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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

31 Dez, 2014

Adeus ano velho

O ano velho está de partida. Mas o que é o ano afinal. Dito desta forma não passa de uma entidade abstracta. Do ponto de vista substancial o ano somos todos nós. Os que produzimos e os que consumimos. Nesta perspectiva concluímos que está a terminar foi um mau ano. Foi um ano de sacrifícios, de mais exploração, de mais injustiça social, de mais pobreza, de mais desemprego. A ordem dos factores é arbitrária, mas o ónus da culpa caiu, mais uma vez, nos mesmos. Nos aposentados, nos funcionários públicos, nos assalariados em geral. Diminuíram direitos, aumentaram deveres. Pioraram a educação, a saúde, a justiça. A nobre arte da política perdeu-se em retóricas de baixo coturno.  O ano velho vai e não deixa saudades. Mas o que angustia é que o próximo poderá ser mais do mesmo.

MG

Esta é uma carta que não chegará ao destinatário, o que não significa que não possa nem deva escrevê-la.

Senhor Bruno de Carvalho,

O senhor foi eleito por um número maioritário de sportinguistas para  exercer o cargo de Presidente da direcção. Mas sejamos rigorosos. Não foi eleito por todos os sportinguistas. E mesmo aqueles que o elegeram, não lhe deram, certamente, mandato para exercer o poder absoluto, ou pior, totalitário. Nem lhe deram mandato para se colocar acima dessa instituição centenária que é o Sporting. Nem para confundir o Sporting com a sua pessoa.O senhor há-de passar e o nosso clube há-de continuar .

Eu se tivesse direito de voto, não teria votado na sua lista. Contudo, deixe-me dizer-lhe que, inicialmente, me impressionou favoravelmente. Geriu bem alguns dossiês que tiraram o clube do sufoco em que se encontrava, subordinou as despesas às receitas, colocou a situação económica no caminho certo.Gerou a indispensável estabilidade.  Procurou combater o sistema.Prometia fazer um bom mandato. Quiçá mais do que um.

No aspecto desportivo as coisas correram bem. Com uma equipa constituída por jovens e jogadores de baixo custo, fez uma época acima das possibilidades, graças a factores irrepetíveis: a má prestação de um aniversário directo, a competência da equipa técnica e sejamos honestos, alguma sorte à mistura. Na mesma linha teve a lucidez de contratar um treinador jovem mas promissor e que, garanto-lhe, virá a ser um dos melhores. Até aqui nenhum reparo a fazer.

No entanto, sem que nada o justificasse, de um momento para o outro começou a cometer erros crassos. Talvez inebriado pela época anterior, colocou sobre a equipa uma pressão desnecessária. Qualquer análise lúcida aconselhava a evitar essa pressão. Porque foi  assim, jogo a jogo, que tivemos êxito. Como se isto ainda fosse pouco, começou a disparar em todas as direcções. Isolou-se. Não há histórico de alguém ter ganho guerras com esta estratégia. Mas a cereja em cima do bolo aconteceu nesta época natalícia, quando começou a atirar nas suas próprias tropas. Já não chegava ter desbaratado munições à toa, gastou as que lhe restavam para destruir a sua própria casa.

Senhor Bruno de Carvalho, diz-se que aprender com os erros é um sinal de inteligência. Ainda acredito na sua lucidez. Está a tempo de reconsiderar procedimentos e arrepiar caminho. Mas digo-lhe que a sua margem está a ficar curta. Tem de vestir globalmente a pele de presidente e de deixar a de adepto. Tem de repensar a estratégia comunicacional. Tem de entregar o futebol a quem sabe de futebol. Tem de se concentrar na função presidencial que é dirigir um clube ecléctico, com competência e bom senso.

Por fim digo-lhe, porque estou atento à realidade, que tem muitos adversários internos. Nunca os deixou de ter. Nem mesmo nos bons momentos. E pelo caminho que está a seguir vai ter cada vez mais. Alguns esperam a oportunidade de lhe fazer a folha. É pena que o bom trabalho que começou esteja em vias de estar em causa. Não é aconselhável voltarmos à estaca zero. Por isso lhe peço, como sportinguista, que abandone a soberba e a omnipotência. Desça à terra e demonstre a característica dos grandes homens, isto é, daqueles que ficam na história: a humildade. Em vez de dividir ouse unir. Para seu bem, mas sobretudo para bem do Sporting.

