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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Reposição de um texto publicado em Reposição de um texto 2013. Bem actual.

 

Depois de ter mandado investigar, o Ministério das Finanças grego apurou que a Alemanha deve mais de 162 mil milhões de euros à Grécia pelas indemnizações compensatórias que não foram pagas ao país após três anos de ocupação nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de o governo grego considerar que o assunto é sensível, especialmente pelo atraso das transferências da troika para o país, Christos Staikouras, ministro da Finanças adjunto, afirma que o assunto está em “aberto”.
Soube-se, entretanto, que a Alemanha deve 2,3 mil milhões de euros a Portugal por indemnizações da I Guerra. Acham que o ministro das Finanças da troika também vai averiguar o montante em dívida, como fez a Grécia, e reclamar o seu pagamento?

 

Em Câmara Corporativa

 

Aplica-se em pleno o ditado: bem prega frei Tomás, faz o que ele diz não faças o que ele faz. D facto a Alemanha que ajudou a endividar os países do Sul em benefício próprio, com a venda de submarinos, aviões e outras quinquilharias de pouca monta, exige a esses países o pagamento acelerado das suas dívidas. Contudo, ainda não pagou um calote quase centenário a Portugal e sofre de amnésia sobre as indemnizações compensatórias que deve à Grécia desde a Segunda Guerra Mundial.

 

Partindo do princípio que a Alemanha é "pessoa" de bem só encontro uma explicação. A Alemanha quer que estes países sigam o seu exemplo, isto é que se travistam de caloteiros. Só assim se entende a receita que lhes está a aplicar e que vai no sentido de destruir as suas economias com a austeridade. Deste modo como é que países sem rendimentos e cada vez mais endividados vão conseguir pagar?

Mahatma Gandhi mostrou ao longo da sua actividade cívica que é possível mudar o curso dos acontecimentos sem disparar um tiro. Mobilizou a maioria dos indianos e conduzi-os numa luta pacífica até à independência. Foi um processo longo onde a inteligência e a paciência actuaram de mãos dadas. O poderoso Império britânico posto perante a vontade de uma nação acabou por ceder. Ironicamente, Gandhi calou-se no dia 29 de Janeiro de 1948, assassinado por um jovem fanático.

imagem net

 

Setenta anos depois  Auschwitz não pode  ser apenas uma efeméride institucional. O que ali se passou tem de estar permanentente vivo na memória dos povos. A brutalidade e a desvalorização da dignidade humana são um momento negro que não se deve repetir. A igualdade entre povos, culturas, religiões, tem que ser a imagem de marca de sociedades evoluídas. A xenofobia e o racismo, de novo a querer germinar neste início do século vinte e um, alimentaram este holocausto. Para que a história não se repita, os políticos e os cidadãos, têm que compreender que o progresso e bem estar são sinónimos de tolerância e solidariedade. 

MG

27 Jan, 2015

Hoje não sou grego

Hoje não sou grego. Apenas hoje. Tirando hoje sempre fui grego. Todos o somos, porque na Grécia nasceu a civilização ocidental. Os valores que partilhamos, mau grado a deriva germânica, expressa na chamada idade média, foi ali que nasceram e medraram. O gosto pelo saber (filosofia) ali deu os primeiros passos, com Heraclito, Sócrates, Platão, Aristóteles, entre outros. A história, a medicina, a literatura, a geometria, são disso exemplo. A democracia foi o reflexo de uma sociedade evoluída e abastada. A Polis como modo de vida lá tem as suas raízes. Sou grego em plenitude. Não o sou por razões circunstanciais geradas por motivos ocasionais. A Grécia representa um passo de gigante na evolução da humanidade. Simboliza o universalismo civilizacional. Recuso ser grego enquadrado no horizonte curto de uma ideologia.

MG

A Grécia foi sujeita a tratamento de choque. A dose que lhe lhe foi aplicada quase a matou. E ainda não está livre de perigo. Como se costuma dizer não morreu da doença mas corre o risco de morrer da cura. Em desespero a Grécia, isto é, os gregos, recorrem a alternativas que fogem da ortodoxia. E quem chega a este estado está vulnerável a ponto de aceitar remédios e práticas exotéricas. Está disponível para acreditar em astrólogos, bruxos e magias de variadas cores.

