Sonho mau
Tive um sonho mau. Não sabia bem onde estava. Um sítio estranho e escuro. Uma figura saiu de uma espécie de neblina como um D. Sebastião não desejado. Era esguia e de contornos imprecisos. Algo sinistra. Arrisquei perguntar:
-Onde estou?
A figura esfíngica fez um esgar assustador e disse em palavras marteladas:
-Não sabes onde estás? Eu vou-te dizer: estás no mundo dos mortos.
-Confesso que me assustei. Que raio fazia ali, se ainda não tinha gozado a minha reforma. Tinha saído do trabalho há poucas horas. Voltei a interpelar a criatura já um pouco mais perto.
-Mas quem és tu, disse seguindo a mesma linha de tratamento.
-Sou o que sou, pouco interessa. Tenho tido muitas funções, excepto políticas. Agora estou ao serviço da Segurança Social. Venho-te avisar que podes, finalmente, pedir a reforma.
- Mas para que quero a reforma se estou morto?
-Azar, disse a figura. Quem te mandou morrer tão jovem. Acabaste de fazer noventa anos. Olha para Matusalém que viveu setecentos e nunca se reformou.
-Noventa anos? Nem me apercebi de tão ocupado. Mas a reforma não era aos oitenta?
-Era, dizes bem, mas já não é. O que é verdade num dia no outro é mentira.
A personagem que mais parecia um espectro, aproximou-se. Tinha uma cara esguia, como que chupada das carochas e qualquer coisa entre os dentes, que lhe dificultava a fala. Pareceu-me ser uma fatia de bolo-rei, ou seria folar da Páscoa. Estaria mais condizente.
-O que um dia é verdade, no outro é mentira, repetiu com a voz entaremelada pelo bolo, ou seria por uma amêndoa confeitada. Também tenho a nha reforma, mas sempre trabalhei e ainda trabalho com mais de cem anos
-A sua cara não me é estranha. De onde será que o conheço?
- Tem maneiras rapazinho. Estás a falar com quem já foi chefe de governo, máximo magistrado da nação. Quase tudo, menos político. Canalha horrível. Neste momento sou anunciador de reformas. Trabalho duro. Já viste o que é dar a notícia a cidadãos que estão na maioria mortos? Ninguém quer, mas aceitei em troca da vida eterna. Não vejo este mundo sem mim. Sempre pronto a ajudar em qualquer tarefa, excepto política. Mas o que vale é que estou e estive sempre acompanhado por bons rapazes. Beneméritos Privilegiados Natos.
-Já percebi. É um morto vivo, como na Guerra dos Tronos.
-Um som estridente entrou repentino na escuridão. A figura deu mais uma mordidela no bolo rei, ou seria folar, ou seria amêndoa. Depois eclipsou-se do meu horizonte. O som estava cada vez mais estridente. Estendi a braço instintivamente e calei aquela geringonça ruidosa. A custos abri um olho, depois outro. Um fio de luz solar bateu-me no rosto. Era dia e estava vivo. Foi só um sonho mau. Vim do fundo das trevas mas resisti. Milagre da Páscoa? Vou voltar ao trabalho. Do mal o menos. Ainda sou muito novo para me reformar. Só tenho noventa anos.
Crónica de maldizer do cota-diano