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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Por um acaso, por uma daquelas reminiscências inexplicáveis, que de quando em vez no batem à porta, vi-me transportado para os tempos longínquos da juventude, quando tive de ser militar à força. Por acaso ou obra do destino, fui parar a regimento de Artilharia de Costa, único que não dava mobilização para a guerra colonial, e no âmbito desta unidade a um pequeno aquartelamento de defesa da costa atlântica, no alto da Trafaria. Ali estava um destacamento de cerca de duas dezenas de homens, a tomar conta de uns canhões a precisar de reforma e que se fosse o caso não defendiam porra nenhuma.
Também por vontade do destino, fui encarregue do comando daqueles militares, por delegação do Primeiro-sargento Martins, conhecido como Penamacor, responsável no terreno, mas  que andava metido em guerra de alcova com a mulher do seu melhor amigo, e cujo campo de batalha era o vale de lençóis. Todos o sabiam com excepção do dito cujo, dando razão ao ditado “o corno é o último a saber”.
Ali estive cerca de dois anos a lidar com mancebos de várias regiões do país, numa autêntica idiossincrasia nacional. Ali estava o Rajão, um pescador da Póvoa de Varzim, alto louro e um pouco boçal, que me fazia lembrar um viquingue de tempos idos.  Armado em cozinheiro improvisado, tinha a tarefa de alimentar a preceito os bravos artilheiros. Fazia um curioso par com Zé Sapateiro, português de Braga, que tinha uma paixão assolapada por uma cachopa do Minho, alimentada através de uma intensa actividade epistolar. Por portas e travessas alguém conseguia ter acesso ao conteúdo dessas cartas, que eram lidas em público para gaudio da rapaziada do quartel. É que naquela linguagem vernácula, palavra sim palavra não, estas cresciam tanto que ganhavam o estatuto de palavrão. E metiam a um canto as cartas de Soror Mariana.
Da teoria à prática o "Passatempo", vindo do Algarve profundo, saia do quartel pela calada da noite, e como lobo esfaimado, descia ao povoado mais próximo, Costa da Caparica,  onde por bares e cafés dava, para usar a sua expressão, “caça aos picolhos”, que traduzido queria dizer, homens com tendências sexuais fora da norma, da moral e dos bons costumes. E de lá trazia uns trocos nos bolsos, para alimentar o vício do tabaco. Que podia fazer com o fraco pré que recebia do exército?
Já o "Avozinho", cidadão que andara a fugir ao serviço durante anos e anos, trazia para aquele universo militar uma nota dramática. Caçado pelo exército quando tinha trinta e sete anos, casado e com filhos para sustentar, era uma montra de lamúrias. E quando menos se esperava caia num choro convulsivo( um homem também chora)  que até  entristecia as pedras da calçada. Um dia lá o libertaram do degredo e voltou para junto da família perdida.  Um alivio para ele e para nós. Em contraponto o Barreto, moço de forcados, ribatejano, conseguia estar sempre ausente “dispensado” pelo exército a um grande agrário e quando aparecia punha os cabelos em pé a todos os camaradas.
Mas quem não me sai da lembrança é o Marques de Valongo, e de alcunha o Nariz, devido ao enorme apêndice nasal com que a natureza lhe adornou o rosto. Merecia-me alguma simpatia, pois quando chegava a meia noite avisava-me, que na rádio da sala de convívio, estavam a dizer mal do governo de uma rádio de Argel. Desbaratou todo esse crédito, quando na sua tarefa nocturna de sentinela, a altas horas, abandonou o seu posto, tirou as botas e deitou-se com o fuzil na sua caminha, precisamente na noite em que o Primeiro-sargento, bem comido e melhor bebido, invadiu o quartel aos tiros e por ali entrou sem que ninguém lhe tolhesse o passo.
E meus amigos, só eu sei o que passei para convencer o “primeiro” a não fuzilar tudo o que mexia. A única coisa de que ainda me arrependo é não ter dado dois tabefes ao Marques, mas receei que não lhe descobrisse a face escondida na grandeza do nariz.
 O “primeiro” de tanto disparar, meteu filho no útero da mulher do amigo, as coisas descambaram, o marido enganado tornou-se fera ferida e o sargento foi recambiado para a selva africana. No dia em que se veio despedir, para além das palavras, que esqueci, deu-me um apertado abraço e partiu com os olhos rasos de lágrimas, sim que um guerreiro do mato  também chora. E antes de partir entregou-me o Diário do Governo,  onde estava publicado o seu último acto naquela unidade: um detalhado louvor sobre a minha acção sob as suas ordens. O tempo passou e deixou as suas marcas. E se houvesse viagens no tempo ia a uma agência comprar uma viagem para esse tempo que persiste na memória. Que mais não fosse para dar os merecidos tabefes  no Marques de Valongo.Talvez ao menos chorasse lágrimas de crocodilo.