Desejo-lhe um novo ano de lucidez.

MG

 

 Antes do  adeus

No ano em que o Zé começou a ser meu hóspede, o meu astral andava em baixo. O malvado do Saturno , o senhor das dores, tinha entrado na minha vida como me dizia a Leocádia, minha amiga e astróloga com casa na praça. Em poucas palavras, no início do ano , o meu filho Toni, o primogénito tinha passado à clandestinidade. Nada de política. Aconteceu que o rapaz teve de partir para França de supetão para não ir combater os turras. Desde então vivia em Paris, onde fazia figuração no cinema. A última vez que o vi foi ao lado do Steven Mqueen no filme “Le Mans”. E como estava lindo o meu menino.

Aproximava-se o Natal e o Toni não aguentou as saudades. Arriscou e resolveu vir passar a consoada connosco. Correu tudo bem até ao dia 24 de Dezembro. Nesse dia bateu-me à porta o meu genro, um pequeno industrial, com acesso a informações privilegiadas.

-Onde está o Toni?

- Saíu com amigos. Mas há problema? O que se passa?

-Temos de o tirar rapidamente do país. A qualquer hora pode aparecer a polícia para o prender.

Entrei numa grande aflição. O meu genro e o senhor Zé o único hóspede presente nessa altura, procuraram acalmar-me.

- Eu posso ajudar, disse o senhor Zé. A minha terra é próxima da raia. É uma aldeia o onde havia muitos contrabandistas. Agora estão reformados porque o contrabando já era, mas ainda são aptos para o ajudarem a dar o salto.

O Marcelo Caetano tinha substituído o Salazar, mas as mudanças eram poucas. Falava em evolução na continuidade. E com razão, porque os bufos do regime estavam em todo o lado. Todo o cuidado era pouco. No entanto, o senhor Zé, merecia-me total confiança. Sabia que participava nas acções da oposição. Houve uma vez que chegou a casa amachucado . Tinha sido perseguido pela polícia política quando distribuía propaganda, tendo sido preso e sujeito a interrogatório. Foi solto por falta de provas, mas não se livrou de uns apertões valentes.

Só para especificar a alusão da narradora secundária, esclareço que, noutra perspectiva, já não era nova a minha relação com a tortura. Esta começou na escola primária. Estava habituado desde sempre às tradicionais reguadas. Mas o mais duro aconteceu quando tivemos um professor com sotaque beirão que tínhamos dificuldade em perceber. Consta que era unha com carne com o tintol. Talvez fosse seguidor da máxima salazarista,

beber vinho dá de beber a um milhão de portugueses

ou então, sentia a falta da namorada da qual recebia uma carta todos os dias, que abria, sempre, no início da aula,a hora da chegada do correio. Depois prendeu-se de amor por uma Maria lá da aldeia e deixou de receber cartas de amor. Fosse porque razão fosse, o certo é que malhava por tudo e por nada. Era chapada, ponteirada, puxão de orelhas. E como isso ainda não chegasse colocou-me a guarda-redes da sua equipa, nos jogos que fazíamos no recreio das aulas. Quer dizer, apanhava quando não resolvia as fracções ou as expressões numéricas, e voltava a a apanhar de cada vez que a bola passava por mim sem dizer água vai. Num jogo em que estava colocado na baliza formada por dois postes de cimento, que estavam na divisória com a escola feminina, umas fedelhas provocaram-me, volt ei-me para trás, precisamente no momento em que a bola aproveitou para passar. O senhor professor virou-me gentilmente a cabeça para o lugar onde devia estar virada. Mas pelo facto de a mão ser muito avantajada, deixou-me um olho fechado. Há males que vêm por bem. Com um único olho operacional não podia ser guarda-redes. E assim acabou a minha carreira de futebolista. Mas fiz um bom tirocínio em levar porrada.

