Acasos, traições e encantamentos
Não acredito em casamentos perfeitos, nem mesmo se feitos no céu. A minha relação com a Maria Alice não fugiu a esse desiderato. À parte negócios de gabardine, teve altos e baixos, como em todas as relações conjugais. A convivência diária no mesmo espaço, passou por uma aprendizagem de partilha e de cedências que não evitaram conflitos ocasionais. E aprendi que, durante uma relação estável, por mais longa que seja, há em cada um de nós facetas que continuam desconhecidas. Como acontece nas relações mais prolongadas, esta foi-se cimentando em confiança mútua. Nesses primeiros tempos de estado de graça, vivíamos cada dia intensamente. Não havia tempo para aborrecimentos. Havia um filme para ver (os cinemas ainda não tinham virado igrejas) um bar para curtir umas musiquinhas e bater um papo com amigos. Depois, as rotinas foram-se instalando, o modo de vida alterou-se.
Passaram cerca de dez anos que vivo com o Zé e mau grado pequenos desentendimentos não estou arrependida. Aliás nem podia ser de maneira. Foi uma decisão que tomei desde que o conheci e cuja chama mantive acesa até chegar o dia em que se concretizou. Mantive uma paciência de santa, que nunca fui. Durante esse período tive outros pretendentes, mas mantive-me fiel a essa vontade. Sempre imaginei o Zé como o pai dos meus filhos. Parece estranho que tendo sido a questão de ter meninos o clique que desbloqueou a nossa relação, ainda não tenha nascido nenhum. Nem sequer é culpa da gabardine. Esta bem se tem esforçado. Acontece que o Zé vai arranjando argumentos para adiar o evento. Expressões como “aproveitar a vida,” “dar oportunidade à carreira profissional” são frases gastas de tanto serem usadas. E têm sido motivo de alguma tensão.
A velha questão de quando é que “temos meninos” arrasta-se desde aquele dia, em que caí, quase de paraquedas, no apartamento da Alice e por lá me fui deixando ficar. Com desculpas mais ou menos esfarrapadas fui transferindo o assunto para as calendas. Inconscientemente não me sentia preparado para essa responsabilidade. Talvez tivesse a secreta esperança que a gabardine fosse desbotando, mas parece é que ganhava mais cor. Eu penso que este comportamento tem raízes num trauma de juventude com repercussões no presente. O episódio abortado em que pretendi ser pai aos seis anos nunca deixou de me perseguir. E tornava-se mais vivo quando regressava de férias ao local de infância. Lá estavam os pais reformados de toda a actividade graças aos benefícios sociais trazidos pelo democracia. E lá estava aquela Maria, que comigo cometeu pecado lidibinoso, em pensamento, na linguagem do senhor padre, aquando da confissão que precedeu a primeira comunhão. E agora olho para essa Maria e vejo-a carregada de filhos até às orelhas. Agarrados à bainha da saia, pendurados na cintura, dentro dela, ou a sugar-lhe a vida pelos peitos. Vejo-a precocemente envelhecida, o rosto marcado por indícios de rugas, os olhos baços e tristes. Na última vez que lá estive ouvi, a propósito, alguém comentar “ raios parta o Chico pedreiro, já tem outra vez a mulher prenha”.
O Zé passa cada vez menos tempo em casa. Começou a dar aulas no ensino nocturno. Dizia que era para aumentar os rendimentos tendo em vista os projectos futuros. Para mim a razão era outra. O casamento passava por um certo cansaço. Comecei até a desconfiar que podia andar moura na costa.
Na escola onde leccionava, como em todas as outras, o feminino predominava entre o corpo docente. E digo sem complexos que aquilo era uma festa para a vista. Tinha a noção que era comprometido mas felizmente não era cego. E havia mulheres de todos os estados e para todos os gostos. Havia solteirinhas, solteironas, casadas, mal casadas, descasadas. E houve quem passasse por todas as situações.Uma das colegas que dava nas vistas chamava-se Maria Remédios. Esbelta, bem modelada fisicamente, prendada, com um a cara digna de Afrodite, trazia embeiçados alguns machos .
Todos os dias o namorado que constava ser muito ciumento a esperava depois de cumprir o seu horário. Isso mantinha os seus admiradores à distância. Para mais, o indivíduo tinha ar de poucos amigos. Desde sempre intuí que aquela relação tinha o seu quê de estranho. E estava certo. Certo dia o rosto da Maria entrou na sala de professores cheio de hematomas. A preocupação ou curiosidade dos professores presentes interrogou-a:
-Maria que te aconteceu? Foi a pergunta comum
Ela não fugiu à questão e respondeu sem evasivas: “Eu e o meu namorado chegámos a vias de facto e ele bateu-me. O que em si não é original. Desde que começámos a namorar que me dá porrada. Ingenuamente aceitei que era a sua forma de mostrar o seu amor. Aliás poucos dias depois de nos conhecermos, porque recusei acompanhá-los a uma festa deu-me uma chapada que me atirou ao chão e me deixou KO. Às vezes também lhe respondo mas perco sempre aos pontos. Foi o que aconteceu desta vez. Quando me deu um empurrão perdi as estribeiras e dei-lhe um pontapé entre as pernas que o deixou sem fôlego. Assim que recuperou deu-me tantas que me deixaram neste estado”
-Mas Maria porque não o pões com dono, disse uma colega mais ousada.
-Que hei-de fazer? Gosto dele assim. E temos casamento marcado.
Estranha forma de amar, foi o pensamento que me ocupou a mente. Percebi que não adiantava fazer qualquer comentário. A quem apanha por gosto não adianta contraditar. Notava-se a sua determinação em conservar a relação. Acabaram mesmo por dar o nó. E que lua de mel que eles tiveram, apimentada com pancada de criar bicho. A Maria mudou de estado em tempo recorde: saiu solteira, esteve casada e voltou em processo de divórcio. Ao menos parece que conseguiu resgatar os neurónios perdidos.