O Siriza, um conglomerado de pequenos partidos de protesto, alimenta-se dessa vulnerabilidade. Depois da descrença na cura tradicional, que tem agravado a doença, entrega-se de braços abertos a quem apregoa milagres. De facto, o programa do novo governo propõe-se fazer a quadratura do círculo. Ao mesmo tempo que contesta a política imposta pelo directório alemão, pretende continuar integrado nesse projecto. Está entre a espada e a parede ou entre a cruz e a caldeirinha. Venha o diabo e escolha. A margem de manobra é curtíssima. Não é fácil prever o que vai acontecer. Uma coisa é previsível: a euforia que grassa nalguns meios pode dar azo a uma grande depressão. A real politik não se compadece de utopias. A crença nos milagres não significa que aconteçam. Resta saber se haverá racionalidade e bom senso.

MG

Desde que a minha dentista, doutora Isabel, foi presa preventivamente, que não ia ao seu consultório. Na última consulta fui atendido por uma substituta de poucas palavras. Não percebi se a doutora foi presa por perigo de fuga ou por perturbação de investigação. Por norma são estes os argumentos dos juízes justicialistas. De qualquer modo, custa-me acreditar, que uma cidadã sem estatuto mediático, tenha poder para influenciar seja o que for. Para mais, ao que me constou, ainda não é acusada de coisa nenhuma.

Por causa dos devaneios de um dente queixal e muito queixoso, que deu em se armar em protagonista, clamando ,estou aqui, tive de o mandar para a cadeira de tortura, para ver se entrava nos eixos. A porra é que somos inseparáveis e tive que acompanhar o estafermo. Disponível estava apenas a doutora Ana, que me costuma atender nestas circunstâncias. Com a discrição habitual analisou a situação e concluiu. Este dente só lá vai com uma plástica, ou seja precisa de uma coroa. Vou tranfrei-lo para a doutora Isabel, especialista nessa área. Embasbaquei:

-Mas doutora Ana Magalhães, a sua colega não estava presa por suspeita de assassinato do marido?

-O juiz não conseguiu provar a acusação e saiu em liberdade. Mas está proibida de abandonar o país. As investigações continuam. Depois de sair o paciente que está a atender, vai recebê-lo.

Tremo por dentro. Para além de me entregar nas mãos de uma torturadora licenciada, vou por-me à disposição de provável assassina. É certo que não passa de uma suspeita mas não ponho as mãos no fogo por ninguém. E ali estava em vias de pôr a boca na mira das brocas. Por dentro tremo mas por fora mantenho-me firme como aço. Não deixo nenhum músculo dar sinal de fraco.

-Senhor José, pode entrar, disse uma solícita empregada. Gabinete ao fundo. Percorri aquele espaço com o coração nas mãos. Mas tremiam tanto que receei que o deixasse cair e se partisse e antes de chegar junto da doutora. Desejava que aquele corredor se prolongasse até à eternidade. Mas terminou no gabinete da doutora Isabel Alçada.

Na entrada a figura imponente da doutora esperava-me como um sorriso.

-Seja bem aparecido, disse. E eu já a pensar em serial killers

-Quem desapareceu, pelos vistos, foi a doutora!

-Pois tive uns contratempos. É público que fui acusada da morte do Ernesto, o meu marido. A nossa justiça é especialista em acusar sem provas.  Como podia assassinar o homem que me deu tudo. O amor, os filhos, a estabilidade, a segurança. Montou este consultório, comprou outro na capital e sempre me respeitou. É verdade que nos últimos tempos andava um bocado afastado dos negócios. Não se consegue esconder que era mulherengo. Também é público. Que havia de fazer? Matá-lo?

Isto pode parecer um discurso surrealista. Com toda a propriedade. Porque raio é que a dentista tem de estar a justificar-se perante um banal paciente, ainda por cima aterrorizado? Mas garanto que foi assim que aconteceu. Eu sei que somos do mesmo clube, e costumávamos discutir futebol. No fundo era uma forma de descontrair antes das brocas me começarem a devorar a massa dental. Quanta não terão devorado.

