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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

27 Mar, 2015

Está tudo cego?

Ao que tudo indica, o senhor que ocupa a Presidência da República, assume-se mais primeiro-ministro que Passos Coelho. Já lhe conhecíamos a faceta de partidarismo na condução das suas funções. Tem-no demonstrado até à saciedade durante este segundo mandato. Agora que chegasse a este radicalismo de considerar que toda a crítica feita à governação e aos comportamentos incorrectos dos governantes, não passa de trica partidária, roça o absurdo e envergonha o ridículo. Para além de constituir uma falta de vergonha que desprestigia a função que exerce. E ao fazer campanha descarada pela coligação governamental, não estará a desrespeitar as regras de isenção fundamentais numa democracia? Ou afinal pensa que está tudo cego?

MG

Tempos de velhice

“A velhice é muito triste…” fim de citação.

O meu nome é José Alberto Lagos. Não foi o nome que trouxe da barriga da mãe. Foi com muito trabalho e alguma sorte que o consegui. Sim, que quando se nasce apenas Zé é preciso ter sorte, mas está dá muito trabalho. José Alberto Lagos com dr e cargo de director foi fruto de circunstâncias, acasos,e muito empenho. E mostra que é possível romper barreiras sociais que podem parecer instranponíveis. Quando menino e moço, cheio de sonhos, deixei as ovelhas e as cabras e viajei durante um dia por montes e vales para chegar à capital, nunca pensei voltar ao local de origem na condições de que usufruo. Agora, na condição de aposentado, regresso ao local de infância, frequentemente. As vias de comunicação facilitam as viagens e fico perplexo quando ouço classifica-las de despesismo e de desperdício. As boas estradas desenvolvem e aproximam.

Na aldeia onde aprendi as primeiras letras, recuperei a velha casa deixada pelos meus pais. A grande irmandade dispersou-se por esse mundo e a casa corria o risco de ficar em ruínas. Ali passo alguns tempos na companhia da Maria Alice Caldeira que teima em me manter debaixo de vigilância. Mas a aldeia, sendo a mesma, já é outra. Pela nossa rua não passam bandos de moços a caminho da escola, como naquele tempo em que eu, todas as manhãs, com a sacola feita de cotim, a tiracolo, me juntava a um grupo que subia a encosta para aprender o alfabeto, pronomes, substantivos, aritmética…e apanhar reguadas quando não conjugava os verbos de acordo com a norma. Nas ruas não circulam vacas e rebanhos, vindos dos pastos, ao fim do dia. Os burros foram substituídos por ruidosos motores de muitos cavalos. É certo que as vias poeirentas ou enlameadas foram substituídas por escondidas por pisos de alcatrão. É verdade que as noites perderam a escuridão que me causava pesadelos. É fácil aceder à água com um toque num manípulo. As mulheres fortes já não transportam os cântaros de barro em cima de uma rodilha colocada na cabeça. Onde estão? Os homens não jogam à malha no terreiro da feira. Onde estão? Velhos, somente velhos, poucos, cada vez menos, que se sentam nas soleiras das casas ao fim do dia, à espera que noite chegue e que outro dia, sempre igual, comece.

Ao fim da tarde, enquanto a Maria Alice prepara a janta, sento-me a ver a partida dos últimos raios de sol e comtemplo o vale verdejante, que se recusa a partir e a envelhecer. A ribeira, sem sinal de rugas, como sempre a conheci, derrama as suas águas por entre a quietude dos montes protectores. Sente-se uma quietude que se respira quase em silêncio. Quase, porque, às vezes, passa um ou outro transeunte. As manas Ferradoras passam sempre ao lusco fusco, em trânsito, para o pequena loja, onde vão tomar café.

- Boa tarde Zé.

Boa tarde, meninas.

Meninas é uma forma de dizer. São moças da minha criação. Mas faziam parte de outra estirpe. Na aldeia, os Ferradores, pequenos metalúrgicos e proprietários agrícolas tinham outro estatuto. As meninas estudaram no Liceu e saíram professoras primárias. A minha mãe tinha o desejo e a esperança de me ver casado com uma das Ferradoras. “as moças da terra são mais fiáveis” E a mãe delas também alimentou a ideia. A Bia era a candidata natural. Sendo um pouco mais velha que eu logo que acabou o curso e começou a trabalhar procurei arrumar-se. Na época não estava preparado, para assumir responsabilidades, uma vez que ainda tacteava o meu rumo. Quando lhe apareceu o Afonso Garcia, não hesitou, e deu o nó. Nem tudo estava perdido, porque a Ferradora mais nova, de nome Anita continuava disponível. Sem entrar em coisas sérias ainda mantivemos alguma cumplicidade, nas alturas em que ia passar férias à aldeia. Depois eu regressava à cidade e esquecia a Anita. Longe da vista longe do coração. Acabado o curso arrumou-se com o Afonso Garcia que capturou à irmã. Lá se foi o sonho da minha mãe, a ver-me subir na escala social.