Partimos na tarde desse dia rumo ao Sul. O senhor Zé viajava ao lado do meu genro que era o condutor. Eu seguia com o Toni no banco traseiro. O meu filho estava calmo, mas eu sentia que o peito ia explodir. Seguimos por estradas secundárias sem ser interrompidos por nenhuma brigada policial. Ao cair da noite chegámos a uma pequena povoação perto do Guadiana . O senhor Zé saiu da viatura e mandou-nos esperar. Pouco depois chegou com um indivíduo esguio como um pinheiro bravo. Entraram no carro. Disse:

-Apresento-vos o Zé do Salto, velho contrabandista e emigrante reformado. É pessoa de total confiança. Vai levar-nos até junto do rio onde procuraremos um pescador para passar o Toni para a outra margem. Precisamos da máxima descrição. Os bufos estão em todo o lado.

O senhor Zé do Salto olhou-me e com um tom calmo e determinado disse-me:

-Estou ao corrente da situação. Daqui a pouco o seu filho estará livre de ser carne para canhão. Esta guerra que está a destruir uma geração de jovens também me atingiu. O meu filho mais velho foi mas não voltou. Uma mina pulverizou-o. Os outros dois vivem em França e não voltarão enquanto este regime estiver de pé. Acredito que mais dia menos dia cairá.

Seguimos já noite cerrada até um pequeno lugarejo na fronteira. O senhor Zé do Salto dirigiu-se a uma casa próxima da margem. Regressou pouco depois, com um semblante preocupado.

- O barqueiro que fui visitar recusa-se a fazer o transporte. Diz que o rio está muito caudaloso. Receia não p conseguir atravessar.

Quando terminou o seu relato, emergiu da escuridão fria de Dezembro, um vulto indistinto e inesperado. Ficamos expectantes. Ao aproximar-se vimos que vinha embrulhado num capote tipo militar. Acendeu um isqueiro para servir lume à ponta de um cigarro. Desenhou-se na luz da chama um rosto esguio onde rugas davam a ideia de uma serra cortada por regatos secos. O Zé do Salto falou:

-Mas que diabo fazes aqui Paco Caballero. Vieste do além?

-Conho Zé do Salto venho antes do Paraíso. Da casa da Rosalia. Conho Zé do Salto Venho los antes do Paraíso . Da casa da Rosalia

Conho Zé do Salto vienen antes del Paraíso. La casa de Rosalía.

-Ó homem ainda não te reformaste-te’

-De carabinero sí, pero no la adicción de las mujeres.

 

O senhor Zé do Salto sossegou-nos. Disse-nos que o Paco era seu amigo desde os tempos do contrabando apesar de estarem em campos opostos. Tinha perdido o pai, um anarquista, na guerra civil, alutar pela república contra Franco. Depois da guerra terminar, entrou para a guarda civil porque precisava de alimentar as bocas que lhe pediam pão. E chegaram a ser tantas que o magro ordenado não era suficiente. Fazia-se de cego quando passavam contrabandistas na sua área e deles recebia algumas oferendas. Á sua maneira era uma forma de se opor à ditadura. Para mais, sabia-se, que para além da matriz a mulher oficial, tinha sucursais dos dois lados da fronteira. E dizia-se que tinha filhos das duas nacionalidades. Era um verdadeiro internacionalista revolucionário.

Pero, ¿qué haces aquí a estas horas Zé ? Volvimos al contrabando ??

-De certo modo sim, Paco. Quero passar a encomenda mais preciosa. A vida de um jovem que foge à guerra. Contava com um pescador, mas tem receio de atravessar com esta corrente.

O senhor Paco emocionou-me na minha viuvez sentimental, desde que me separei do pai dos meus filhos. E fosse outra a situação cairia a seus pés. Com um voz que me lembrar Humprey Bogart em Casablanca, deixou no ar daquela noite fria, mais palavra menos palavra , e pelo que percebi, o seguinte: se é para salvar uma vida, seja porque razão for, também viro contrabandista. Tu sabes que eu espalhei vida por esta raia. Se me derem essa honra, regresso agora à minha sede, e levo chico comigo. Sabes que não há caudal que me pare. Aliás tenho um pacto de irmandade com o rio. Garanto que amanhã o jovem estará na estação Ayamonte de onde viajará de comboio para Sevilha.