A doutora fez uma pausa no discurso. Reparei, talvez pela primeira vez, nos seus olhos cor de mel. Bem doces por sinal. Tão saborosos como deviam ser os lábios, bem desenhados, num rosto que me lembrava a Brigitte Bardot quando se dedicava mais à fauna humana. Para não falar num corpo que podia ter sido esculpido por Miguel Ângelo. Como podia um ser que parecia tão luminoso, tirando a sua profissão, ser uma assassina? Por outro lado, como podia o ex-marido andar enrabichado por outras mulheres, quando tinha, em casa, este monumento?

-Que havia de fazer? Matá-lo? disse ela

-Era o que merecia, apeteceu-me dizer, mas não disse. Até porque, puxando ao meu lado bom, ninguém nos deu poder para cometer tal acto, e o direito à vida é inalienável, mesmo para grandes estupores.

-A nossa justiça devendo ter os olhos vendados, pelos vistos, tem-os bem abertos para ver o que mais lhe convém. Espero e desejo que prove a sua inocência.

-Provarei. Há muito para investigar, até entre as cinco referenciadas a quem prestava assistência. Mas diga-me o que precisa da minha pessoa?

-Parece que tenho aqui um dente que quer ser coroado.

-Vamos lá ver.

-Chegou a vez das brocas falarem sem contraditório. E eu, de boca aberta, sem poder dizer palavra. Quando elas se calaram a doutora Isabel mandou-me sair da cadeira.

-Volte dentro de duas semanas. Venha preparado para estar aqui cerca de hora e meia.

Naquele instante não consegui evitar que o pensamento fugisse à vigilância da consciência.

-Hora e meia? O que tu queres sei eu.

Consegui, no entanto, em tempo útil, amordaçar as palavras antes que se fizessem som. e como boomerang me caissem. Perguntei:

Tanto tempo doutora!

-É o tempo necessário para moldar a coroa. Não se assuste. Está em boas mãos.

Daqui a duas semanas lá estarei. Nas mãos da viúva acidental. Talvez a aventura continue.

 

 

 

E agora José?

 

Caí de paraquedas naquela turma de preparação para o ensino superior. Nem sabia o que ia lá fazer. Há razões que a razão desconhece. Talvez estivesse ali para preparar as provas de acesso, talvez quisesse ocupar tempo sem ocupação, talvez fosse determinação do destino. Quem sabe? Se calhar, nem Deus .As aulas tinham começado há algum tempo. Os outros alunos já se conheciam, mas eu, que não sou muito ousada, sentia-me um pouco à margem. Era uma espécie de patinha feia.

Um dos colegas que me prendeu a atenção foi o Zé. E por duas razões: tinha a sensação que o conhecia de qualquer lado e porque ele costumava dar nas vistas durante os debates. Na primeira aula de Filosofia a que assisti a propósito de filósofos pré-socráticos, o professor referia a oposição entre Parménides e Heraclito. O primeiro explicava o mundo como uma permanência e o segundo defendia a constante mudança. Ninguém consegue tomar banho duas vezes no mesmo rio, era um dos seus argumentos. Lembro-me que o Zé entrou na discussão desviando o assunto para a área politica. Dizia ele “ é o que se passa cá com a intersindical e com a UGT” .Uns querem ser os únicos os outros reivindicam o direito à diferença. Estávamos no chamado PREC e deu para ver que o Zé se assumia como ativista militante.

Notei que o Zé se sentava-se ao lado duma lambisgoia de grandes olhos e tão negros como carvão. Verifiquei que no fim das aulas saiam juntos com outros colegas, formando um grupo que se juntava no fim das aulas. Passado algum tempo , o Zé e a delambida deixaram de se sentar juntos. O Zé sentava-se na fila da frente e eu na última. Um dia o Zé virou-se para trás e pousou o olhar na minha pessoa sem pedir licença. Mas não me amofinei. Antes pelo contrário, deixei os meus olhos voar ao encontro dos seus. Enfeitei esse voo com o meu melhor sorriso. Depois subiu-me um calor dos pés para todo o corpo. E vi-me a questionar a minha lucidez “Maria Alice, Maria Alice, estás a desvalorizar-te”

Não sonhava que naquele ano de setenta e cinco ia haver um verão tãoquente. Na natureza e no dia a dia. Desiludi-me com a política partidário e com os pequenos e grandes interesses que a moviam, e dei de frosque. Tinha concluído o curso liceal e para melhorar conhecimentos matriculei-me no curso Hadoque para acesso à Universidade.