As Ferradoras estiveram de relações cortadas por causa do Afonso Garcia, um mulherengo, que acabou de trocar a Anita por uma andaluza com muito salero. E isto para não referir as não oficiais. Fizeram as pazes quando o Afonso morreu de síncope cardíaca. Assumiram-se como viúvas indirectas.

-Está um calor de rachar

-Pois está Zé, dizem a uma voz, esperamos que a noite refresque.

E enquanto se afastam na penumbra, vejo na silhueta esguia da Bia, como se fosse chupada pelas carochas, e no perfil rechonchudo e adiposo da Anita, a tristeza de uma vida madrasta de afectos.

De quando em vez recebo, à hora do lanche, a visita da minha tia Juliana, anciã, costureira de profissão, que muito prezo receber. Fazia-me peças de roupa e caprichou na criação da minha sacola. Apesar da sua avançada idade mantém uma lucidez invejável e conta-me histórias deliciosas de antepassados comuns. Preparo-lhe uma merenda acompanhada de um copito de vinho, da nossa produção, que fazemos duma vinha herdade dos pais.

-É este copito que me traz de pé, diz a tia Juliana, com uma ternura inimitável.

Costureira pobre, em terra de gente pobre, nunca teve homem, sobreviveu com pagamentos feitos em géneros da colheita de cada um, e de acordo com as suas respectivas possibilidades. Depois de merendar e de dois dedos de conversa despedia-se, e arrimada à sua bengala, arrastava a sua velhice curvada, rua abaixo. Enquanto se afastava recordava-a ainda nova, direita, elegante, e com uma finura invulgar naquele meio. Não nasceu, por ali, homem à sua altura.

Ali, recobro o hábito de madrugar, para aproveitar o ar puro da manhã. A primeira criatura que se cruza comigo nesse início de dia é o velho barbeiro. Zé Filipe cortava-me o cabelo na minha infância. Adorava sentar-me na única cadeira giratória que existia na aldeia. Um dia partiu na procura de ganhar o pão que, naquela terra, lhe escasseava na mesa. Andou a partir pedra, literalmente falando. Assim que conseguiu a reforma, deixou mulher e filhos que não o quiseram acompanhar e regressou para reactivar a sua barbearia. Em boa hora, pois não havia qualquer concorrência.

Mestre Filipe foi brindado com um humor muito especial. Recordo que um dia virou o prato da parabólica às avessas. E onde estava escrito ZON, passou a ler-se NOZ, muito antes de esta existir. Digamos que foi o primeiro cliente, avant la letre, da nova operadora. Estou em crer que foi ali que algum criativo, de passagem, bebeu a ideia. Apenas trocou o Z pelo S para não gerar plágios.

-Bom dia, senhor Zé Filipe, como está? Digo quase mecanicamente

-Mal, muito mal…

-Ora essa…

O que posso dizer a um homem que caminha amparado a dois cajados, que o ajudam a arrastar os pés quase inertes, e agarrando-se de vinte em vinte metros, a uma parede para descansar.

-Mal, muito mal. Todos querem chegar a velhos, mas a velhice é muito triste. Quase não consigo andar.

E continuava o seu caminho, na esperança de chegar ao café onde tomava o pequeno-almoço e uma refeição de contacto humano.

A Alice espera-me para a primeira refeição. Comemos em silêncio. Ligo o portátil e começo a teclar.

O meu nome é Zé. Um Zé qualquer.

Das gavetas da memória retiro lembranças. Retalhos de vida ou de vidas. De muitas vidas, de muitos Zés, cuja vida, plasmada, não dava um romance. Não há ficção sem realidade e esta precisa de ser ficcionada para ser real. Para não se perder nos labirintos do esquecimento. Vidas, sem vida, vividas em palavras, retratadas em metáforas que não viveram, em ironias que não pronunciaram, em diálogos que não travaram. “Esta é uma historia inventada, a correspondência com factos reais é mera coincidência” fim de citação. No entanto, as coincidências existem, mesmo quando não há matéria para se chamar romance. Continuo a teclar (sinal dos tempos)

O meu nome é Zé…

 

 

Se eu pedir um empréstimo ao Banco que me permita viver durante um ano, posso afirmar que o dinheiro é meu? Claro que só é meu depois de o pagar com os respectivos juros.

