Tempos de velhice
“A velhice é muito triste…” fim de citação.
O meu nome é José Alberto Lagos. Não foi o nome que trouxe da barriga da mãe. Foi com muito trabalho e alguma sorte que o consegui. Sim, que quando se nasce apenas Zé é preciso ter sorte, mas está dá muito trabalho. José Alberto Lagos com dr e cargo de director foi fruto de circunstâncias, acasos,e muito empenho. E mostra que é possível romper barreiras sociais que podem parecer instranponíveis. Quando menino e moço, cheio de sonhos, deixei as ovelhas e as cabras e viajei durante um dia por montes e vales para chegar à capital, nunca pensei voltar ao local de origem na condições de que usufruo. Agora, na condição de aposentado, regresso ao local de infância, frequentemente. As vias de comunicação facilitam as viagens e fico perplexo quando ouço classifica-las de despesismo e de desperdício. As boas estradas desenvolvem e aproximam.
Na aldeia onde aprendi as primeiras letras, recuperei a velha casa deixada pelos meus pais. A grande irmandade dispersou-se por esse mundo e a casa corria o risco de ficar em ruínas. Ali passo alguns tempos na companhia da Maria Alice Caldeira que teima em me manter debaixo de vigilância. Mas a aldeia, sendo a mesma, já é outra. Pela nossa rua não passam bandos de moços a caminho da escola, como naquele tempo em que eu, todas as manhãs, com a sacola feita de cotim, a tiracolo, me juntava a um grupo que subia a encosta para aprender o alfabeto, pronomes, substantivos, aritmética…e apanhar reguadas quando não conjugava os verbos de acordo com a norma. Nas ruas não circulam vacas e rebanhos, vindos dos pastos, ao fim do dia. Os burros foram substituídos por ruidosos motores de muitos cavalos. É certo que as vias poeirentas ou enlameadas foram substituídas por escondidas por pisos de alcatrão. É verdade que as noites perderam a escuridão que me causava pesadelos. É fácil aceder à água com um toque num manípulo. As mulheres fortes já não transportam os cântaros de barro em cima de uma rodilha colocada na cabeça. Onde estão? Os homens não jogam à malha no terreiro da feira. Onde estão? Velhos, somente velhos, poucos, cada vez menos, que se sentam nas soleiras das casas ao fim do dia, à espera que noite chegue e que outro dia, sempre igual, comece.
Ao fim da tarde, enquanto a Maria Alice prepara a janta, sento-me a ver a partida dos últimos raios de sol e comtemplo o vale verdejante, que se recusa a partir e a envelhecer. A ribeira, sem sinal de rugas, como sempre a conheci, derrama as suas águas por entre a quietude dos montes protectores. Sente-se uma quietude que se respira quase em silêncio. Quase, porque, às vezes, passa um ou outro transeunte. As manas Ferradoras passam sempre ao lusco fusco, em trânsito, para o pequena loja, onde vão tomar café.
- Boa tarde Zé.
Boa tarde, meninas.
Meninas é uma forma de dizer. São moças da minha criação. Mas faziam parte de outra estirpe. Na aldeia, os Ferradores, pequenos metalúrgicos e proprietários agrícolas tinham outro estatuto. As meninas estudaram no Liceu e saíram professoras primárias. A minha mãe tinha o desejo e a esperança de me ver casado com uma das Ferradoras. “as moças da terra são mais fiáveis” E a mãe delas também alimentou a ideia. A Bia era a candidata natural. Sendo um pouco mais velha que eu logo que acabou o curso e começou a trabalhar procurei arrumar-se. Na época não estava preparado, para assumir responsabilidades, uma vez que ainda tacteava o meu rumo. Quando lhe apareceu o Afonso Garcia, não hesitou, e deu o nó. Nem tudo estava perdido, porque a Ferradora mais nova, de nome Anita continuava disponível. Sem entrar em coisas sérias ainda mantivemos alguma cumplicidade, nas alturas em que ia passar férias à aldeia. Depois eu regressava à cidade e esquecia a Anita. Longe da vista longe do coração. Acabado o curso arrumou-se com o Afonso Garcia que capturou à irmã. Lá se foi o sonho da minha mãe, a ver-me subir na escala social.