O rio quebrava,a monotonia da paisagem rude das margens. Parecia uma passadeira ondulante que tudo submergia. O Toni entrou na lancha do velho carabineiro reformado, mas pouco.

-o rio e eu temos um pacto de não agressão, disse na despedida.

Confiei no senhor Paco e até me apeteceu-me ir com ele, mesmo que o destino fosse o inferno. O barquito foi desaparecendo na imensidão da água, cada vez mais barquito, até chegar ao porto de salvação

O Toni chegou são e salvo ao seu destino e tudo voltou ao rame rame habitual. Não esqueci, nem nunca vou esquecer a juda que o senhor Zé me deu. Por isso fiquei muito abalada com o que lhe aconteceu uns meses depois. Tudo começou quando a sua namorada o trocou por um piloto cinquentão, de uma companhia de aviação. Não era nada que eu não estivesse à espera. Sempre que os encontrava, ocasionalmente, nas salas de algum cinema, dizia de mim para mim, “esta tipa tem cara de cabra vadia”. Oxalá me tivesse enganado, mas não foi isso que aconteceu.

O senhor Zé ficou de rastos. Deixou de comer. Passava noites acordado. Emagrecia a olhos vistos e parecia um cão sem dono. Metia dó. Começou a faltar ao trabalho e não tardou a ser despedido. Não me pagava a hospedagem, mas isso era o menos. O que eu desejava era voltar a ver o meu menino recuperado. Sim que todos os que ali habitavam eram para mim filhos adoptivos.

O doutor Abel Sisudo da Caixa de Previdência, mandou-o fazer uma pilha de exames. No dia em que foi saber os resultados, pedi-lhe para me deixar acompanhá-lo. O médico olhou para as análises sem mexer qualquer músculo facial. Pegou num papel onde fez uns rabiscos. Com a mesma falta de expressão e economia de palavras que era costume, disse:

-Não tem nada. É tudo problema da cuca. Leve esta credencial e vá para psiquiatria.

Mais valium, menos valium, e outras drogas mais pesadas, o meu hóspede foi recuperando. Foi um tempo muito duro, mas como diz o povo, o que não nos mata, endurece-nos e pela minha experiência sabia que senhor Zé iria dar a volta. Foi o que aconteceu quando entrou para os quadros de uma grande empresa de transportes e resolveu voltar a estudar. Estávamos no início de 1974. E muita coisa estava prestes a mudar.

A novela Sporting está na ordem do dia. Nesta época natalícia só se fala de Sporting. Como sempre pelos piores motivos. E, o mais curioso, é que nada o previa. O Sporting tem um Presidente que sido considerado bom gestor, tem um treinador jovem e competente que, mau grado ter uma equipa sem craques sonantes, (excepto um) está a lutar em todas as frentes. O director de futebol denominou a situação como poeira. É um nome interessante para a novela, porque é disso que se trata: mistério,intriga, traição, ciúme, mentiras, calúnias.

No primeiro episódio o Presidente ataca as suas tropas. Depois desenvolve-se o enredo. Ataques e contra-ataques. No que devia ser o último episódio, um Joker, escolhido a dedo, dá a machadada final no treinador, "um diabinho". Mas num volte face inesperado, surge o Presidente omnipotente a dizer que a novela continua. Os órgãos de comunicação cantam hossanas. O folhetim vai continuar a render.

 

Um adepto lúcido disse: isto é o Sporting. Parecia que com esta nova liderança, a desbunda ia terminar. Falsa ilusão. O regabofe está de volta. Os egos incham e atrofiam o clube. O Sporting é um clube mesmo muito grande. Senão não resistiria a tanta demência.

