Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

26 Mar, 2016

Evangelhos

A história do cristianismo que hoje celebra a ressurreição de Jesus, simbolo da vitória da vida sobre a morte, mensagem de esperança numa redenção da humanidade, no caminho de aperfeiçoamento espiritual, que ultrapasse os limitados horizontes do conhecimento humano, não foi linear. No longo processo de construção de uma igreja organizada hierarquicamente, houve dissidências entre seguidores da vivência cristã. A leitura dos evangelhos gnósticos, considerados heréticos pela ortodoxia, permitem ter uma vísão mais humanizada de Jesus Cristo. Em tempo de reflexão pascal, aqui deixo alguns excertos do livro,

Os Evangelhos Gnósticos de Elaine Pagels

 

 

Entre grupos gnósticos tais como os valentinos, as mulheres eram consideradas iguais aos homens; algumas eram reverenciadas como profetas; outras funcionavam como professores, evangelistas errantes, curandeiros, padres, talvez mesmo bispos.
(...)
Contrariamente às fontes ortodoxas, as quais interpretam a morte de Cristo como um sacrifício redimindo a Humanidade da culpa e do pecado, este evangelho gnóstico considera a crucifixão como a ocasião para a descoberta do ser divino interior.
(...)
Eles (os gnósticos) estavam convictos de que ou a igreja visível - a rede efectiva de comunidades católicas - estivera enganada desde o princípio ou que ela se transviara. A verdadeira igreja, por contraste, era invisível: apenas os seus membros percepcionavam quem lhe pertencia ou não. Através da sua ideia de uma igreja invisível, a intenção dos dissidentes era oporem-se às pretensões dos que diziam representar a igreja universal.
(...)
Enquanto em épocas anteriores homens e mulheres cristãos se sentavam em conjunto para praticar o culto, em meados do século segundo - precisamente na altura do conflito com os cristãos gnósticos - as comunidades ortodoxas começaram a adoptar o costume das sinagogas, segregando as mulheres dos homens.

23 Mar, 2016

O morto-vivo

A trágica notícia chegou em carta manuscrita no correio da manhã. Clotilde Cavaco abriu o envelope surpresa, tirou a folha de linhas e começou a ler. De repente mudou de cor. Do rosado ao branco passando pelo roxo o seu rosto gastou todas as cores do arco-íris. As pernas recusaram-se a segurar o corpo em abalo sísmico. Espalhou-se pelo chão como um baralho de cartas em mão de batoteiro.

Aparecido Cavaco o irmão caçula saiu detrás do balcão onde pesava uma barra de sabão macaco para a Maria parda e correu a socorrê-la, Um copo de água, gritou. Helena atirou o filho encueirado para dentro da alcofa de palha, pegou no púcaro e de uma lata de Zinco serviu-se da água milagrosa do poço velho. Mais lívida que a cunhada esparramada no chão de ladrilhos vermelhos entregou o púcaro de alumínio ao atarantado consorce. Uma chapada de água trouxe Clotilde do seu apagão ao mundo real.

Maria Helena apanhou o papel de carta do peito arfante da desmaiada e começou a soletrar em voz balbuciante, Querida mãe, espero que se encontre bem de saúde, que eu quando esta receber já não devo estar vivo…

Enquanto ajudava a atarantada irmã a retomar os cinco sentidos, Aparecido ia tomando conhecimento da desventura do sobrinho. Que aconteceu ao adão? Desgosto de amor? Não, pior, continuou Helena com voz embargada, Como a mãe sabe chegou o dia de ir às sortes e para me apresentar a bom geito como todos os moços que lá vão mandei fazer um fatinho sem luxos no alfaiate aqui da vila, querida mãe o meu patrão, senhor Josué Salazar não me pode pagar a semanada e não tenho dinheiro para levantar a encomenda e mestre Cunhal não fia, não posso passar pelo vergonha de ir mal vestido, prefiro desaparecer deste mundo tão madrasto. Adeus mãe, mesmo morto gosto de si. A má nova correu célere pela voz da regateira mor, espécie de pasquim dos tempos idos, a Maria parda: O adão está morto e bem morto, digo-o eu que ouvi com estes que a terra há-de estar muito sem os comer.

Clotilde, recuperada, rompeu num pranto inconsolável. Aparecido tentava desesperadamente acalmá-la, Mulher aquieta-te, se conheço bem o teu filho e também, que gaita, meu afilhado, não está morto porra nenhuma…eu…eu vou tratar do assunto. Vou cuidar da mortalha, disse em tom irónico.

