Os meus dentes andam às turras comigo desde a mais tenra idade. Ainda durante a infância começaram a dar-me umas ferroadas nas gengivas. Começou aí a minha relação de amor e ódio com uns senhores a quem chamavam dentistas. Durante a adolescência, os filhos de cabra mal parida, sim porque também as há de fazer arregalar o olho, meteram-se em cavalaria altas e chatearam-me o juízo, que por cima ainda era pouco. Depois de muitas "reives" de chocolate, deram em ser roídos pelo bicho. E vai daí os denominados dentistas, munidos de alicate e de outros instrumentos de tortura autorizados, mandaram-nos pastar para outras latitudes.
Os que escaparam ao bocheche com água de vinagre, de certo de melhor casta, chegaram aos tempos em que os dentistas foram substituídos por estomatologistas. Mas agora estão precisar, constantemente, de reparo e revisão. Começou o meu calvário para os manter dentro da boca e poder ter um sorriso sem assustar as eventuais caras lindas, com que por aí me vou cruzando. Se os perder fico prisioneiro das desdentadas, coisa que me angustia os dias que não são eternos.
De tempos a tempos lá vou, contrariado mas convencido, ao consultório fazer um botox dentário. Contudo a minha relação com o meio melhorou desde que passei a ser paciente da doutora Isabel Alçada. Usa os mesmos instrumentos castigadores, mas compensa com um corpinho de fazer inveja aos modelos danone, e no qual não me importava de dar umas dentadas. Aliás, depois de acabar o trabalho e quando a doutora me coloca uma espécie de borracha entre os dentes e me diz "morda" fico sempre a pensar: "que raio, com tanta coisa mais tenrinha para morder, logo tem de ser numa lasca artificial". Dá para ver que a ida ao dentista é sempre uma aventura.
Tenho vindo a descrever aqui as minhas aventuras no consultório. Para pôr as contas em dia vou recordá-las em breves palavras. Tudo ia bem com a doutora até ao dia em teve a (in)felicidade de perder o marido, com a agravante de ser suspeita de o ter assassinado. Conseguiu livrar-se dessa acusação, com um bom alibi, no qual colaborei. Tanso.Quem não colaborava com aquele palminho de cara?! Depois apanhou com a surpresa de saber que todos os bens tinham sido deixados por testamento a um bastardo desconhecido.
Ontem, dirigi-me ao consultório para mais uma revisão de rotina. A doutora recebeu-me com a mesma afabilidade, mas pareceu-me estranha. Utilizou as brocas e similares com a mesma proficiência. Enquanto executa a sua tarefa fecho os olhos e para me abstrair, apenas para me abstrair, imagino-me a ziguezaguear nas curvas sinuosas da doutora. Quando ela diz "pode bochechar" ainda não entrei na recta da meta. Recorrentemente. Bochecho contrariado.
O pior estava para vir. Foi quando a doutora me disse cruamente: "é a última vez que o atendo." Corei! Será que doutora captou os meus pensamentos libidinosos? Continuou: "este consultório já não me pertence. Resolvi emigrar". Respirei aliviado. Do mal o menos. É mais um quadro que vai para a emigração. Tenho pena. Bateu-me um desejo recalcado. Desde que a doutora ficou de coração liberto que tinha a vontade de a acolher no meu coração solitário. Sempre fui um romântico.
"Conheci um colega de profissão que tem um consultório na Holanda. Conhecemo-nos no facebook. Vou iniciar uma nova vida em todos os sentidos". Maldito facebook. É para isto que serve. Encontros matrimoniais ou outros. Vaidades. Fugazes momentos. Cinco minutos de fama. Amigos a dar com um pau. Nas suas águas inquinadas, levou-me a minha dentista.
Saí cabisbaixo. Desdenha quem quer comprar. Desdenhei. Que vá pró raio que a parta. Livrou-se de ser arguida, mas quem sabe. A justiça agora só se interessa por casos mediáticos. Não ponho as mão nela, nem no fogo. Do que eu me livrei, pois quem mata um, mata um cento. Que se cuide o facebokiano holandês. Há males que vêm por bem, blablabla.
E pronto. Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto. A doutora Isabel Alçada vai. Eu fico. Não emigro. Espero que passe a borrasca. Fico no meu papel. Afinal não sou paciente?
MG