MG 

25 Dez, 2014

Angústias de Natal

O Natal 2014 está de partida. Que vá em paz. Este Natal da família restrita e das compras não me deixa saudades. Nunca deixou. Condiciona os comportamentos e limita a liberdade de escolha. Se quiser ir a um restaurante não posso. Fechado. Se não for comer filhós ou rabanadas com os familiares sou apócrifo. Pior. Eu próprio me martirizo. E penso que devo ser o único carneiro tresmalhado do grande rebanho. É angustiante. Por isso quando este Natal parte fico aliviado. Fico eu, ficam os perus, fica o bacalhau, mesmo congelado, ficam as couves (ou pencas) arrancadas à mãe terra, ficam os pinheiros roubados às brincadeiras de infância. Sei que há-de voltar. Mas enquanto vai e vem alivio a minha angústia. Aliás é durante essa ausência que sinto o verdadeiro espírito natalício, na comunhão com essa grande família que é a humanidade. Até o bacalhau regressa feliz, às suas centenas de receitas, personalizadas por apreciadores. Sinto que a espécie humana não desapareceu da praça pública, por magia de um mágico louco. Dir-me-ão, é apenas um dia por ano. E eu pergunto: com que direito há-de ser sonegado? E ao longo de uma vida quantos dias me tiram? É certo que outros condicionalismos surgirão, mas mais opcionais e mais transitórios e onde posso exercer o livro arbítrio. Até ao próximo Dezembro.

MG 

 

Tens mais de dois mil anos. Que linda idade. E continuas sempre menino. A noite de 24 de Dezembro comemora o teu nascimento, apenas o teu nascimento. Contudo, os homens associaram a esta data uma outra figura a que chamaram Pai Natal e que te tem roubado protagonismo. Mas tu com a tua humildade não te importas. Para mim serás sempre o aniversariante. Era assim na minha infância e assim continua a ser. Era com enorme alegria que nessa noite punha o meu sapatinho na chaminé e ia dormir ansioso pela tua visita. Nunca me desiludiste. Ao acordar havia sempre uma prendinha. Modesta, certamente, mas era o que podias dar. Compreendia a dificuldade em satisfazeres tanta solicitação. Como compreendia que não conseguisses responder a todos os pedidos. Tanto mais que havia criança que nem sapato tinha no pé, quanto mais na chaminé. Havia e há. Não é culpa tua os homens não seguirem o teu exemplo. 

 

Agora já não ponho o sapatinho na chaminé. Isso é fantasia de menino que já não sou. Mesmo aqueles que o são já nada te pedem. Entregam a sua lista de prendas ao dito pai Natal e esperam junto de um simulacro de pinheiro, carregado de bugiganga, que ele lá as deixe. Muitos certamente não te conhecem. Não tardará tempo em que tudo se passará na Net. Sinal dos tempos. Deixa lá, ficas mais liberto para outras tarefas. É por isso e em honra da nossa velha amizade e da minha fidelidade que ouso pedir-te um pouco de atenção.

 

Não te vou pedir aquelas coisas vulgares e repetitivas: paz, amor, felicidade etc. Seria interferir no livre arbítrio que generosamente deste à humanidade. É certo que alguns confundiram-no com lixar o próximo. A ideia de "amai-vos uns aos outros" foi submergida pelo egoísmo que pauta a natureza humana. Haverá excepções, mas o que interessa é a regra. O que te peço neste mundo onde nem todos têm sapatinho é que faças o milagre de iluminar aqueles que te representam. Que não se limitem a repetir rituais seculares. Que retomem a tua mensagem de menino em palhas deitado. Que denunciem as injustiças sociais. Que critiquem os poderosos e a sua luxúria. Que se escandalizem com a pobreza no meio da abundância. Que não bajulem o cinismo de políticos demagógicos. Que sejam uma voz de esperança para uma vida digna de todos, sem excepção. Dois mil anos depois é tempo do reino dos céus descer à terra. Pela nossa amizade e pela nossa confiança volto a colocar o meu sapatinho na chaminé.

 

MG

23 Dez, 2014

Nasceu um menino

Nasceu um menino

como  anunciado

sem maternidade

sem berço dourado,

numa manjedoura

se encontra deitado,

por reis adorado

por reis odiado.

Do homem nascido

na mulher gerado

com dor foi parido

 em palhas deitado,

José, o protege

o louva Maria,

a estrela cadente

dança de alegria.