Montado na sua motoreta Saches,, saiu roncando num rasto de fumo cinzento de tristeza e dor. Já o sol do meio dia tinha engolido toda a sombra das ruas poeirentas da terra mãe de adão quando chegou à casa da Senhora Claudina, posto misto de registo civil , correio e bate-papo, o esperado telegrama. Clotilde não teve coragem para o abrir. A Claudina colocou as lunetas e Senhora do seu nariz, abriu com esmero perante a impaciência geral o pardo papel .Leu-o com a sua voz bem timbrada: está vivo de boa saúde.

Já o sol se começava a esconder-se atrás dum serro, depois de um dia de trabalho a amadurecer searas quando chegou a camioneta da tarde Do seu bojo de lata pintada e onde se lia a união faz a força, com a cedilha comida pelo tempo, saíram os moços das Sortes do ano em que tivemos um general sem medo. Alegres e bem aperaltados vinham acompanhados pelo tocador de concertina que iria abrilhantar o baile comemorativo dos novos soldados da nação. O mais ousado puxou da pederneira e com uma faísca certeira acendeu a bolsa de pólvora dos irrequietos foguetes, pum pum , pum.

Só então, enfiado no seu fato de ver a deus saiu algo envergonhado mas garboso o infeliz adão, recebido com abraços de alegria como se tivesse chegado de outro mundo. Os foguetes subiam na quietude da tarde e ribombavam assustadores para a passarada que formou uma nuvem de asas negras em direcção a outros horizontes.

A moçada que comparecera em força para receber os novos bravos do pelotão, gritou num coro afinado: viva o morto vivo.

 

No dia em que o iam enxovalhar Donjoão Estevens levantou-se como sempre às seis da manhã, vestiu a sua farda de caqui de cabo dos cantoneiros e dirigiu-se à cozinha onde a sua fiel mulher Perpétua já lhe preparara um quente café de cevada, a que sempre juntava umas sopas de pão trigo.

Acabada esta frugal refeição matinal, Donjoão verificou o estado da sua bicicleta. Despediu-se da mulher com um até logo sussurrado para não acordar os filhos que ainda dormiam o sono dos inocentes. Perpétua pediu-lhe como sempre que tivesse cuidado e recolheu-se à sua vida doméstica de esposa dedicada e mãe extremosa, capaz de calar e sofrer em silêncio a existência da outra, da puta como dizia de si para si, que com ela partilhava o corpo atlético do pai dos seus filhos.

Enquanto pedalava a sua bicicleta pela sinuosa estrada da serra, num sobe e desce carrocélico que parecia não ter fim, até chegar ao local onde os seus homens arranjavam as bermas ou remendavam o áspero alcatrão, Donjoão pensava em Rosaflor e no seu cheiro a urze brava.

No dia em que iam ser enxovalhados, Rosaflor dedicada e extremosa mãe solteira levantou-se aos primeiros raios de sol para preparar um almoço bem condimentado para o homem que dividia com a outra, a legítima e imaculada esposa. Acordou o filho, sem pai, e aviou-lhe a merenda que havia de levar para a escola da aldeia. Pôs um xaile nos ombros e dirigiu-se à venda do João Cabreiro. Enquanto fazia deslizar o seu corpo roliço pelas poeirentas ruas do monte pensava em Donjoão e um cheiro a forte a eucalipto perturbou-lhe os sentidos. Quando entrou na venda Já alguns madrugadores sugavam de funílicos copos o mata-bicho matinal.

- Senhor João pode aviar-me um litro de vinho - disse entre-dentes

João pegou no garrafão de palhinha que despejou numa medida de lata, devidamente aferida, enquanto Rosaflor tirava, sorrateiramente de debaixo do avental de chita uma garrafa que deu a o senhor João para depositar o tinto da sua ignomínia.

- Ponha na conta, se não se importa

-Sim, ti Rosaflor -respondeu o vendeiro - mas tenha cuidado, não exagere que esse pode trazer-lhe problemas.

Os devoradores de aguardente, olharam de soslaio para Rosaflor, enquanto aspiravam pelas goelas sequiosas o último gole do matinal mata-bicho. Num canto escuso, Gabriel G. Marques, meio irmão de Rosaflor por parte de pai, capador de porcos, vendedor de literatura de cordel e grande contador de histórias , disse para quem teve ouvidos para ouvir.

-Hoje vou xaringar esse filho de cabra mal parida. Vou tirar-lhos da gaiola – rosnava ao mesmo tempo que limpava na perna das calças a sua faca de contracepção por método natural.

-Não podes fazer isso no dia em vamos ser visitados pelo nosso Presidente. É uma desonra para toda a gente honesta e laboriosa da nossa aldeia - retorquiu João Cabreira.