 

Quando um país, através de empréstimos, consegue acumuiar disponibilidades financeiras para pagar despesas durante meses, significa que tem os cofres cheios?

Há um ditado popular que diz que "com as calças do meu pai eu pareço um homem".  Pareço mas não sou. Ter os cofres cheios com dinheiro emprestado, não é a mesma coisa que ter um pé de meia.

Ao contrário do que a expressão pode sugerir o governo de Passos, não fez nenhuma poupança. Pelo contrário aumentou a dívida. No fundo o que está no cofre é dívida que temos que pagar.  Por isso a discussão que se gerou não tem razão de ser.

 

MG

 

24 Mar, 2015

O poeta morreu

Herberto Hélder já não faz mais poemas. O poeta morreu. A poesia vive. Parte um poeta e o mundo fica mais pobre. A poesia fica "e já nenhum poder destrói o poema". A marcha inexorável do tempo, leva o poeta para outros horizontes, mas curva-se à sua poesia, porque "o poema faz-se contra o tempo e a carne". Porque isso é SER POEMA.

 

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

Vivemos num país de pequeninos. De um governo pequenino , de uma justiça pequenina, de uma educação pequenina, de uma saúde pequenina,  e para cúmulo dos nossos pecados, de uma responsabilidade pequenina. E diz-se que os exemplos devem vir de cima. Mas, se de cima, senhores e senhoras ou viceversa, só vêm actos de pequenez, como pode, aqui e agora, haver acções de grandeza, como já houve em tempos idos, graças a gente valente.

Assistimos impávidos e serenos, todos os dias, a uma novela de passa culpas. De quem não pagou contribuições que devia ter pago porque não foi avisado. Durante cinco anos ou mais, senhor!? De quem sendo o máximo responsável pelos impostos, não sabe sobre listas de contribuintes especiais. A palavra VIP começa a ser anátema. De quem, suprema opinião, sendo político até ao tutano, nunca o foi. Nem se quer confundir com essa ralé. Mas ocupar cargos políticos durante vinte anos, não é ser político?. Não ouvia isto desde Salazar.

A irresponsabilidade é uma escola de virtudes. A ética política uma aberração. A moral uma imoralidade. Mas que é isto senhores? O país pode ser invadido e tomado, por gregos ou torianos,  que ninguém assume uma chispa de culpa. Não há Presidente, chefe de Governo, ministro que seja responsável por ponta de corno. Mas isto é um país senhores? É um país ou um recreio de meninos birrentos e cobardes a dizer a culpa é dele do outro, geralmente do mais fraco. Dedo em riste, apontado com determinação: é aquele o mau da fita. Como se chama esse país? Só pode ter um nome: país de passa culpas. 

 

MG

O poder judicial é um dos pilares da democracia. Nele deve o cidadão ter a garantia de protecção contra qualquer tipo de abuso. Contudo, o nosso sistema judicial, de há tempos a esta parte, tem dado mostras de falta de isenção na aplicação das regras. Comporta-se como um árbitro que vicia o jogo.

A parcialidade na aplicação da justiça tem estado patente no caso Sócrates. Desde a agenda mediática da prisão, até às fugas selectivas do segredo de justiça. Depois da aplicação exagerada e ilegal da prisão preventiva, pelo super juíz Carlos Alexandre, vem agora o Tribunal da Relação, dar cobertura à argumentação do perigo de perturbação de inquérito.

E se essa justificação é, no mínimo, discutível, o recurso pelo aludido tribunal a aforismos populares como método argumentativo, brada aos céus. Veja-se esta pérola dos desembargadores: "quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem". Se isto fosse dito por um qualquer Zé Ninguém, numa discussão de café, vá que não vá, mas que faça parte de um relatório jurídico mostra o nível a que desceu o sistema judicial.

Factos concretos, provas claras, zero. Indícios, suspeitas, suposições, especulações eis o cozinhado preparado pela acusação. Apenas faltava como cereja em cima do bolo, o ditado popular. Independentemente da culpabilidade ou inocência do visado, este triste espectáculo não pode deixar descansados os cidadãos sobre estes intérpretes da justiça.