Destino traçado

pregado na cruz

mas não derrotado

seu nome é Jesus,

nascido em Belém

para ser louvado

para sempre, amém

e trazer a esperança

ao ano que vem.

 

Inconfidências de alcova

Conheci o Zé no início da década de setenta. Estava eu a descansar os ossos na cama que ocupava na "hospedaria" da dona Mariazinha depois de um dia a subir escadas sem elevador, para tentar vender aspiradores a quem nem dinheiro tinha para comprar uma vassoura, quando a fui sobressaltado por uma pancada forte na porta do quarto.

-Dá-me licença? Preciso de mostrar o quarto ao...como se chama?

-Zé, como havia de ser? Ou melhor, que hipóteses tinha de não ser?

Quando a dona Mariazinha saiu do meu horizonte, com o seu uniforme semi-transparente de andar-em-casa, que acentuava as suas formas, ainda firmes, de quarentona divorciada, desenhou-se então entre os umbrais, uma silhueta, projectada pela contraluz que jorrava da janela/porta que dava para a marquise. Numa primeira impressão pareceu-me uma figura nem alta nem baixa, nem gorda nem magra, talvez tudo isso. Mas houve um pormenor, ou pormaior que me prendeu a atenção. O pretenso novo hóspede usava uns óculos escuros de formiga. É assim que identifico as lunetas tipo raiban, embora estivesse na cara de quem os usava, que num crivo de largo espectro não passavam de imitação barata. E de imediato concluí que quem usava tal artefacto tinha de ser um gajo porreiro. E não me enganei.

O meu novo companheiro de quarto instalou-se nesse dia, mas só começámos a conviver mais de perto uns tempos mais tarde. O Zé tinha acabado de cumprir o serviço militar e procurava encontrar um rumo para a sua vida. Trabalhava então como operário numa metalúrgica, em horário nocturno. Nos poucos momentos em que nos encontrávamos disse-me que, para além de ter de sobreviver, aproveitava para ir fazendo currículo eclético que lhe permitisse estar preparado para todos os desafios. Mostrava ser um tipo ambicioso.

O seu tirocínio no mundo operário durou dois meses. Por minha sugestão entrou para a multinacional de electrodomésticos onde eu tentava vender enceradoras a quem não tinha nem dinheiro para comprar a cera. Actividade profissional à parte, ocupávamos o nosso tempo livre também com outros hóspedes, pelas capelas nocturnas da cidade. Pelos cafés em bate papos sem sentido, pelos cinemas a papar bons ou más filmes. Desde o Leopardo, de Visconti, até coboiadas spaghetti. Outras vezes andávamos por boites à procura de garinas perdidas.

Só uma achega. Entreguei a narração ao meu amigo porque esta é a parte chata. Coisas de alcova, intimidades, causam-me sempre algum engulho. Penso que deve ser trauma de infância mal resolvido. Aconteceu quando tinha para aí cinco ou seis anos. Lembro-me que no ano seguinte ia entrar para o ensino primário. Fui com um grupo de meninas com quem brincava as brincadeiras da infância assexuada visitar a escola. Dirigimo-nos para as traseiras onde existia um pátio que tinha retretes, um luxo dos edifícios salazaristas, mas que nunca vi abertas. Ali continuamos a brincar imitando a vida dos adultos. Foi aí que, com naturalidade, me bateu, que faz parte da vida dos casais produzir filhos. E foi com toda a naturalidade que propus a uma Maria que podíamos fazer um menino. Nada que fosse além da natural proposição bíblica "crescei e multiplicai-vos". A moça, certamente dentro do mesmo espírito aceitou sem hesitar. Pusemos as restantes em alerta e preparamo-nos para a função. Não deu. Arrependimento repentino? Nem por isso. Aconteceu um factor inesperado. Foi o factor avó que apareceu do nada e sem ter sido convidada. E ainda bem. Mas que jeito tem, querer ser pai, aos seis anos de idade. Visto à distância foi uma ideia completamente destrambelhada.