Gabriel G. Marques, meio atarantado e algo titubeante pareceu recuar na sua intenção de vingar a honra da família, mas depressa se recompôs e qual vítima acossada das suas histórias, argumentou com toda a prosápia:

-Vou respeitar a presença de sua Excelência, o mais alto magistrado desta nação nobre e valente, mas quando ele se retirar para o seu palácio, acabo com a futura descendência daquele cão danado.

Rosaflor trabalhava na casa de um lavrador para poder criar o filho. Nunca se soube quem a emprenhou quando era ainda muito jovem. Dizia-se que um forasteiro a tinha seduzido num baile de fim das colheitas. Havia quem os tivesse visto sair afogueados a meio da noite, vendo-os desaparecer por entre as estevas. Havia quem jurasse a pés juntos que fora o filho do lavrador onde ia sempre fazer a monda,  que numa manhã fresca de Primavera este lhe tirara a honra no meio dos trigais. Mas a verdade, ninguém a sabia.

No dia do seu suplício Donjoão reuniu os cantoneiros de diversos cantões para fazer uma limpeza geral da estrada sob sua jurisdição. Sua Excelência o senhor Presidente da República ia utilizá-la para fazer uma visita ao bom povo português das terras esquecidas.

Acabado o trabalho, os cantoneiros pegaram nas suas ferramentas e dirigiram-se para junto da povoação a fim de aclamar sua Excelência. Quando avistaram as primeiras casas já uma pequena multidão se acotovelava para conseguir o melhor lugar. À frente do povo, nas suas melhores vestes domingueiras, estavam o Presidente da Junta e o senhor Regedor: Os cantoneiros sob o comando do seu cabo, perfilaram-se na berma para com as pás e as picaretas, à falta de melhor material, para fazerem a guarda de honra.Com ar carrancudo e um pouco comprometido chegou Gabriel G. Marques . Todos os olhos se viraram e reviraram para o infeliz cabo Estevens. O povo cheirava caso, e esperava mudo, o desenlace da tensão. Mas de repente, surgiram na curva da estrada, os primeiros carros da comitiva Presidencial e todos se perfilaram para receber o senhor Almirante. Os carros abrandaram, mas continuaram serenamente a sua marcha. Na janela de uma viatura, um senhor sem cabelo e vestido de marinheiro, esboçou um sorriso na cara de pau e acenou para os assistentes que o olhavam boquiabertos. Num ápice a comitiva desapareceu noutra curva da estrada. O povo e os seus representantes debandaram desiludidos, cabisbaixos e sem dizer palavra.

Os aldeões regressavam a suas casas, com os chouriços, os presuntos e as gordas frangas que deviam presentear o senhor Presidente. O cabo Estevens despediu-se dos seus cantoneiros, montou a sua bicicleta e pedalou ansiosamente para casa de Rosaflor. Um dos seus homens ainda tentou avisá-lo do que lhe ia acontecer, mas não teve coragem. Gabriel G. Marques seguiu-o, cambaleante de muito bagaço. Alguns populares largaram ali mesmo as aves do Presidente e como uma tropa desordenada foram atrás do capador.

Quando o sol estava quase a esconder-se atrás dos montes mais altos, Donjoão Estevens desmontou a sua bicicleta de metal junto do quintal de Rosaflor e entrou directamente para a cozinha, onde já se sentia o odor a temperos campestres do jantar que iria compartilhar com a sua amante. Pouco depois chegou exausto pela marcha forçada em duas patas Gabriel, o capador, que perdeu o seu primeiro objectivo: esperar a sua vítima à entrada da casa do perjúrio.

Desorientado, dirigiu-se ao poço público de onde retirou um balde de água. Com o balde numa mão e faca na outra caminhou apressado para a a casa da vilipendiada irmã, gritando para que todos o ouvissem:

- O coelho escapou-me, mas vou tirá-lo da toca…

Quando o cabo Bonito (apenas de nome)da Guarda Nacional lhe perguntou porque tinha praticado tal acto, Gabriel G. Marques alegou defesa da honra da família e abuso de uma mulher só e desprotegida. O Bonito olhou-o com um ar perspicaz e pensativo. Depois tirou do dedo a aliança de casamento e colocou-a à frente do Estevens, pedindo-lhe para enfiar nela o seu dedo. O cabo bem tentou fazê-lo embora sem perceber a intenção, mas não conseguiu porque sempre o Bonito lha retirava do seu raio de acção. Então, como se diz, nos autos, o interrogador concluiu que nessas coisas de fornicação a responsabilidade é mútua. Perguntou-lhe ainda se estava arrependido do que tinha feito ao que o acusado respondeu com altivez, dizendo que obviamente (palavra que gostava de utilizar desde a última campanha eleitoral) voltaria a defender a sua honra. O cabo Bonito perdeu a sua compostura militar, desenrolou o cavalo marinho e descarregou-o com toda fúria no lombo de Gabriel Marques, afirmando com ar ameaçador “ se voltas a tocar num pelo de um servidor da nação”, prendo-te como comunista e mando-te para o presídio de Peniche. Gabriel Marques assustou-se e balbuciou “isso não ,isso não”