MG

15 Mar, 2015

Ser ou não ser VIP

Dizem que há uma lista VIP de contribuintes. A existir, essa lista significa que, nesse aspecto, todos somos iguais mas alguns são mais iguais que outros. Porque ser VIP enquanto contribuinte permite que a sua ficha se encontra blindada e de acesso inacessível.

Para além de reproduzir, na área dos impostos, uma desigualdade entre cidadãos, que se verifica no posicionamento social, existe para proteger e privilegiar pessoas específicas e os seus interesses. A lista VIP admite que vivemos, aqui e agora, numa sociedade de castas.  Admite o inadmissível numa sociedade democrática. É como se voltássemos a uma organização social abolida pela revolução francesa. Pior, porque não podemos saber quem a compõe.

E como não foi feita para me proteger a mim nem a si, uma vez que nenhum VIP anda por estas bandas, foi feita a favor de quem? E quem a fez ou quem a mandou fazer? Ser ou não ser VIP não é a questão. A questão é saber ou não saber quem é.

MG

No tempo em que os animais falavam e eram ouvidos, como vendedores de banha da cobra, chegaram ao governo da nação. Desde então esta ficou conhecida como Coelhândia. Os animais, depois de terem deixado de seguir o cherne, que emigrou para paragens menos pantanosas, deixaram-se iludir pela magia dos coelhos e de animais afins. Até belém foi ocupado por um animal pouco definido, cujas características  o definem como manhoso, chico esperto, matarruano. Uma espécie de javali enriçado de hiena.

Os outros animais que foram na "cantada" ou história para crianças, elegeram-nos por quatro anos que já caducaram. Contudo, sentindo as costas quentes pelo animal de belém, os coelhos e seus lacaios, vão prolongando o seu poder para ganhar tempo. E até alimentam a secreta ideia de se perpetuarem, um pouco à maneira do Triunfo dos Porcos de Orwell.

A assunção do poder perpétuo passará pela escolha de um sucessor para o animal inominável de belém. Traçou-se um perfil. A escolha parece que caíu na Gata Borralheira, uma estranha princesa, que desapareceu à meia noite e só deixou um sapatinho. Só quem o calçar poderá ser presidente da bicharada. Começaram a aparecer os candidatos a experimentá-lo. É meu, é meu, dizem os animais da manada que querem habitar belém. Os outros animais dormem o sono sereno da bela adormecida. Nem sequer sonham com um príncipe que os liberte. 

MG

A perfeição não existe. É uma evidência e é uma fatalidade. A imperfeição está na génese da criação. Se o Criador criou o homem à sua imagem e semelhança e este é imperfeito, também o Criador o será. Para mais são conhecidas as constantes correcções ao projecto inicial.

O reconhecimento pelo senhor Coelho da relatividade da perfeição, não passa de um exercício de retórica. É uma verdade "lapallissiana". Não ser perfeito é uma condição humana que não pode ser vista como um defeito. Eu que sempre admiti a minha imperfeição não devo ao Estado, nem à Segurança Social um tostão furado. Porque não há relação entre perfeição e calotes. Ser caloteiro, embrulhado em chico espertismo, é apenas uma questão de desonestidade.

O protector e abono de família do senhor Coelho afirmou em tempos: "não tenho dúvidas e nunca me engano". Tem razão. Nós é que fomos bem enganados quando pusemos esta nação secular nas mãos de gente sem princípios.

MG

 

Aforismos e sarilhos

Como se diz na gíria, sou um pouco bota de elástico. Não consigo integrar-me nessa modernice do casa descasa. Tenho feito o possível por manter um casamento que desejei, e que tem passado por fases melhores e piores. Quando o Zé começou a trabalhar no ensino nocturno, com a tanga que queria ganhar mais uns trocos, cheirou-me a conversa fiada. O que me pareceu foi que procurava novas paisagens. Ainda pensei em comprar uma gabardine mais moderna, mas concluí que o problema não estava no embrulho e deixei andar. Em má hora. Quando acordei já o Zé andava meio enrolado com uma cabra sem vergonha, armada em leoa. Digo-o porque me meti a caminho e descobri que a fulana se transportava num carro de alta cilindrada com o símbolo do leão, que lhe tinha oferecido o paizinho, aquando da conclusão do curso. Há gente assim. Nasce com a bunda (e que bunda) virada para a lua. Tinha chegado a hora de agir. In extremis consegui salvar o Zé das garras da predadora. Mas sabia que a situação não estava resolvida. Depois daquela noite quente e luarenta, a solicitar amores, perguntei ao meu homem:

-Então pá, indo directo ao assunto, o que fazias, altas horas, com a gaja da mini-saia?

