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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

06 Dez, 2019

Sonho mau

Tive um sonho mau. Não sabia bem onde estava. Um sítio estranho e escuro. Uma figura saiu de uma espécie de neblina como um D. Sebastião não desejado. Era esguia e de contornos imprecisos. Algo sinistra. Arrisquei perguntar:
-Onde estou?
A figura esfíngica fez um esgar assustador e disse em palavras marteladas:
-Não sabes onde estás? Eu vou-te dizer: estás no mundo dos mortos.
-Confesso que me assustei. Que raio fazia ali, se ainda não tinha gozado a minha reforma. Tinha saído do trabalho há poucas horas. Voltei a interpelar a criatura já um pouco mais perto.
-Mas quem és tu, disse seguindo a mesma linha de tratamento.
-Sou o que sou, pouco interessa. Tenho tido muitas funções, excepto políticas. Agora estou ao serviço da Segurança Social. Venho-te avisar que podes, finalmente, pedir a reforma.
- Mas para que quero a reforma se estou morto?
-Azar, disse a figura. Quem te mandou morrer tão jovem. Acabaste de fazer noventa anos. Olha para Matusalém que viveu setecentos e nunca se reformou.
-Noventa anos? Nem me apercebi de tão ocupado. Mas a reforma não era aos oitenta?
-Era, dizes bem, mas já não é. O que é verdade num dia no outro é mentira.
A personagem que mais parecia um espectro, aproximou-se. Tinha uma cara esguia, como que chupada das carochas e qualquer coisa entre os dentes, que lhe dificultava a fala. Pareceu-me ser uma fatia de bolo-rei, ou seria folar da Páscoa. Estaria mais condizente.
-O que um dia é verdade, no outro é mentira, repetiu com a voz entaremelada pelo bolo, ou seria por uma amêndoa confeitada. Também tenho a nha reforma, mas sempre trabalhei e ainda trabalho com mais de cem anos
-A sua cara não me é estranha. De onde será que o conheço?
- Tem maneiras rapazinho. Estás a falar com quem já foi chefe de governo, máximo magistrado da nação. Quase tudo, menos político. Canalha horrível. Neste momento sou anunciador de reformas. Trabalho duro. Já viste o que é dar a notícia a cidadãos que estão na maioria mortos? Ninguém quer, mas aceitei em troca da vida eterna. Não vejo este mundo sem mim. Sempre pronto a ajudar em qualquer tarefa, excepto política. Mas o que vale é que estou e estive sempre acompanhado por bons rapazes. Beneméritos Privilegiados Natos.
-Já percebi. É um morto vivo, como na Guerra dos Tronos.
-Um som estridente entrou repentino na escuridão. A figura deu mais uma mordidela no bolo rei, ou seria folar, ou seria amêndoa. Depois eclipsou-se do meu horizonte. O som estava cada vez mais estridente. Estendi a braço instintivamente e calei aquela geringonça ruidosa. A custos abri um olho, depois outro. Um fio de luz solar bateu-me no rosto. Era dia e estava vivo. Foi só um sonho mau. Vim do fundo das trevas mas resisti. Milagre da Páscoa? Vou voltar ao trabalho. Do mal o menos. Ainda sou muito novo para me reformar. Só tenho noventa anos.

Crónica de maldizer do cota-diano