Rosaflor disse no interrogatório ao cabo Bonito que não confirmava, nem desmentia o sucedido, frase que depois entrou no argumentário nacional sempre que não se quer falar de um assunto incómodo.

Já o Regedor confirmou que fora informado que o Marques queria capar o Estevens, mas que lhe tirara a faca a tempo de isto não se concretizar, como era seu dever de autoridade da nação.

João Cabreira, o vendeiro, afirmou que ouviu Marques fazer a ameaça, mas nunca acreditou que a cumprisse, pois até como capador de porcos “deixava muito a desejar”.

Quando Estevens entrou na casa onde ia ser enxovalhado Rosaflor corrigia os temperos da cabidela, enfiada numa camisa de nylon transparente e ao senti-lo aproximar-se disse:

- A carne está quase cozida….

- …Eu agora prefiro carne crua, retorquiu o Estevens, ao mesmo tempo que a agarrou e atirou para cima da cama de ferro forjado que estava ao lado da chaminé.

Gabriel G. Marques subiu para o muro do quintal com o balde na mão e a seguir alcandorou-se para cima do telhado de caniço.

Estevens e Rosaflor rebolavam na cama, tal e qual como quando saíram da barriga das mães, indiferentes a todo o bulício que vinha do exterior.

O capador, conhecedor da casa, percorreu com patinhas de gato o telhado até ao sítio pretendido, levantou umas telhas e despejou o balde de água fria em cima dos dois acalorados amantes, que primeiro sentiram um arrepio por todo o corpo e depois olharam para o tecto apavorados, enquanto Gabriel Marques .sussurrava entre-dentes:

-Vou-tos tirar grande filho da puta.

Rosaflor empurrou o amante para fora da cama, balbuciando.

-Foge, Donjoão, senão este tarado ainda te capa.

Estevens saiu apressado, montou a sua bicicleta sem a sua farda de funcionário da República e pedalou com toda a força que as suas pernas, só protegidas por frondosos pelos, conseguiam aplicar.Gabriel Marques saltou do telhado com a faca de capador nos dentes e correu atrás do ciclista amancebado, mas as suas pernas não o conseguiram acompanhar. Parou para não deitar os bofes pela boca, de onde já caíra a faca, dizendo com voz arrastada: um dia ainda te limpo o sebo.

O da bicicleta continuou freneticamente a pedalar, escondendo as suas vergonhas do escuro da noite e da faca afiada do capador falhado.

 

 

 

 

iniciacaosexual_ilustracao_rcarvalho.jpg

 

Naquele dia de Junho, dos anos 60, a camioneta da carreira da tarde esgotou a lotação. Ao longo do seu percurso na serra algarvia, foi-se enchendo de mancebos que demandavam a sede do concelho, ,no dia seguinte, se apresentavam às sortes. Entre eles viajava Aníbal Cavaco, jovem ainda imberbe, mas que ia ser sujeito à prova de aptidão para soldado da nação.

Na sede do concelho, Aníbal e o grupo da sua aldeia dirigiram-se à pensão Maria Ana, nas margens do sapal, onde pretendiam pernoitar . Bateram com a mãozinha de Fátima, resquício da passagem muçulmana e esperaram breves instantes. Na soleira entreaberta, divisaram uma mulher baixa, alourada e montada nuns chinelos de pana, made in Espanha, que os olhou com bonomia.

-D. Mariquinhas, disse o Chico Rufia, um latagão de quase dois metros e que se assumia como chefe, esta malta precisa de camas para descansar os ossos. Mariquinhas que já o conhecia de outros Entrudos balbuciou: -para ti Chico dá-se sempre um jeito. Mas quantos são os alarves. - Mais de uma dúzia, disse o Rufia, olhando em redor e calculando a olho. -Só se não se incomodarem de dormir aos pares, informou Mariquinhas.