-Afinal agora deu-te para ciumar? Já te disse que a acompanhei para não ir sozinha aquela hora tardia. O que tem de mal? A noite estava agradável e ficamos a falar de assuntos comuns, nomeadamente de futebol, pois somos ambos do clube do leão.

-Tá bem abelha, cantas bem, mas não me alegras, foi o que me apeteceu dizer-lhe, mas contive-me. Não era a altura de atirar lenha para a fogueira. Fiz-me de peixe morto, e encerrei aquele diálogo. Sabia, porém, que o caso não estava terminado, e já tinha bolado o meu plano. Ia procurar a tipa, confrontá-la, e pôr os pontos nos is, nos esses e em todas as letras que precisassem de ser pontuadas. Sei que sou discreta e tímida, posso até parecer uma mosca morta, mas se me fazem chegar a mostarda ao nariz, viro fera e não há leoa que me pare. Conhecia-lhe os hábitos e sabia onde devia encontrá-la. Estudei ao pormenor como iria enfrentá-la. Tinha a meu favor o factor surpresa.

-Bom dia. Posso interromper o seu pequeno-almoço por uns minutinhos? Sou a Maria Alice mulher do Zé, seu colega, do ensino nocturno.

-Sente-se, disse secamente e com um sorriso muito amarelado.

-Falando mal e depressa vim aqui gastar o meu precioso tempo, para te dizer (tinha chegado a hora de endurecer o discurso) que o meu marido, com papel passado, não está disponível para desmamar pitas de pernas ao léu. Se ainda precisas de chucha, procura outro, que há por aí bastantes gajos bem melhores. Se não fosses cega tinhas visto que o homem já está um pouco usado. De facto até é competente mas não o tenho poupado. Além disso aturo-o há cerca de dez anos, e também me deve algumas rugas, mas ainda dou conta do recado, não preciso de muletas. Portanto espero não voltar a encontrar-te a propósito, porque pode fiar mais fino. Se for preciso dou-te um estalo nessas fuças de lambisgoia. Faço-me entender?

Naquela pequena pastelaria, com venda de pão, éramos os únicos clientes sentados. Pessoas sonolentas, entravam e saíam, depois de fazer as suas compras. Esforcei-me por falar num tom calmo para não chamar a atenção. Nem a menina bem nutrida, e de grandes óculos de abelha, que estava atrás do balcão se apercebeu da baixaria. Dito o que tinha ensaiado, levantei-me e saí discretamente.

Como acontece, muitas vezes no teatro, a um bom ensaio não corresponde uma boa estreia. Tinha estudado até ao pormenor o que queria dizer aquela desavergonhada, mas na hora da verdade passou-se tudo ao contrário. Por cima da porta onde me encontrava nervosa e insegura lia-se “Pastelaria Lua-de-mel”. Enchi o peito de ar e entrei. Atrás de um balcão corrido uma garçonete bem nutrida atendia clientes com ar apressado. Ao fundo, sentada numa mesa de fórmica estava a razão do meu martírio. Aproximei-me e perguntei:

-É a professora Mercedes? Eu sou a Alice mulher do seu colega Zé, do Ensino Recorrente. Podia dar-me um minuto de atenção?

-Concerteza…o que se passa com o Zé?

-Sinto-me um pouco constrangida em abordar o assunto e nem sei bem como começar. Não tinha conhecimento que o Zé era casado? Perguntei.

-E tinha que saber? Nem ele me disse, nem eu lhe pedi o bilhete de identidade. Somos colegas de trabalho e costumamos falar sobre coisas sobre as quais temos afinidades, como futebol ou política por exemplo. Mas a que propósito me faz a pergunta?