Essa turma era constituída por um grupo muito heterogéneo. Uns preparavam-se para os exames de acesso, outros nem por isso. Nessa situação encontrava-se Lígia Maria, que nos seus grandes olhos pretos, trazia a tristeza de uma relação terminada. Viúva de sentimentos, frágil de confiança, ganhou coragem para chorar no meu ombro. Que podia fazer? Acho até que sou feito da massa dos anjos. Com uma diferença é que ao invés dos ditos, acrescentara-me o sexo. Nessa dupla condição fui confortando a Lígia conforme podia e sabia. Depois das aulas que terminavam às onze, íamos até ao velho Império para estudar. Hoje virou igreja, mas naquela altura era cinema e um café cosmopolita. Tínhamos um pequeno grupo, que noite adentro, matava o tempo, num animado bate-papo, ao sabor das palavras que segundo se diz são como as cerejas. Além da minha pessoa e da menina dos olhos grandes, havia o António Feliz que tinha sido deixado em terra por uma hospedeira de bordo., e havia o Marinho que tinha vertigens e não gostava de corpos femininos porque eram muito sinuosos.

Como não há bem que sempre dure desentendi-me com a Lígia, nem me lembro

bem porquê. Possivelmente por ninharias. É por aí que começam os desentendimentos. De qualquer modo, ela tinha encontrado o tempo de equilíbrio e, se calhar, desejava um diabo que a desequilibrasse. Ingrata.

Comecei, então, a reparar numa novata, discreta, que se sentava na coxia da sala. Catrapiscámo-nos. No intervalo trocávamos umas ideias sobre os assuntos da aula. Transmitia alguma serenidade e ajudou-me a colocar na caixa das memórias esquecidas a menina dos olhos negros.

Quando a delambida se deixou de se sentar ao lado do Zé, enchi-me de coragem e aproximei-me com o pretexto de lhe pedir que me esclarecesse algumas dúvidas. Mas as minhas dúvidas não se prendiam com a matéria. Nem eu sei porque lhe estava a dar bola. Receava estar a ficar oferecida. Por outro lado estava certa quando me pareceu que já tinha visto o Zé. E tinha. Afinal trabalhávamos na mesma empresa, em secções e edifícios diferentes. Eu trabalhava na secção de pessoal onde lidava com processos de trabalhadores. Recordei-me que o processo do Zé tinha-me passado pelas mãos, e reconheci-o na fotografia. Mas ao vivo não desmerecia.

 

No fim do ano lectivo toda a turma se juntou para conviver incluindo os professores. O Império era o ponto de reunião. Fomos informados que iriamos para uma discoteca na zona histórica. Distribuímo-nos pelos carros disponíveis e quando me apercebi estava no carro do Zé. Só nós dois. Partimos para o local combinado. No decurso da viagem caiu um aguaceiro de criar bicho. Perdemo-nos dos restantes e enganámo-nos no percurso. Ao entrarmos na discoteca uma voz anunciava furiosamente. “A menina da gabardine creme e o cavalheiro de bigode não têm lugar. De facto, não cabia naquele sítio nem sequer uma agulha. Fizemos ouvidos de mercador e furámos por entre uma multidão anestesiada. Dos colegas nem havia rasto. Perguntamos ao porteiro se ali tinha estado um grupo numeroso. Disse-nos que sim, mas como não havia lugar tinham ido embora. Admitiu que o informaram do local mas não se recordava. Passámos a noite a subir a descer colinas de discoteca em discoteca, como passageiros perdidos na chuva. Era como procurar o Wally.