-Homessa ti Mariquinhas, isto é malta séria.  Mariquinhas conduziu-os por um longo corredor alumiado por telhas de vidro e distribuiu-os por pequenos quartos, mobilados com uma cama e um lavatório de ferro. De cada lado da cama, encimada por um quadro da última ceia, indispensável num lar católico, havia uma mesinha de madeira pintada. Do tecto pendia presa num fio eléctrico, uma lâmpada de luz bruxuleante. Os moços das sortes foram-se instalando com a sua bagagem, enquanto Ana,a filha de Mariquinhas, que optara por ficar solteira, à falta de pretendente, preparava o jantar de caldo de repolho, bem condimentado com toucinho de porco serrano. Acabada a refeição, o Rufia, aproveitou a saída das mulheres, levantou-se e ciciou: - Agora como é da tradição vamos às putas. Quem ainda os não perdeu, tem que ser hoje, ou não faz jus ao bom nome do soldado português. Vinte paus é quanto leva a Mercedes para esfolar cada bezerro. Faço-me entender? Então vamos que se faz tarde e hoje a procura é muita.

Mercedes,uma matrona de meia-idade, bem nutrida, mas ainda viçosa e prestável para a função, supria a menor juventude com muita experiência. E o facto é que até então nunca tinha havido queixas. A encartada do sexo, tinha casa aberta e autorizada, sujeita a imposto municipal nas faldas do velho castelo que já fora dos castos monges Templários. Naquela noite, Mercedes, não dava mãos nem pernas a medir. A clientela vinda de todo o concelho compareceu em peso. Mas não podia dar-se ao luxo de perder um dia assim tão farto. Só acontecia em ocasiões festivas. Começou a atendê-los a todos, um de cada vez, claro. - O próximo, chamou Mercedes. Levantou-se algo atrapalhado Aníbal Cavaco, enquanto arrastava os pés para dentro do consultório.

Esparramada na cama, estava uma dama tal como veio ao mundo. A cor do rosto esfíngico de Aníbal escorregou-lhe até aos pés, e ficou como que pregado ao soalho de tábuas enceradas. A únicas fêmeas que vira nuas, eram cabras, vacas e outros animais de pasto. - Então moce que estás a fazer aí especado? Vieste para biombo de sala? Despacha-te que há muita gente à espera. Passado o primeiro impacto, Aníbal lá se foi despindo sempre em crescendo. - Ó móce dum raio pelos vistos és melhor de coiso que de conversa. Anda cá que eu tiro-te da aflição. Aníbal atirou-se prá frente como potro no cio e descarregou na matrona a sua ansiedade quase sem a deixar tomar ar. "-Mais devagar rapaz, não vás com tanta sede ao pote, conseguiu balbuciar a experiente donzela."

A maltesaria satisfeita de corpo e mente, saiu para ir dormir e retemperar forças para a prova do dia seguinte. Mas Aníbal Cavaco recusou-se a acompanhá-los. -Eu ainda fico, disse convicto. Bem tentaram demovê-lo, mas em vão. Esperou que todos saíssem e voltou a entrar, agora mais afoito, no aposento da matrona. -Que se passa, disse ela, ao ver de novo aquela inconfundível figura. Vens fazer alguma reclamação? -Nem pensar, disse na sua pose lingrinhas, eu só queria repetir…-Tá bem, desde que tenhas dinheiro para pagar, replicou Mercedes. Voltaram a rolar na cama enquanto rolaram notas de vinte escudos, acabando por adormecer, ambos, de cansaço.

-Vamos levantar cambada, está na hora da inspecção, gritava D. Mariquinhas enquanto abanava, freneticamente, um chocalho de vacas. Chico acordou assarapantado e mais assarapantado ficou quando não viu Aníbal que lhe calhara como parceiro de cama.

-Malta, alguém viu o Aníbal ? perguntou o Rufia, denotando preocupações de chefe.

-Não, afirmou um coro de vozes desafinadas, "se calhar já foi"!

O sargento cumprimentou os jovens com jovialidade e boas maneiras, dizendo: tirem-me essa roupa, lesmas de merda. Quando todos libertaram o corpo, o inspector começou a tomar notas, enquanto um cabo media, pesava, observava. Um capitão de meia-idade e cabelo grisalho, assistia discreto toda a operação. Já a inspecção ia a meio, quando no limiar da porta da sala surgiu Aníbal Cavaco, trôpego, macilento com os olhos a sair das órbitas, mais zombie, que futuro soldado da nação. - Quem é esta alma penada, berrou o capitão, espantado, enquanto rodava furiosamente o pingalim. -"Perdão senhor...é que"...balbuciou Aníbal.