Titubeei . Depois de um silêncio comprometido disse:

-Eu conheço o Zé há muitos anos e mantivemos uma boa relação até ao período que coincide com o seu trabalho nocturno. Chega cada vez mais tarde a casa com reflexos no nosso relacionamento. Também sei que certos homens escondem o seu estado civil para fazer conquistas amorosas…

-Creio que percebi. Se quer saber se andamos enrolados, não andamos. O Zé é um cavalheiro que me tem acompanhado a casa a uma hora bastante tardia. Simplesmente. Sabe o que lhe digo: vim substituir uma colega que está com licença de maternidade. Tenho um horário cheio de buracos, trabalho em todos os turnos. Brevemente, volta a colega, e vou pregar a outra freguesia, mas não pense que sou uma espécie de marinheira com homens em todos os portos, nem tenho um íman entre as pernas para atrair machos. Tenho mais que fazer.

Alguma verdade haveria naquelas palavras mas não me convenceram. A afirmação que iria partir em breve deixou-me mais sossegada. Evitei  pôr mais na carta. Encerrei a conversa: “

-Não ponho em causa a sua seriedade. Como mulher, deve saber, que os homens podem parecer uns santos mas, às vezes, perdem a cabeça com qualquer rabo de saia. Peço desculpa pela minha insegurança e aceito o seu esclarecimento.

Após a o diálogo com a Maria Alice sobre a Mercedes o assunto ficou encerrado. Ela partiu para novos horizonte e eu terminado o contrato dei por finda a minha aventura no ensino. Como se previa, a Alice engravidou, como tanto desejava. Começou com uns enjoos matinas e continuou com a barriga a crescer. Apesar do mal-estar a Maria Alice andava entusiasmada. Eu não tanto. E muito menos o fiquei quando ela fez a primeira ecografia. Para espanto meu em vez de um estavam lá dois. Isso mesmo. Naquela barriga viviam gémeos e como diz o ditado não há fome que não dê em fartura. Fazer o quê? Tristezas não pagam dívidas. Aguentar e cara alegre.

-Da barrigada de aforismos saiu o Pedro e o Paulo, que nascendo da mesma fornada tinham sido gerados de óvulos diferentes. Daí que se apresentassem ao mundo com caracteres físicos opostos. Enquanto o Pedro era magro, o Paulo tinha tendência para a obesidade. E se o Paulo adornava a sua face de anjo querunbim com uma cabeleira loira, o rosto comprido e seco do Pedro estava encimado por uma melena castanha e áspera. Estes traços exteriores tinham correspondência na personalidade.

Desde muito novos que as diferenças comportamentais se começaram a notar. Nos primeiros anos tivemos trabalho redobrado. No fundo, eram duas bocas a protestar por insondáveis razões: fome, frio, calor, alegria, mal estar, tristeza e sabe-se lá o quê? O livro de instruções nunca é preciso nem claro. Tive de abandonar o trabalho no ensino para dar apoio à Maria Alice. Muitas noites dormíamos por turnos. Até na empresa comecei a marcar passo e a minha provável chegada ao Conselho de Administração ficou pelo caminho. Mas ainda bem. Lá me teria cruzado outra vez com a sempre menina Maria Ana, secretária do Conselho, depois de ser unha com carne com Presidente, um ancião que pintava, regularmente, o longo cabelo embranquecido.

Na adolescência as diferenças evidenciaram-se. O Pedro concentrado na sua formação era um mouro de trabalho. A carreira estava à frente de tudo. Nem um namorico tinha no seu currículo. Mais tarde apercebemo-nos que se tratava de opção de vida. Formou-se em veterinária. Vive num casarão rodeado de animais e recebe ajuda de um amigo. Adoptou duas crianças, uma veio da Ásia e outra das antigas colónias portuguesas. O Paulo foi um pouco mais problemático como se dizia. No polo oposto, levava uma vida boémia. Gostava de experiências sociais. Passou pelas drogas leves e por noitadas de música e álcool. Quando conseguiu terminar o curso de informática, integrou-se numa empresa de telecomunicações, casou-se e estabilizou. Mas por pouco tempo. O que ele gosta de fazer é pintar. Tem alma de artista. Fez uns cursos de artes visuais e montou um atelier no apartamento. Tem passado a maior parte da sua vida de baixa médica. Sofre de ataques de pânico. Apenas nos pincéis encontra tranquilidade. Já tem três filhos todos de mulheres diferentes. Tem mesmo alma de artista.

Quem tem filhos tem sarilhos. E uma vez iniciados nunca mais acabam. Eles vivem a sua vida mas as preocupações e os trabalhos continuam. A nossa casa agora é uma espécie de Creche. Mesmo aposentados não há descanso para os guerreiros. Especialmente para a Maria Alice. Quem corre por gosto não cansa. Mas cansa, cansa.

Continua