Ao dobrar da noite conferenciamos e decidimos desistir. Lembro-me de ter dito: “uma noite para esquecer” e de o Zé ter respondido, “talvez seja para recordar”. E foi.

Na noite em que me perdi com a Maria Alice numa Lisboa diluviana, enquanto os outros companheiros de estudo, estavam num aconchego seco e agradável, a deglutir uma saborosa bebida e abanar o capacete, como se dizia, tive a convicção que me começava a meter em sarilhos. Debaixo de um aguaceiro impiedoso , por ruas quase rios, perdemos o contacto. Mas porque raio os alarves não esperaram que chegássemos? E para além de ficar com a criança no colo, (salvo seja) quando nos voltámos a encontrar, ainda me acusaram de me ter afastado para desencaminhar a donzela. Uma ova. Não queria desiludir a moça que confiara na minha competência e fiz das tripas coração para levar a carta a Garcia. Senti-me um pouco ridículo , mas ao fim e ao cabo a ela não me pareceu muito aborrecida.

Primeira paragem: cabine telefónica. Procurar desesperadamente nomes de discotecas

E a Maria Alice à espera no carro

Segunda paragem: regresso à discoteca original para ler a lista ao porteiro, na esperança que se lembrasse de um nome que me orientasse.

E a Maria Alice à espera

Terceira paragem: discoteca Boa Noite. Entrar, sair e nada.

E a Maria Alice a seguir o delírio.

Mais e mais do mesmo. E a Maria Alice com uma paciência de santa.

Fizemos os exames de acesso à Universidade. Uma pequena parte da turma entrou para a Faculdade de Letras. Aproveitámos o balanço e constituímo-nos em grupo de trabalho. No primeiro tema que tivemos que desenvolver distribuímos tarefas e depois reunimo-nos para concluir. Quando a Maria Alice apresentou a sua parte, o António Feliz, que devia estar num dia não, arrasou o texto da moça. Imagino como ela se deve ter sentido, mas reagiu serenamente. Disse que se afastava do grupo, contudo deixaria o seu contributo se assim quisessem. Na sequência deste acontecimento desistiu dessa e de outras cadeiras. Ainda tentei que reconsiderasse. Em vão. Manteve-se firme. Deixei de a ver.

No ano a seguir à conclusão do curso, porque tive saudades do ambiente universitário e porque queria fugir à rotina da análise de dados, matriculei-me em duas cadeiras suplementares. Na empresa continuava entre a cruz e a caldeirinha, isto é entre o chefe e a menina Maria Ana. Para mais já não ia a despacho com o engenheiro Casanova.A versaão oficial era que o engenheiro tinha ido fazer uma actualização aos Estados Unidos. Numa outra versão constava que teria pediu transferência porque a menina Ana era muito exigente.

Fosse porque razão fosse a Maria Ana tentou reaproximar-se de mim. Lembro-me que, da minha janela, olhava para o cais e via os barcos parados. Senti que esse navio já tinha deixado o porto.

Entretanto começaram as aulas na faculdade. Ao sair de uma dessas aulas, deparei-me com uma figura discreta sentada ao cimo de uma escadaria. Ao aproximar-me visualizei uma dama esguia que vestia uma gabardine creme. Ao chegar mais perto pousei os olhos num rosto calmo com um leve sorriso.

-Alice? Como estás? O que fazes aqui ?

Estou a fazer tempo para a próxima aula.

E tu? Pensava que já tinhas terminado!

Terminei, mas vim fazer cadeiras extra.

E então pá, para além disso, que tens feito? Casaste, tens meninos?

Embatuquei. Durante uns segundos fiquei paralisado. Fugi à questão. Repliquei a pergunta.

-E tu? Casastes, tens meninos?

-Que eu saiba ainda não se podem fazer sozinhos.

Pasmei. Tanto tempo passado, A Maria Alice tinha evoluído na arte da sedução. Ou seria da provocação?

Não sou de fugir a desafios? Entrei no jogo

-Pois se são precisos dois estamos na conta certa. Porque não passamos à acção?

Pensei que tinha jogado forte. Preparei-me para as consequências. Das duas uma: ou a Maria Alice me dava um par de estalos, ou não me levava a sério, fazia-se de desentendida e seguíamos o nosso caminho.

