No dia em que ia fazer onze anos acordei, como sempre acontecia, com a luz matinal que de mansinho escorria pelas frinchas do caniço. A tenebrosa escuridão que me mantinha escondido, entre a enxerga e o cobertor, ia desaparecendo tal como os medos que à noite me povoavam a mente.
Percorri ensonado o corredor que me levava até à pequena cozinha da casa dos meus avós com quem vivia por opção. Da esculateira desprendia-se o aroma do café de cevada que todas as manhãs me aconchegava a barriga. Sentei-se na acanhada e tosca mesa. A avó Maria, alta, magra, quase esfíngica, colocou numa tigela de barro as sopas de café, cheirosas e fumegantes.
O avô, José Carpinteiro, pequeno mas maciço, regressou da sua ida até à venda do Serafim, volta que dava todas as manhãs para “matar o bicho”. Olhou-me e disse:
-Hoje vamos pescar p’ra a ribeira. Temos de apanhar peixe para fazer uma assada. Ouviu e após um breve silêncio retorqui timidamente:
-Mas eu não sei pescar, nem tenho cana de pesca. O avô saiu da pequena cozinha de pedra solta e passados breves minutos regressou com duas canas de pesca.
-Aqui estão as canas - disse. Pega na tua e vamos partir. Temos uma longa caminhada pela frente.
Partimos em direcção ao local da pescaria. Calcorreamos as margens da ribeira durante cerca de três quilómetros. Nunca tinha percorrido aquele caminho Observei as cores policromas da vegetação ribeirinha. Ouvi os sons dos barrancos a correr e os cantos matinais dos pássaros. Assustei-me com o restolhar dos pequenos arbustos. Seria a manhosa raposa ou a sibilina cobra? Mas sentia-se seguro junto do meu avô.
Chegamos às Pernadas, sítio onde se juntavam duas ribeiras, que tinham decidido unir-se para enfrentaram com mais coragem a sua entrada no grande rio. O silêncio quase assustava. Não se via vivalma. Afinal era domingo, dia de descanso. De repente, a silhueta de uma figura humana desenhou-se no horizonte. Quem será? - pensou José
A figura tornou-se cada vez mais nítida. Não tinha sapatos e vestia uma roupa suja e gasta. Pensei que seria mais um pescador solitário, pois trazia consigo uma cana de pesca.
- Bom dia - disse o homem.
-Bom dia - respondeu o avô. Será que temos peixe?
O homem fez um gesto enigmático e continuou o seu caminho.
-Hoje só temos a companhia do “Descalço”, disse o avô.
“Descalço” era uma pessoa estranha àquela pequena comunidade rural, embora nela se integrasse temporariamente. Era caldeireiro de profissão e todos os anos aparecia com as chapas e martelos. Arranjava tachos e panelas, fazia tabuleiros de lata, e depois partia, tão discreto quanto chegara com os seus parcos haveres. Ficava apenas a sua sombra: os pequenos trabalhos, os poucos proventos, a aparente boa disposição, quando ao fim do dia o vinho escorria sem cessar pela sua goela.
Instalamo-nos num pequeno terraço, junto à margem e preparamo-nos para iniciar a pescaria. A água estava ludra mas serena. O avô carregou os anzóis com minhocas e explicou-me como devia proceder.
-Quando o peixe picar e esticar o fio, puxa logo a cana!
Tinha esperança que os peixes o ignorassem. Não me sentia nada seguro. Atirei o fio para dentro de água e esperei. Quando a cana estremeceu puxei-a. Agarrado ao anzol vinha um peixe prateado que se contorcia para ganhar a liberdade. Tentou agarrá-lo, mas era escorregadio e viscoso. Soltou-se da minha minúscula mão, procurando freneticamente voltar para casa. E teria voltado, se o avô não o tivesse apanhado com a sua mão forte e sapuda. Era um belo exemplar de barbo, escamas largas e douradas. Brilhava ao sol. O avô pôs o peixe no velho cesto de cana.
Para mim aquele peixe parecia uma prenda impossível. Era como se tivesse a missão de dar-me os parabéns pelo seu aniversário.
O avô voltou a alimentar-me o anzol. lançei-o de novo para o pego. Outro peixe picou e a cena repetiu-se… O cesto enchia-se com os reluzentes barbos que rodopiavam à volta do anzol à espera da sua vez.
O avô lamentava-se: - Na minha cana não pica nenhum…
-Deixe lá avô, já apanhámos bastantes.
O “Descalço” voltou a passar junto a nós, com ar cabisbaixo e desiludido, remordendo entre dentes:
- Vou-me embora. Hoje não consigo apanhar nada. Parece que os malditos se zangaram comigo.
-Pois comigo também - respondeu-lhe o avô. Só picam na cana do moço. E têm razão. Afinal ele é que faz anos!
-Eu já nem sei quando faço anos, nem tenho netos para os poder comemorar, lamentou-se o "Descalço".
Quando a hora do almoço se aproximava, regressamos a casa com o cesto bem atulhado.
A avó Maria juntou uns cavacos e fez uma fogueira nas traseiras da casa. Logo que as labaredas se cansaram de crepitar, o avô pôs os peixes numa grelha de ferro, sobre as brasas. De vez em quando remexia-as, fazendo-as reviver por entre o nada do fogo.
José, seguia a cerimónia com ansiedade. Crescia-lhe a água na boca a pensar no esperado pitéu. Finalmente o avô anunciou:
- Estão prontos. Vamos a eles!
Vá-se lá saber porquê, José não voltou a pescar. Do gosto do peixe já não se lembra, mas na sua memória aquele dia continua tão nítido e tão presente como se estivesse sempre a acontecer.