Os admiradores da Maria ficaram com o campo livre e andavam com ela nas palminhas. Mas isso era assunto fora da minha agenda. Apesar do rame rame da minha vida, mantinha-me fiel ao meu compromisso conjugal. Contudo os acasos são uma constante no nosso quotidiano. E um imprevisto aconteceu quando chegou a professora substituta de uma colega em adiantado estado de gravidez. A mocinha entrou algo tímida mas depressa mostrou um à vontade que se tornou contagiante. Não pude deixar de reparar naquele porte juvenil de onde sobressaia uma saia tímida que saindo da cintura de modelo não ousava ir muito além do início das coxas bem modeladas. O seu olhar penetrante baralhava os sentidos . Quando aqueles olhos se cruzavam com os meus parecia que me iam devorar. Aquela nova Maria fez-me recordar a juventude que começava a esmorecer. Começámos a interagir mais uma vez por obra do acaso. No último tempo da noite as aulas eram muito diminutas e ficávamos só nós dois. À saída comecei a acompanhá-la até à casa onde se encontrava hospedada. Àquela hora tardia a moça da mini saia tinha algum receio de fazer aquele percurso curto, mas isolado. E acompanhava-a com muito gosto. Além da agradável companhia, sempre ia ganhando uns créditos, para apresentar aquando do julgamento final. Passo a passo fomos ganhando alguma intimidade. E fui chegando cada vez mais tarde a casa. Uma noite, tivemos a companhia de uma lua cheia, desencandadora de romantismos, alongámo-nos no bate-papo e esquecemo-nos das horas. A dada altura convidou-me a subir a fim de ficarmos mais confortáveis. Vontade não me faltava mas tenho o mau hábito de racionalizar exageradamente as situações. Para ganhar tempo perguntei:
-E a tua hospedeira não ficará incomodada?
-Incomodada? De certeza que não. A esta hora já mergulhou num sono profundo. Para mais é muito surda. Ouve com ajuda de aparelho auditivo que tira quando vai dormir. Podemos deitar o prédio abaixo que não acordará.
Olhei para a saia ou melhor para o que dela restava e comecei a imaginar o espaço do seu corpo que ainda estava tapado. A ideia de deitar o edifício ao chão era desafiante. E decerto deveria ser agradável. No entanto, apresentava riscos que não está na minha natureza correr. Via a Maria Alice acorrer ao estrondo e a ajudar os escombros a soterrar-me sentimentalmente. Entre a tentação da mini saia, e a estabilidade da gabardine, hesitava. Se como hoje, houvesse redes sociais, teria colocado o caso em discussão pública. Ainda estávamos longe dessa ferramenta e fiquei entregue aos ditames da minha consciência.
-Vamos? insistiu a voz que morava na mini saia
Cruzámos o olhar e sentiu-me como pássaro hipnotizado por cobra enleante. Preparava-me para a seguir quando o encantamento foi quebrado pelos faróis de um carro ao fundo da rua. Ao aproximar-se pareceu-me ser o inconfundível mini da Alice.
-Hoje estou cansado, disse, fica para outro dia. Fica bem.
Comecei de imediato a descer o passeio ao encontro luz que se aproximava. Ainda pensei que prescindia de uma oportunidade, que me transportaria para patamares, mais consentâneos, com uma história de vida, merecedora de ser ser contada nas páginas de uma ficção rica de acontecimentos. Não seria esse o meu destino como o da maioria de viventes.O carro parou.
-Entra. A voz na obscuridade não deixava dúvidas. Era a da Maria Alice.
Entrei e joguei ao ataque. “Alice, por aqui! Há algum problema?”. Trazia vestida uma gabardine beje e denotava a serenidade que, às vezes prenuncia borrasca”. “Então pá, perdeste o rumo?” ironizou, já vistes as horas? Estava a ficar preocupada”. Comovi-me. Ter alguém que se preocupa connosco e que abandona o recato do lar, para se aventurar na noite escura é digno de agradecer aos céus? “Obrigado Alice, mas não havia necessidade, sei cuidar-me. Trabalhámos até mais tarde e depois acompanhei uma colega que está aqui hospedada”. Não reagiu à minha explicação. Limitou-se a perguntar: “ondes tens o carro?.” “Está no parque da escola, deixa-me lá”. Antes de a deixar e para desanuviar o ambiente ironizei: “porque vens de gabardine? Estás à espera de temporal?” Respondeu à letra: “Sou prevenida, acontece que algumas vezes, da bonança nasce a tempestade”.
Ao subir para o apartamento senti-me nervoso como da primeira vez que a visitei. Tinha passado incólume no primeiro round, mas nunca se sabe como reage mulher desconfiada de eventual traição. Entrei, silenciosamente, procurando passar desapercebido. Em vão. A Alice esperava-me em frente à porta, com o mesmo vestuário. No mesmo registo, disse:
-Receias que a borrasca entre em casa?
-Faz sentido. A borrasca hoje és tu.
Vem chumbo grosso, foi o que me ocorreu, mas para minha surpresa foi desapertando a gabardine tal como da primeira vez, e acolheu-me como um temporal desejado. O apartamento não caiu, apenas tremeu qb. Quando devolveu a gabardine ao seu cabide perguntei:
Tens tomado a pílula?
-Ó pá, deixei-me disso. Há tanto tempo que não me procuras que deixou de se justificar.
Naquele momento reforcei a ideia que a vida é feita de acasos e que a Alice me tinha tirado de um possível sarilho, mas que me tinha metido noutro. O tempo o iria comprovar.
continua