-Porque não? Respondeu. A proposta só peca por tardia. Há muito que estou à espera. Sou paciente. Tenho-te seguido ou esqueceste-te que tenho o teu registo à mão de semear. Houve uma altura que pensei que a bruxa dos olhos negros te tinha seduzido. Mas pela tua ficha constatava que continuavas solteiro. Até me apercebi que foste coordenar o departamento de comunicação.

É verdade. Quando me fizerem o convite não hesitei. Há muito que pretendia deixar a secção de análise de dados onde era penoso ver o chefe cada vez mais ensimesmado. Algum tempo depois de saír chegou-me aos ouvidos que o chefe tinha tido acesso às mamas da menina Ana. E dizia-se que o chefe emagrecia e perdia a cor como um tecido má qualidade. Uma manhã chegou com ar abatido, sentou-se e esparramou-se em cima da secretária. Morreu no seu posto, sem nunca chegar ao seu vinte e cinco de Abril. Houve quem atribuísse culpas à saciedade da Maria Ana e a excesso de comprimidos azuis. Do que eu me livrei.

-Mas voltando à tua sugestão: Convido-te para um jantar. Eu mesma o preparo, no apartamento que comprei na periferia. Pode ser amanhã?

Engoli em seco. Não estava à espera de uma terceira hipótese de reacção. A garota mostrava-se atrevidota. Não quis dar parte de fraco. Ainda tinha um dia pela frente. Enquanto o pau vai e vem folgam as costas. Aceitei. Quem sabe se era bluf.

-OK. Amanhã conta comigo. A que horas?

Tirou uma folha de um caderno, escreveu um endereço e rabiscou um esquema que me entregou

-Aqui está. Espero-te às oito. Não te atrases para a comida não esfriar.

Despedimo-nos. Enquanto atravessava a nave até à saída, fui invadido por um turbilhão de ideias contraditórias. Se tivesse num jogo de xadrez tinha levado cheque mate. Por outro lado lembrei-me que .t eria que procurar um novo alojamento. A dona Mariazinha ia fechar a hospedaria. Recebeu uma proposta do Paco Caballero. Aceitou e ia viver com ele. Estava de partida para a Andaluzia. Dizia que aos cinquenta, se não montasse aquele cavalo, não passaria mais nenhum. Além disso era difícil resistir ao seu charme. Como é que se ia acomodar na vida dele, logo se via. Por isso se a Maria Alice me acolhesse ficava resolvido o problema. Mas não iria meter-me noutra alhada?

E agora José?

No dia 19 de Janeiro de 1736 nasceu James Watt, acontecimento que quero salientar pela importância que a sua acção teve no arranque da sociedade industrial.

Construtor de instrumentos científicos, destacou-se pelos melhoramentos que introduziu na máquina a vapor.

Nasceu em 19 de janeiro de 1736 em Greenock e passava seu tempo livre na oficina do pai, construindo modelos.

A máquina a vapor de Watt iria revolucionar o sistema produtivo na indústria e nos transportes. A sociedade avançada em que vivemos têm portanto a sua marca. Tem lugar garantido na galeria dos descobridores.

Escrevi este texto depois da última consulta do dentista. Hoje recuperei-o por que chegou a altura delá voltar. Estou num estado ambivalente. Para além do stress de ocupar aquela cadeira, estou em pulgas para saber se a minha dentista foi acusada do assassinato do marido ou se a vou encontrar remoçada para nova aventura. É que ela ainda vira a cabeça a muito sedutor carente. 

 

Chegou o dia de ir ao dentista. A cadeira do dentista é para mim a tortura made in século XXI. Estou convicto que se Torquemada andasse por aí, com acesso a tal instrumento acabava com os hereges em três tempos. Mas a verdade é que não anda, pelo menos até ver, pois como as coisas estão  não sei não. Enfim, tem que ser tem que ser. Porém não me armo em herói e confesso que vou transido de medo. Bem se alguém não vai, com medo, para essa cadeira, que atire a primeira pedra. Pela minha parte, preparo-me o melhor que sei: faço um retiro espiritual, invoco todos os santos, enebrio-me de pensamento positivo e à cautela tomo um xanax. Depois, entrego-me nas mãos da minha dentista, que as mulheres agora estão de corpo e alma em todas as profissões.