-Desembucha, se não ainda te parto este chicote no lombo, campónio armado em chico-esperto. -"É que passei mal a noite, caiu-me mal o rap olho"...uma risada bem sonora ecoou por toda a sala, e até os reposteiros às flores começaram a agitar-se expectantes. O capitão não resistiu a tanta hilaridade e a custo balbuciou: -Despe-te lá, nabo encartado. Pensava que já não havia disto. Acabada a inspecção os mancebos foram recebendo uma folha que os habilitava como futuros defensores da pátria. Aníbal Cavaco, recebeu a sua folha olhou e leu, em letras vermelhas: INAPTO. Nesse longínquo dia, Aníbal não conseguiu ter a suprema honra de ser soldado português, mas demonstrou invulgar capacidade de participar em rituais iniciáticos e deles tirar todo o proveito.

Estava na cafetaria de um supermercado próximo de si, a degustar o económico menu 2, fruto da generosidade do dito supermercado, quando uma revoada de ciganos me tirou do meu doce remanso. Vestidos de negro pareciam um bando de aves, assim tipo corvos, à procura de alimento. Na mesma linha de linguagem conotativa ali pousaram ocupando mesas e mais mesas. Ainda estes estavam mal pousados, entra outra revoada. E eu a ver, sem nada puder fazer. Pudera, não sou sapo. Fosse eu esse animalzinho e os ciganos passavam de fininho, tolhidos de medo, e não punham lá os butes. Assim garanto que nem me viram.

Concluo que a gerência do aludido estabelecimento não se sente incomodada com a etnia rom, senão teria decorado o lugar com adereços à base de sapos. É por demais evidente que sapos e ciganos não se coalham. Diz-se que os ciganos têm pavor dos ditos batráquios. São mau agouro. Funcionam como os espantalhos para a passarada. Mas estes ciganos debicam, civilizadamente, os menus económicos, pagam o justo preço, e depois vão à sua vida. Juro que vi com olhos de ver.Ali os sapos não têm futuro.

Futuro tem a bela senhorita, que na mesa do lado, vai molhando,desajeitadamente, o pão no café com leite, indiferente a quem a rodeia, incluindo ciganos e outros fulanos, como a minha pessoa. Menos indiferente está a dama da mesa da frente, já "entradota", que entre uma colherada de sopa e uma espreitadela no telemóvel, me lança olhares fugidios.Só espero que não me esteja a confundir com os ciganos. Já a anciã da mesa do canto me brinda com um sorriso, enquanto se queixa que não consegue abrir a caixa da sopa. Ainda ponderei agir mas refreei-me. Devolvo o sorriso, para não parecer cara de pau, e aconselho-a a pedir ajuda a uma funcionária. Ainda se fosse a senhorita que me pedisse para lhe molhar a sopa, vá que não vá. Numa acção de bom samaritano, está bom de ver.

E pronto. Fui saindo, discretamente, do meio da tribo cigana, mas ainda me deparei com um cidadão, mais para lá que para cá, com um jornal aberto em cima de uma mesa. Nada que mereça registo. O que despertou a minha atenção foi estar mergulhado com a cara em cima do tablóide, de nome impronunciável.. Das duas uma: ou é miope ou snifa    o cheiro da tinta. O Afinal nem uma nem outra. Dormia, serenamente, no conforto das noticias impressas. Talvez fosse um príncipe à espera de voltar a sapo. Ainda bem que não voltou, senão bye bye "ciganada" e assunto para crónica zero. Fraco assunto, mas assunto.  Coloquei o tabuleiro, educadamente, onde devia ser colocado. Saí. Dei-me a escrever este texto que não acrescenta nada ao nada que se passou. Amanhã será outro dia com ou sem ciganos, sapos e fulanos, num supermercado perto de si.

MG

 

 

  

Que posso dizer sobre Nicolau? Que era um grande actor, criativo e versátil em todos os géneros, que inovou a ficção, que representou, dirigiu e realizou, que era um excepcional ser humano, que viveu de forma positiva? Muitos (e melhor) o dirão. Na sua partida inesperada, singelamente, dedico-lhe um poema de Zeca Afonso(adaptado):

 

A morte saiu à rua num dia assim

Naquele lugar sem nome pra qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai

E um rio de vida dum peito aberto sai

 

O vento que dá nas canas do canavial

E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu

Vão dizendo em toda a parte o artista morreu

 

Teu vida, Actor, reclama outra vida igual

Para que continues para sempre um imortal

À lei assassina à morte que te matou

Teu corpo pertence à arte que te abraçou

 