Não se concretizou mas marcou-me negativamente. Quando comecei a frequentar a catequese, por imposição do senhor professor, adepto do estado novo e católico fervoroso. apercebi-me da tragédia que era cometer pecado carnal. É verdade que não cometi por obra ,mas fi-lo por pensamento. Esse fardo perseguiu-me durante algum tempo. Dentro da escola especialmente, não tinha coragem para olhar para o crucifico pendurado na parede entre os senhores presidentes. A situação resolveu-se no dia em que fiz a primeira comunhão. Deixei esse peso no confessionário. O senhor prior, a troco de umas rezas, perdoou-me. Mas penso que este acontecimento, de forma inconsciente, continuou a perseguir-me. Feito o esclarecimento passo ao narrador ocasional.

É apenas uma teoria sem validade científica, mas acredito que as coisas acontecem quando têm que acontecer. Depois de andar à caça de gajas sem grande sucesso caiu-me uma no regaço sem dizer água vai. Estava a descansar o esqueleto depois de mais um dia sem vender um único aspirador, entrou o Zé que tinha ido encontrar-se com uma colega dos administrativos que andava a catrapiscar há uns tempos(e eu roído de inveja)

-Então Zé tiveste uma nega? Disse e pensei “é bem feito” pois tenho este defeito de ficar feliz com a desgraça dos outros, pelo menos nesta matéria. Mas não devo ser o único

-Qual nega qual carapuça. Pior. Fui buscar uma e aparecem-me duas. Não há fome que não dê em fartura. Ainda pensei que o contrapeso era uma espécie de pau-de-cabeleira, mas não. A tipa não parou de me chatear a moleirinha. Quer que lhe arranje um parceiro dos meus conhecimentos. Lembrei-me de ti, afinal somos mesmo parceiros

Claro que aceitei. Descolei a carcaça de vale de lençóis e vesti o meu fato cor café com leite e desci ansioso pelo inesperado encontro. Assim como assim não tinha nada a perder. Entrei no carro onde o Zé me esperava com as moças. Fomos ver a Janela Indiscreta de Hitchcock, bebemos cacau quente na ribeira e devolvemos as garinas ao apartamento que partilhavam nos subúrbios. E outros encontros vieram até ao dia em que fomos convidados a jantar no remanso do lar das garotas.

Nesse dia D (recuperei a expressão do filme com o mesmo nome) pudemos finalmente entrar na sua intimidade. Viviam num apartamento novo composto por um quarto e por uma mini-cozinha-sala, construído para solteiros, solteirões e divorciados. Depois da refeição, pouco relevante, a minha Maria Teresa levou-me para o quarto para me falar do seu passado. O Zé ficou na sala com a outra Maria. Sentámo-nos na borda da cama a folhear um álbum fotográfico. A Maria vestia uma mini-saia que lhe destapava metade do corpo miúdo. Está visto no que isto ia dar. Não havia escapatória. Fizemos sexo isto é demos uma e outra, até à saciedade.

Alto e para o baile, pausa na narração para fazer uma declaração de diferenças. Cada macaco no seu galho. Não me identifico com tal linguagem. Nunca escreveria fazer sexo, muito menos dar uma. Apesar de um pequeno deslize na infância, quando tive a estapafúrdia ideia de querer ser pai aos seis anos, curei-me. De quando em vez, batem-me umas reminiscências, mas são passageiras. Além disso, fui educado nos princípios da boa moral religiosa. Referir-me ia a esse acto, usando outra formulação. Por exemplo diria, fazer amor livre ou dar protagonismo ao império dos sentidos, sem barreiras. E cada um que tire as suas conclusões. Nessa linha de abordagem não vou descriminar o que fiz (ou não fiz) nessa noite com a minha Maria sem apelido para não a comprometer, onde quer que esteja. Nesta matéria fica a nebulosa para espicaçar a imaginação. Nos tempos que correm, quem gostar de pormenores tem à mão literatura adequada.