As Ferradoras estiveram de relações cortadas por causa do Afonso Garcia, um mulherengo, que acabou de trocar a Anita por uma andaluza com muito salero. E isto para não referir as não oficiais. Fizeram as pazes quando o Afonso morreu de síncope cardíaca. Assumiram-se como viúvas indirectas.
-Está um calor de rachar
-Pois está Zé, dizem a uma voz, esperamos que a noite refresque.
E enquanto se afastam na penumbra, vejo na silhueta esguia da Bia, como se fosse chupada pelas carochas, e no perfil rechonchudo e adiposo da Anita, a tristeza de uma vida madrasta de afectos.
De quando em vez recebo, à hora do lanche, a visita da minha tia Juliana, anciã, costureira de profissão, que muito prezo receber. Fazia-me peças de roupa e caprichou na criação da minha sacola. Apesar da sua avançada idade mantém uma lucidez invejável e conta-me histórias deliciosas de antepassados comuns. Preparo-lhe uma merenda acompanhada de um copito de vinho, da nossa produção, que fazemos duma vinha herdade dos pais.
-É este copito que me traz de pé, diz a tia Juliana, com uma ternura inimitável.
Costureira pobre, em terra de gente pobre, nunca teve homem, sobreviveu com pagamentos feitos em géneros da colheita de cada um, e de acordo com as suas respectivas possibilidades. Depois de merendar e de dois dedos de conversa despedia-se, e arrimada à sua bengala, arrastava a sua velhice curvada, rua abaixo. Enquanto se afastava recordava-a ainda nova, direita, elegante, e com uma finura invulgar naquele meio. Não nasceu, por ali, homem à sua altura.
Ali, recobro o hábito de madrugar, para aproveitar o ar puro da manhã. A primeira criatura que se cruza comigo nesse início de dia é o velho barbeiro. Zé Filipe cortava-me o cabelo na minha infância. Adorava sentar-me na única cadeira giratória que existia na aldeia. Um dia partiu na procura de ganhar o pão que, naquela terra, lhe escasseava na mesa. Andou a partir pedra, literalmente falando. Assim que conseguiu a reforma, deixou mulher e filhos que não o quiseram acompanhar e regressou para reactivar a sua barbearia. Em boa hora, pois não havia qualquer concorrência.
Mestre Filipe foi brindado com um humor muito especial. Recordo que um dia virou o prato da parabólica às avessas. E onde estava escrito ZON, passou a ler-se NOZ, muito antes de esta existir. Digamos que foi o primeiro cliente, avant la letre, da nova operadora. Estou em crer que foi ali que algum criativo, de passagem, bebeu a ideia. Apenas trocou o Z pelo S para não gerar plágios.
-Bom dia, senhor Zé Filipe, como está? Digo quase mecanicamente
-Mal, muito mal…
-Ora essa…
O que posso dizer a um homem que caminha amparado a dois cajados, que o ajudam a arrastar os pés quase inertes, e agarrando-se de vinte em vinte metros, a uma parede para descansar.
-Mal, muito mal. Todos querem chegar a velhos, mas a velhice é muito triste. Quase não consigo andar.
E continuava o seu caminho, na esperança de chegar ao café onde tomava o pequeno-almoço e uma refeição de contacto humano.
A Alice espera-me para a primeira refeição. Comemos em silêncio. Ligo o portátil e começo a teclar.
O meu nome é Zé. Um Zé qualquer.
Das gavetas da memória retiro lembranças. Retalhos de vida ou de vidas. De muitas vidas, de muitos Zés, cuja vida, plasmada, não dava um romance. Não há ficção sem realidade e esta precisa de ser ficcionada para ser real. Para não se perder nos labirintos do esquecimento. Vidas, sem vida, vividas em palavras, retratadas em metáforas que não viveram, em ironias que não pronunciaram, em diálogos que não travaram. “Esta é uma historia inventada, a correspondência com factos reais é mera coincidência” fim de citação. No entanto, as coincidências existem, mesmo quando não há matéria para se chamar romance. Continuo a teclar (sinal dos tempos)
O meu nome é Zé…