A tua pegada artística não terá fim

Cada dia dia te lembraremos sempre assim

Na curva da estrada há covas feitas no chão

E em todas florirão rosas duma nação

Ao fim de cem dias este Governo já sofreu mais contestação das corporações profissionais que o anterior durante toda a legislatura. Os suinicultores, que pelos vistos iam de vento em popa, passaram de um dia para o outro a navegar contra ventos e marés. Desde que este Governo tomou posse fizeram, se não me falha a memória, três protestos, sendo o último uma espécie de acção selvagem, que procurou causar o caos em Lisboa. Também as empresas de transportes que durante quatro anos não levantaram a voz, sofrendo em silêncio, aumentos de combustíveis e impostos, ameaçam agora guerra ao governo socialista. Falhado o plano A da oposição PSD/CDS, que tinha sérias esperanças que o Orçamento fosse chumbado, e tudo fez para isso, pela Comissão Europeia, surge uma nova estratégia. Arrisco  dizer que podemos estar perante um plano B: procurar desestabilizar a economia e a vida dos cidadãos, recorrendo  às suas forças no mundo empresarial. A agressividade demonstrada pelos sectores referidos, e outros se podem seguir, leva a pensar que o Governo não terá tréguas por parte da direita. Vai valer tudo. Na geringonça, vai ser preciso firmeza e inteligência.

MG

PS  y no creo em brujas, pero que las hay, las hay

Ó Miguel,

 

Travei o passo, mas continuei a avançar. Afinal há mais marias no mundo. Aquele chamamento não devia ser para a minha pessoa. Nem estava muito interessado que fosse, pois quando alguém me aborda é para me pedir algo, ou vender alguma tralha.

 

-Miguel Vasconcelos,

 

Hesitei. Diacho, se calhar sou eu o visado. Desde que o dito nome é sinónimo de traição tornou-se pouco comum. Continuei a caminhar, mas pelo sim pelo não, fui olhando pelo rabinho do olho. E aí começou a desenhar-se na retina a figura esguia de Félix Chato Fininho. Agora não havia dúvida, o Chato estava no meu encalço. Não tinha alternativa. Parei, virei-me devagar e afivelei um sorriso de circunstância

 

-Então Miguel como vais?

 

O Chato foi meu colega de trabalho. Não o via há uns tempos, mas é o tipo de cidadão que não queria encontrar nem para beber um copo de bom vinho alentejano. Nem o recomendaria para genro da sogra mais empedernida. Aliás o fulano nem sogra tem. Em tempos foi casado com uma sua aluna dos cursos nocturnos, uma alentejana roliça e bem torneada, mas agora vive sozinho num T2 da periferia. Articulei mecanicamente uma frase batida, "gosto em ver-te" enquanto que a ideia que me borbulhava na mente era "gosto em ver-te coisíssima nenhuma".

 

-O que tens feito?

 

O que me apeteceu dizer foi: "o que tens a ver com isso ó "palhaço" andante?". Comedi-me. Há palavras que se tornam anátemas. Essa coisa da frontalidade é uma grande treta. Em nome da boa educação, temos que engolir muitos sapos. Mas que custa custa. Eu até compreendo que a criatura também seja filho de Deus, embora às vezes não pareça. Penitencio-me se é blasfémia. Mas este arrependimento é só retórica verbal, senão não tinha perguntado "como vai a família" a um gajo que vive sozinho, não sei se por opção, contingência ou espírito de eremita.

 

-... (silêncio)

 

Nem sei como a ex-mulher ainda partilhou com ele a mesma cama durante uns anos. Mas que partilhou, partilhou. Tanto mais que lhe fez uma filha. O que para ela não era coisa nova, pois quando se juntou com o Chato trouxe como prémio um filho de uma outra relação não concretizada. Era o que se chamou, em tempos, uma mãe solteira. Se calhar embarcou na aventura por se encontrar numa situação de fragilidade. E estava ali disponível o setôr Chato Fininho que lhe garantiria alguma estabilidade. Ou então, foi mesma paixão da aluna pelo mestre. Acontece muitas vezes. Quem nunca lhe sucedeu é porque é mesmo um estafermo inconcebível. Seja como fôr, se a moça se embeiçou por tão assumido cretino, não merece crítica, pois à primeira qualquer cai. Não sou nenhum santo, mas quando lhe percebi o embaraço do estupor, puxei pela minha costela misericordiosa, e mudei de assunto:"quero dizer...como vai a tua filha?"

 

-Faz tempo que não a vejo. Alíás, só me visita para me cravar. É tal e qual a puta da mãe...