ou seja esta crise que nos rouba os dias tem muitas explicações ou seja uns dizem que foi por causa dos especuladores do Leman Brothers ou seja uns tipos que fizeram falcatruas com o dinheiro que outros ganharam enquanto alguns asseguram que teve a ver com o despertar da China ou seja porque os empresários levaram para lá  as suas empresas para explorar mão de obra barata ou seja para aumentar mais o seu pecúlio desindustrializando  a Europa ou seja puseram-na a consumir made in China com o dinheiro que não tem ou seja levaram-na individar-se ao mesmo tempo que sacudiam a água do capote dizendo que esta desregulação se deve às dívidas dos países do Sul eternos calões gastadores compulsivos ou seja que viveram e vivem acima das suas possibilidades ou seja agora têm que pagar o pato vomitar o que andaram a comer a mais ou seja têm que colar a barriga às costas.

 

ou seja esta história não começou ontem ou seja é eternamente recorrente ou seja já era assim nos alvores da humanidade quando uns tipos mais espertos se apropriaram da riqueza que a maioria produzia inventando a primeira máquina de fazer pobres ou seja escravos que se têm reproduzido pelos séculos dos séculos com diferentes nomes ou seja na Idade Média eram servos no advento da sociedade industrial eram proletários, nos tempos que correm povo unido ou seja só mudam as moscas a merda é a mesma ou seja as ideias de tanto rechauchutadas  cansaram-se de ser ideias

 

ou seja seja qual for a época produzimos riqueza para benefício de uma minoria que com ela vive à grande ou seja em qualquer sistema em qualquer regime somos f*** e mal pagos  e para onde nos viremos não há volta a dar ou seja vêm ditadores, vêm salvadores, vêm democratas vêm esquerdistas de cravo ao peito ou seja pontas visíveis do iceberg explorador e especulativo criado para nos fazer pobres com uma refinada eficiência ou seja fundando por exemplo paraísos fiscais para assegurar o suor e o sangue que nos chupam inventando agências que nos avaliam e nos chamam lixo para nos sacar ainda mais  na exemplar forma de nos colocar na nossa eterna condição de escravos eufemisticamente designados de cidadãos livres.

 

ou seja mesmo sendo um optimista e depois de ler teorias e mais teorias concluo que não vejo maneira de sair disto ou seja vire-me para onde me virar, ou seja para comunistas, socialistas, liberais etc ou seja sempre me vejo a apanhar as migalhas que caem das fartas mesas da vilanagem ou seja sempre me vejo condenado a ser uma peça da máquina de fazer ricos ou seja   e como não tenho mais latim para gastar porque as palavras estão gastas de tanto serem escravizadas e não quero ser acusado de me apropriar das palavras dos pobres aqui as liberto à sua sorte sem regras de pontuação ou seja façam o que vos der na real gana libertem-se do pragmatismo dos prosadores baralhem as metáforas dos poetas ou seja não queiram ser peças da máquina da literatura elitista que eu não tenho opção e vou regressar ordeiramente ao meu lugar na máquina dos explorados que é onde deve estar quem tem que cumprir a sua missão de fazer ricos  

ou seja cinco anos depois mudaram algumas aparências, como sempre acontece, mas a essência permanece e permanecerá. E apesar de ir por esse mundo fora, Europa incluída, um ressurgimento de demónios, disfarçados de salvadores,  que querem controlar a máquina para a programar para  uma escravização à antiga, sim que esta pode  ser pior, estou satisfeito por ver o meu país, nesse contexto, como uma pequena ilha de esperança.

08 Mar, 2018

Ofélia

No dia de santo António

Nasceu Fernando Pessoa

E o seu primeiro pensamento

Foi p´ras moças de Lisboa
 

 No arraial em Lisboa

Cruzou olhares com Ofélia

E num repente… amou-a

E ofereceu-lhe uma camélia

 

No Porto, no são João

Voltou a sentir-lhe o cheiro

Terno pegou-lhe na mão:

Eu sou Alberto Caeiro

 

Quando são Pedro chegou

Com as chaves da paixão

A Ofélia até pensou

Em abrir-lhe o coração:

 

Embora não o  sabeis

Não sou um homem casado

Chamo-me Ricardo Reis

Em medicina formado

 

Estando triste a bela Ofélia

Perguntou a são João

A que homem da camélia

Tinha dado o coração

 

E o santo lhe respondeu

É poeta e fingidor

Finge o amor que te deu

Porque não vive o amor

Dia de dentista. Uma massa que cai, uma falha no sorriso, as palavras que escapam pelo buraco, aberto no centro da boca. Fazer o que? Aguentar. Antes, ainda tinha as mãos delicadas de uma dentista a manipular as brocas. Mas a jeitosa foi para Holanda e deixou-me em estado de orfandade. Agora, quando me esparramo naquela cadeira, tenho à frente um doutor barbudo. A única coisa que temos em comum é a paixão pelo mesmo clube. Nos preliminares  do trabalho, dá-me dois dedos de conversa sobre os jogos, as tácticas, as arbitragens. Tudo o que se discute até à exaustão em programas de televisão em hora nobre.