 

A minha dentista é a doutora Isabel Alçada. Para o caso o nome tem pouca relevância, mas aproveito para aplicar umas técnicas que aprendi num seminário de escrita criativa. A doutora para além da competência em bem manejar as brocas e outros instrumentos picantes, tem uma indisfarçável paixão por um clube de futebol com o qual também me identifico. Para não ser ostracizado por algum leitor, não vou dizer se somos benfas, lagartos ou "dragons" carago. O que digo é que temos grandes bate-papos a propósito. Ela descarrega a tensão e a pressão de mais uma jornada e eu dou-lhe corda e vou adiando a hora da broca me perturbar a paz bucal. E entre golos falhados, bolas no poste, juízos de árbitros acima de qualquer suspeita (gatunos) remato, para impressionar, que o futebol moderno vive menos de tácticas e mais de dinâmicas, coisas que aprendo com os comentadores de futebol. Remato mas sempre ao lado que a doutora está sempre à defesa e não me deixa marcar nem um golito. Adiante, que já vou na linha doze  e ainda não se passou nada que agarre o leitor. Nem um "enrolanço" repentino, na cadeira, com a doutora, na altura em que entrava de surpresa o eventual companheiro e que me dava uma surra de criar bicho e me partia o resto dos dentes sãos.  Nem sequer aconteceu uma tentativa de assassinato da dentista por um cliente tresloucado. Vontade não tem faltado, a chatice é que ela é de carne e osso e não uma personagem de enredo literário. Nem sequer se sabe da densidade da personagem, ou se é loura ou morena. A continuar por este caminho já tinha chumbado em escrita criativa

 

Assim que entro no consultório, sou informado pela assistente, que a doutora teve que se ausentar. Aí pensei, hoje é o meu dia de sorte. Pensamento não era completado e já a solícita assistente me informava sem deixar cair o verbo: -a doutora fez uma escapadinha mas deixou uma substituta e está à sua espera senhor José, concluiu. Uma vez que a assistente identificou o narrador, que queria ficar incógnito, vamos enfrentar a nova torturadora. Enfrentei-a de nariz empinado para não dar parte de fraco. Cumprimentou-me com um sorriso tímido. -Chamo-me Ana Maria Magalhães e estou a substituir, provisoriamente a Isabel Alçada. Então qual é o problema? Abri a boca e mostrei-lhe a cratera que me dava a imagem de anti-drácula. -Ainda se pode fazer alguma coisa doutora? Pouco, respondeu. Foi apenas o que lhe ouvi dizer. Depois, só se ouviu o som dos instrumentos num frenesim ininterrupto. Não sei se a doutora substituta sofre por algum clube, se é apoiante do governo ou se tem página no facebook. Estava ainda embrenhado nas minhas especulações quando a dentista voltou a falar: -Já tem de novo o seu dente. Não vi. Os dentistas não têm, como os cabeleireiros, um espelho para mostrar a obra. Uma falha. Mas senti o buraco tapado e pareceu-me boa a reconstrução. Antes de sair arrisquei perguntar: quando volta a doutora Isabel Alçada? No seu estilo economizador de palavras disse: -quem sabe? Está presa preventivamente. Foi considerada arguida na morte do marido. Questões passionais. Bolas, agora que a aventura acabou é que aconteceu algo capaz de fazer progredir a história...

17 Jan, 2015

Efeméride do dia


 Em 17 de janeiro de 1969, os Beatles lançam Yellow Submarine. Poucas músicas deste disco são inéditas. O trabalho contém faixas, que em sua maioria, são músicas orquestradas e compostas por George Martin. Os tempos mudaram. Os submarinos não são de música mas de corrupção. A solidariedade europeia deu lugar à xenofobia. A Europa dos povos foi substituída pela Europa dos interesses. Quem diria! Em 17 de Janeiro de 2015, apetece regressar ao passado neste submarino de esperança.

 

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