 

Embatuquei e mordi a língua para não disparatar. Não gosto de ver destratar uma donzela, seja qual for a sua orientação sexual. Sou, ainda, um cavalheiro à antiga. Atalhei conversa. Meti um lugar comum: "e essa saúde?" Resulta sempre.O Chato começou a discursar com todos os pormenores sobre mil maleitas, mas deixei do ouvir. Veio-me à superfície do pensamento mais uma especulação. Imaginei a ex-mulher, anos a fio a aturar esta verborreia. Mas esse sacrifício foi recompensado. Valeu-lhe ter tirado o curso de Solicitadora que lhe permite estar bem na vida. E até acho que esse sacrifício justifica a aldrabice que lhe pregou quando o convenceu a comprar um terreno, em nome da mãe que a pariu, para construir uma vivenda. O otário pagou o terreno e a construção e ficou sem nada. E se, entretanto, a infeliz vítima do Chato já deita outro na cama que ele pagou, são coisas que acontecem. Tem a seu favor a evidência de ter pago um alto preço. Foram muitos anos de tormento. Sim que o Chato é dose.

 

-Tenho que ir, vou entrar às dezanove...

 

Aleluia, pensei. Agora já não me polui o quotidiano, a não ser com conversas de ocasião e por breves instantes. Mas em tempos idos, quando trabalhamos juntos, torrou-me a paciência com picuinhices e confusões de baralhar um comunista ortodoxo. De facto, não conheci maior artista na arte de complicar o que era fácil. Onde quer que estivesse. Certa vez, no Alentejo profundo, meteu-se de tal modo na vida do enteado que tirou a ex-sogra do sério e palavra puxa palavra chegaram a vias de facto. Posto na rua, em plena noite, percorreu mais de dez quilómetros à pata por trilhos de sobreiros até à vila mais próxima onde apanhou um táxi para casa. Mas quando chegou já a ex-mulher, por antecipação, tinha mudado a fechadura. A partir daí consta que viveu na garagem até se mudar para o seu apartamento. Foi o seu canto de cisne na vida da fogosa alentejana.

 

-Então, até mais ver.

 

Apertei-lhe a mão fria e esquálida. "Fica bem" disse na despedida, omitindo a última palavra da frase que ficaria com o seguinte sentido:"Fica bem mal".

 

A verdade é mesmo uma batata. Muda de sabor e de forma de acordo com o cozinhado e com o cozinheiro. Tenho algumas razões para não gostar do Chato Fininho. Apresento-o aqui como o mau da fita. Mas honestamente, às vezes, só às vezes, interrogo-me se assim será. Se calhar nem mereço os seus cumprimentos. É que o infeliz, não sabe, nem sonha, que vivo na casa que ele pagou e que partilho a cama e o que isso implica, com a sua ex-mulher. E nem tenho razão de queixa. Limitei-me a apanhar a fruta que ele amadureceu. Se não fosse eu, era outro. Ao fim e ao cabo tenho de me auto-convencer que não sou uma peste nem o verdadeiro mau da fita.

Rei morto, rei posto, sai um presidente entra outro. E foi grande a festa, pá. O que saiu não deixou saudade, o que entrou trouxe esperança. E foi grande a festa, pá. Houve discurso, animação,comida e cantoria, como num casamento. Gente feliz. E a folia prolongou-se por três dias, como nos casamentos ciganos. O povo merece depois de dez anos de solidão presidencial. Mas agora esperamos que a Presidência não se transforme numa agência de espectáculos, e o novo Presidente num bobo da Corte. Trabalho é trabalho e conhaque é conhaque. Chegou a altura de fechar a garrafa. Mãos à obra. Arraial, arraial, por Marcelo I.

MG

 

poss.jpg

sem nome.png

 

 

Cavaco Silva escolheu para o imortalizar na galeria dos presidentes da República, o pintor Barahona Possolo. Este pintor tem como matriz a pintura de nus, com muitas referências à Antiguidade Clássica. O erotismo está bem presente na sua obra. Sabe-se que terão sido pintados dois retratos, tendo o Presidente escolhido um deles. Não conhecemos o rejeitado. Conhecemos o que figurará para a posteridade. Austero, hirto, institucional. Tão fiel como uma fotografia. Sem um rasgo de genialidade. Sem uma centelha da personalidade do retratado. Ficamos sem saber se essa captação do lado oculto por detrás da máscara, estará na tela rejeitada. Seja como for, no ar fica uma dúvida:  Porque escolheu Cavaco, Barahona Possolo? Porque aceitou Possolo fazer uma cópia fotográfica em detrimento da liberdade estética?

 

Pág. 1/2