Entrei no consultório e fui recebido com um sorriso pelo doutor e pela sua assistente. Aparentemente estava a correr bem. Pergunta da praxe:
-Então em que posso ser útil, disse o doutor Esperança
Limitei-me a abrir a boca.
-É pá, sem esse dente,  parece mesmo um arrumador de carros.
Risos da Assistente. Afinal, enganei-me, quando pensei que ia correr bem. Então o gajo, quer dizer o doutor da mula ruça, confunde-me com um arrumador de viaturas, e di-lo nas minhas fuças. É para isso que lhe pago, e bem. Ultrapassou o espectável. Eu tenho respeito por todas as profissões, incluindo a dita cuja. Mas todos sabem que essa está associada a drogas leves, médias e duras. Ser arrumador vá que não vá, agora consumidor de produtos proibidos, deixou-me à beira da apoplexia. Sou um cidadão respeitador das leis da República. Já não tenho idade para isto. Limitei-me a  fazer um sorriso amarelo. Ao fim e ao cabo ele é que tem as brocas. Acondicionei-me e nem um grama de conversa sobre futebol lhe dei. Que vá fiar borra para o raio que o parta.

O pior estava para vir. O doutorzinho depois de olhar para a minha ficha, continuou no mesmo registo:
-É pá, nasceu na década de quarenta. Tem x anos, já tem a idade até à qual eu espero viver.
A idade até à qual eu espero viver? Mau, mau. Querem ver que o finório me acha já fora do circuito. Uma espécie de múmia ressuscitada. Tudo é possível nesta vida. Bem, eu juro que vi um defunto que saiu do palácio de Belém, e julga que está vivo, ou então, é um holograma. Ainda há pouco apareceu armado em escritor de assuntos de maus costumes, maus fígados e piores bofes. Literatura top. Por enquanto não é esse o meu caso. O doutor continuava imparável:
-Tenho uma doença muito grave. Tenho tensão alta. Agora o senhor ainda vai chegar aos cem
Tensão alta? Isso hoje é um distúrbio controlável. Portanto ele que se cuide. Apesar de me considerar fora de prazo, um fantasma a arrumar carros, entre duas passas, desejo-lhe longa vida. Mas se a sua previsão se concretizar não estou preocupado. Dentistas há muitos. A estória de chegar aos cem, pelo dentista, numa de dar uma no cravo e outra na ferradura, fez-me recordar coisas que tinha esquecido, e que se passaram  quando ainda era jovem.

Estava num período mó de baixo, quando me passou pela cabeça consultar um Quiro Astrólogo, que descobri num anúncio de jornal. O indivíduo, estudou-me as linhas da mão, mediu a linha da vida com um transferidor e depois, assertivo, sentenciou: “casamento garantido no ano tal, doença grave na idade Y e esperança de vida até aos X anos. Tudo comprovado com certidão passada e assinada. Fiquei agradado. Para mais, ainda me restavam quarenta anos deste lado da barricada. O problema é que o que antes era muito tempo, é agora cada vez menos. Estou mais inclinado a esquecer o Astrólogo e aplicar a expressão “só Deus sabe”. E que não se meta o dentista em adivinho para emendar a mão. Cem anos não são nada no oceano do tempo.
Chegou a hora de abrir a boca e ficar calado. Enquanto punha molde, tirava molde, a  conversa mudou de alvo e prosseguiu com a diligente assistente.
-Ó Ercília, você tem que se cuidar, está cada vez mais curvada. Eu até tenho visto, na televisão, o anúncio de um colete que põe os corcundas direitos que nem um fuso. Ou então, porque não vai para a ginástica correctiva.
-Nem pensar doutor, disse ela, sempre a rir. É um problema de família. Com a idade todos ficamos assim. Ninguém foge ao seu destino.
Às tantas, a Ercília deve pensar que é descendente de algum corcunda famoso, talvez do de Notre Dame, que se tornou conhecido nas páginas do livro de Victor Hugo. Mas aposto que não foi aí que ela o conheceu. Mais certo ter sido no filme de Walt Disney, que deve ter visto na juventude, numa sala de cinema, de mão dada com o seu namorado “ó mor aquele ali parece mesmo o meu avô”
-Senhor José, disse o doutor Esperança, cuspa e bocheche, por hoje está despachado. Volte daqui a quinze dias para continuarmos o trabalho.
Despedi-me e saí sem dizer palavra. Nas grandes tormentas, uma pequena saída limpa, é como uma vitória. Senti-me livre e feliz. Tinha estado à beira de ser arrumador, fantasma, e possivelmente corcunda, e pior,  não poder escrever a crónica do
Cota-Diano