Passamos a frequentar a casa dessas namoradas, chamemos-lhe assim, e andávamos satisfeitos com a experiência. Um dia estávamos no nosso quarto um pouco aborrecidos com a pasmaceira da vida. Não tínhamos programado nada. Às tantas, por empatia, decidimos: vamos fazer uma surpresa às tipas, pois não estava previsto. Fomos. Em má hora. A minha cara-metade estava acompanhada por um garanhão de farto bigode, assim tipo de pegador de toiros. Abreviando, foi apanhada com a boca na botija e foi aí que me apercebi da qualidade da peça. Fazendo jus ao nome, a minha Maria era uma espécie de madre Teresa de Calcutá do sexo. Não podia ver um pobre com fome. Quero esclarecer que nem só de pão vive o homem A Maria Teresa tinha logo de praticar caridade. E praticava-a bem. Eu tinha tido o meu quinhão. Compreendi. Segui a minha vida.

O Zé manteve a relação com a Maria sem apelido, por mais algum tempo. Mas percebi que o caso não tinha pernas para andar. Só o Zé não percebeu. E embora as razões não fossem de ordem hardcore como as minhas, também foram bastante cabeludas. Eu saí inteiro, tal e qual como entrei, mas o Zé não. Passou um mau bocado. Nem me quero lembrar.

Continua

 

 

O melhor do ano que vai terminar seria o que devia ter acontecido e não aconteceu, a saber: a reposição dos salários inconsticionalmente reduzidos; o pagamento integral das pensões ilegalmente diminuídas, a valorização do trabalho, usado apenas como reprodutor de mais valias; a reapreciação do sistema de impostos depois de um brutal aumento sobre os rendimentos do trabalho; a valorização da educação descaracterizada há mais de três anos; o respeito pelo direito à saúde; a exorcização do fantasma da troika que continua a ensombrar; a retoma do orgulho nacional; a mais justa repartição da riqueza; o regresso da Europa a um caminho de igualdade entre nações; o fim desse regresso à idade das trevas misto de brutalidade e loucura que dá pelo nome de estado islâmico. Logo no ano que vai acabar anterior, no que diz respeito a contecimentos positivos, nada a registar.

MG  

O homem escrevia crónicas numa página de um jornal inventado. Escrevia crónicas sobre tudo e sobre nada. Dominava o verbo como poucos. Debitava ideias ponderadas e buriladas até à exaustão. Não cometia um erro de sintaxe nem um deslize semântico. Tudo no seu lugar: não se esquecia de um ponto, não falhava uma vírgula, exclamações quanto baste, os verbos na conjugação certa, os adjectivos no grau adequado, os advérbios e as  conjunções no sítio preciso. As suas ideias eram sempre claras, convincentes, plausíveis, coerentes. Era lido com respeito e veneração.

A crónica “a liberdade das palavras” prometia mais um texto sem mácula. Foi lido e relido pelos habituais leitores imaginários e pelo Director imaginado. Uma e outra vez. Uma e outra vez. Ninguém percebia patavina. As palavras corriam desordenadas como um rio que deixa de respeitar as margens e se move sem sentido aparente, como se não tivesse que cumprir um percurso determinado e alimentar um mar. As frases não se regiam por um significado mas por muitos significantes ou vice-versa.

O Director chamou a tipografia. “Quem truncou este texto”, perguntou,” Ninguém”, disseram, “respeita o original”. “Não pode, pode, não pode…ou então o homem passou-se”.

Os leitores tão amestrados à sua escrita perderam-se nas linhas e nas entrelinhas. -Não pode ser, diziam.- Será que estou bem? -Será que me passei?

Chame-se o homem disse imperial o director no seu papel de director chamou-se e veio sem sujeitos predicados apostos complementos o seu texto não faz sentido não tem nexo que se passa é verdade não tem o meu sentido mas tem o seu porque o deixei fluir livre porque conseguiu soltar-se das amarras de pensamentos condicionados e dizer a sua própria verdade e não a minha como assim afinal foi você quem o escreveu melhor foi ele que me escreveu mas não vai entender pois não é um homem livre

-O homem que escrevia crónicas passou-se mesmo, desabafou o Director. Acontece. Temos de procurar outro. Um que escreva crónicas perceptíveis e ajude a formar consciências.

Amanhã é outro dia e volto a escrever sem me passar. Prometo

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