreia. Mas esse sacrifício foi recompensado. Valeu-lhe ter tirado o curso de Solicitadora que lhe permite estar bem na vida. E até acho que esse sacrifício justifica a aldrabice que lhe pregou quando o convenceu a comprar um terreno, em nome da mãe que a pariu, para construir uma vivenda. O otário pagou o terreno e a construção e ficou sem nada. E se, entretanto, a infeliz vítima do Chato já deita outro na cama que ele pagou, são coisas que acontecem. Tem a seu favor a evidência de ter pago um alto preço. Foram muitos anos de tormento. Sim que o Chato é dose.

 

-Tenho que ir, vou entrar às dezanove...

 

Aleluia, pensei. Agora já não me polui o quotidiano, a não ser com conversas de ocasião e por breves instantes. Mas em tempos idos, quando trabalhamos juntos, torrou-me a paciência com picuinhices e confusões de baralhar um comunista ortodoxo. De facto, não conheci maior artista na arte de complicar o que era fácil. Onde quer que estivesse. Certa vez, no Alentejo profundo, meteu-se de tal modo na vida do enteado que tirou a ex-sogra do sério e palavra puxa palavra chegaram a vias de facto. Posto na rua, em plena noite, percorreu mais de dez quilómetros à pata por trilhos de sobreiros até à vila mais próxima onde apanhou um táxi para casa. Mas quando chegou  já a ex-mulher, por antecipação, tinha mudado a fechadura. A partir daí consta que viveu na garagem até se mudar para o seu apartamento. Foi o seu canto de cisne na vida da fogosa alentejana.

 

-Então, até mais ver.

 

Apertei-lhe a mão fria e esquálida. "Fica bem" disse na despedida, omitindo a última palavra da frase  que ficaria com o seguinte sentido:"Fica bem mal".

 

A verdade é mesmo uma batata. Muda de sabor e de forma de acordo com o cozinhado e com o cozinheiro. Tenho algumas razões para não gostar do Chato Fininho. Apresento-o aqui como o mau da fita. Mas honestamente, às vezes, só às vezes, interrogo-me se assim será. Se calhar nem mereço os seus cumprimentos. É que o infeliz, não sabe, nem sonha, que vivo na casa que ele pagou e que partilho a cama e o que isso implica, com a sua ex-mulher. E nem tenho razão de queixa. Limitei-me a apanhar a fruta que ele amadureceu. Se não fosse eu, era outro. Ao fim e ao cabo tenho de me auto-convencer que não sou uma peste nem o verdadeiro mau da fita.

 

MG