Conversa de dentista
Dia de dentista. Uma massa que cai, uma falha no sorriso, as palavras que escapam pelo buraco, aberto no centro da boca. Fazer o que? Aguentar. Antes, ainda tinha as mãos delicadas de uma dentista a manipular as brocas. Mas a jeitosa foi para Holanda e deixou-me em estado de orfandade. Agora, quando me esparramo naquela cadeira, tenho à frente um doutor barbudo. A única coisa que temos em comum é a paixão pelo mesmo clube. Nos preliminares do trabalho, dá-me dois dedos de conversa sobre os jogos, as tácticas, as arbitragens. Tudo o que se discute até à exaustão em programas de televisão em hora nobre.
Entrei no consultório e fui recebido com um sorriso pelo doutor e pela sua assistente. Aparentemente estava a correr bem. Pergunta da praxe:
-Então em que posso ser útil, disse o doutor Esperança
Limitei-me a abrir a boca.
-É pá, sem esse dente, parece mesmo um arrumador de carros.
Risos da Assistente. Afinal, enganei-me, quando pensei que ia correr bem. Então o gajo, quer dizer o doutor da mula ruça, confunde-me com um arrumador de viaturas, e di-lo nas minhas fuças. É para isso que lhe pago, e bem. Ultrapassou o espectável. Eu tenho respeito por todas as profissões, incluindo a dita cuja. Mas todos sabem que essa está associada a drogas leves, médias e duras. Ser arrumador vá que não vá, agora consumidor de produtos proibidos, deixou-me à beira da apoplexia. Sou um cidadão respeitador das leis da República. Já não tenho idade para isto. Limitei-me a fazer um sorriso amarelo. Ao fim e ao cabo ele é que tem as brocas. Acondicionei-me e nem um grama de conversa sobre futebol lhe dei. Que vá fiar borra para o raio que o parta.
O pior estava para vir. O doutorzinho depois de olhar para a minha ficha, continuou no mesmo registo:
-É pá, nasceu na década de quarenta. Tem x anos, já tem a idade até à qual eu espero viver.
A idade até à qual eu espero viver? Mau, mau. Querem ver que o finório me acha já fora do circuito. Uma espécie de múmia ressuscitada. Tudo é possível nesta vida. Bem, eu juro que vi um defunto que saiu do palácio de Belém, e julga que está vivo, ou então, é um holograma. Ainda há pouco apareceu armado em escritor de assuntos de maus costumes, maus fígados e piores bofes. Literatura top. Por enquanto não é esse o meu caso. O doutor continuava imparável:
-Tenho uma doença muito grave. Tenho tensão alta. Agora o senhor ainda vai chegar aos cem
Tensão alta? Isso hoje é um distúrbio controlável. Portanto ele que se cuide. Apesar de me considerar fora de prazo, um fantasma a arrumar carros, entre duas passas, desejo-lhe longa vida. Mas se a sua previsão se concretizar não estou preocupado. Dentistas há muitos. A estória de chegar aos cem, pelo dentista, numa de dar uma no cravo e outra na ferradura, fez-me recordar coisas que tinha esquecido, e que se passaram quando ainda era jovem.
Estava num período mó de baixo, quando me passou pela cabeça consultar um Quiro Astrólogo, que descobri num anúncio de jornal. O indivíduo, estudou-me as linhas da mão, mediu a linha da vida com um transferidor e depois, assertivo, sentenciou: “casamento garantido no ano tal, doença grave na idade Y e esperança de vida até aos X anos. Tudo comprovado com certidão passada e assinada. Fiquei agradado. Para mais, ainda me restavam quarenta anos deste lado da barricada. O problema é que o que antes era muito tempo, é agora cada vez menos. Estou mais inclinado a esquecer o Astrólogo e aplicar a expressão “só Deus sabe”. E que não se meta o dentista em adivinho para emendar a mão. Cem anos não são nada no oceano do tempo.
Chegou a hora de abrir a boca e ficar calado. Enquanto punha molde, tirava molde, a conversa mudou de alvo e prosseguiu com a diligente assistente.
-Ó Ercília, você tem que se cuidar, está cada vez mais curvada. Eu até tenho visto, na televisão, o anúncio de um colete que põe os corcundas direitos que nem um fuso. Ou então, porque não vai para a ginástica correctiva.
-Nem pensar doutor, disse ela, sempre a rir. É um problema de família. Com a idade todos ficamos assim. Ninguém foge ao seu destino.
Às tantas, a Ercília deve pensar que é descendente de algum corcunda famoso, talvez do de Notre Dame, que se tornou conhecido nas páginas do livro de Victor Hugo. Mas aposto que não foi aí que ela o conheceu. Mais certo ter sido no filme de Walt Disney, que deve ter visto na juventude, numa sala de cinema, de mão dada com o seu namorado “ó mor aquele ali parece mesmo o meu avô”
-Senhor José, disse o doutor Esperança, cuspa e bocheche, por hoje está despachado. Volte daqui a quinze dias para continuarmos o trabalho.
Despedi-me e saí sem dizer palavra. Nas grandes tormentas, uma pequena saída limpa, é como uma vitória. Senti-me livre e feliz. Tinha estado à beira de ser arrumador, fantasma, e possivelmente corcunda, e pior, não poder escrever a crónica do
Cota-Diano