31 Jan, 2018
A menina dos olhos de amêndoa
Entrei a carruagem do metro a uma hora tardia. Hora morta, diz a voz corrente. Pouca gente e muitos lugares vazios. Sensação de vazio. Sentei-me num lugar junto à janela. Reminiscência da mítica idade infantil, quando fazia birra para ter um lugar com vista para a paisagem, nos comboios que “pouca terra, pouca terra”, pintavam a paisagem de cinzento, com o fumo que exalavam, como fumador viciado, da chaminé da máquina a vapor.
Reparei que à minha frente se sentava outro passageiro da noite, melhor, outra passageira, de longos brincos nas orelhas e olhos amendoados. Sem dúvida uma asiática das terras de além mar. Trocámos um primeiro olhar fugidio. Pareceu-me vislumbrar um discreto sorriso na sua boca bem desenhada. Ao seu lado repousava um trólei de viagem. Não sou, por timidez congénita, de meter conversa com estranhos. Nunca sei como começar. Dei voltas aos miolos para ver se encontrava um pretexto. Nada. Para mais não sabia que língua ela falava. Em línguas estrangeiras sou um desastre. Costumo citar Eça para me consolar: “devemos falar bem português, as outras línguas mal, orgulhosamente mal”. Retraí-me. Numa segunda troca de olhares a menina de olhos de amêndoa sorriu e num português bem perceptível disse: -Senhor, para ir para a Pousada da Juventude, saio nas Picoas? Decerto já tinha sido informada, mas quis confirmar. Fez-me lembrar a minha avó quando viajávamos de comboio e tínhamos que mudar de linha. Fazia sempre a mesma pergunta a diferentes funcionários. Nunca se enganava. -Acabei de desembarcar no aeroporto e é a primeira vez que faço este percurso. Venho do Japão, Nagasáqui. Vou estudar para a Faculdade de Letras. -Sim, sai nas Picoas. Como se chama? disse, para tentar alguma aproximação -Sou KumiKo O que me veio à mente, via memória, foi uma personagem da Crónica do Pássaro de Corda de Haruki Murakami.. A mulher do protagonista, chamado Toru, desaparecida no enredo da história. O mesmo nome. O cabelo preto curto. A vivacidade no olhar. Mas não podia ser. Simples coincidência. As personagens da ficção estão enclausuradas nas páginas impressas e só vivem na imaginação do seu criador, o autor, ou na recordação dos seus leitores. -Também saio nas Picoas. Se não se importar ajudo-a a chegar à Pousada. E mesmo que não saísse passei a sair. Não ia deixar a menina sozinha aquela hora tardia, embora ela me parecesse bastante destemida. Também, em tempos idos, andei perdido no metro de Milão à procura de uma Pousada, e houve uma alma caridosa que me deu a mão. -Fala bem português, disse para continuar conversa. -Comecei a estudar português na Universidade porque me interesso pela cultura portuguesa. Venho aprofundar esse estudo. Tomei contacto com essa cultura no Secundário onde se faz alusão à importância dos portugueses na história do Japão e na sua unificação, para além de serem os primeiros europeus a chegar ao Japão. Se for possível quero, aqui, ensinar o japonês. É verdade, pensei. O mundo é pequeno. Quatro séculos depois de três ousados aventureiros lusos, terem demandado, numa “casca de noz”, as costas japonesas, então isoladas do resto do mundo, vejo uma menina de olhos de amêndoa a aventurar-se num subterrâneo desconhecido de Lisboa, à descoberta de Portugal. Tantos séculos depois de homens montados numa cruz, onde acabaram por ser crucificados, talvez por terem convertido milhares de japoneses, aí está uma menina de Nagasáqui , confessa católica, possivelmente descendente de mártires do século XVI, a conhecer o país dos namban (bárbaros do sul) . O mundo é mesmo uma grande aldeia apesar de haver quem queira dividi-la com muros em cada esquina. A menina dos olhos de amêndoa ficou em segurança na Pousada. Palavra de escuteiro. Diz o ditado que “burro velho não aprende línguas”, mas se Kumiko vier a dar aulas de japonês talvez ainda vire burro novo e lá estarei a aprender, como um bom aluno. E quem sabe se ultrapasso a minha inapetência para línguas estrangeiras. Para Já fica garantido esse compromisso na crónica do Cota-diano. |
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