Antes do adeus
No ano em que o Zé começou a ser meu hóspede, o meu astral andava em baixo. O malvado do Saturno , o senhor das dores, tinha entrado na minha vida como me dizia a Leocádia, minha amiga e astróloga com casa na praça. Em poucas palavras, no início do ano , o meu filho Toni, o primogénito tinha passado à clandestinidade. Nada de política. Aconteceu que o rapaz teve de partir para França de supetão para não ir combater os turras. Desde então vivia em Paris, onde fazia figuração no cinema. A última vez que o vi foi ao lado do Steven Mqueen no filme “Le Mans”. E como estava lindo o meu menino.
Aproximava-se o Natal e o Toni não aguentou as saudades. Arriscou e resolveu vir passar a consoada connosco. Correu tudo bem até ao dia 24 de Dezembro. Nesse dia bateu-me à porta o meu genro, um pequeno industrial, com acesso a informações privilegiadas.
-Onde está o Toni?
- Saíu com amigos. Mas há problema? O que se passa?
-Temos de o tirar rapidamente do país. A qualquer hora pode aparecer a polícia para o prender.
Entrei numa grande aflição. O meu genro e o senhor Zé o único hóspede presente nessa altura, procuraram acalmar-me.
- Eu posso ajudar, disse o senhor Zé. A minha terra é próxima da raia. É uma aldeia o onde havia muitos contrabandistas. Agora estão reformados porque o contrabando já era, mas ainda são aptos para o ajudarem a dar o salto.
O Marcelo Caetano tinha substituído o Salazar, mas as mudanças eram poucas. Falava em evolução na continuidade. E com razão, porque os bufos do regime estavam em todo o lado. Todo o cuidado era pouco. No entanto, o senhor Zé, merecia-me total confiança. Sabia que participava nas acções da oposição. Houve uma vez que chegou a casa amachucado . Tinha sido perseguido pela polícia política quando distribuía propaganda, tendo sido preso e sujeito a interrogatório. Foi solto por falta de provas, mas não se livrou de uns apertões valentes.
Só para especificar a alusão da narradora secundária, esclareço que, noutra perspectiva, já não era nova a minha relação com a tortura. Esta começou na escola primária. Estava habituado desde sempre às tradicionais reguadas. Mas o mais duro aconteceu quando tivemos um professor com sotaque beirão que tínhamos dificuldade em perceber. Consta que era unha com carne com o tintol. Talvez fosse seguidor da máxima salazarista,
beber vinho dá de beber a um milhão de portugueses
ou então, sentia a falta da namorada da qual recebia uma carta todos os dias, que abria, sempre, no início da aula,a hora da chegada do correio. Depois prendeu-se de amor por uma Maria lá da aldeia e deixou de receber cartas de amor. Fosse porque razão fosse, o certo é que malhava por tudo e por nada. Era chapada, ponteirada, puxão de orelhas. E como isso ainda não chegasse colocou-me a guarda-redes da sua equipa, nos jogos que fazíamos no recreio das aulas. Quer dizer, apanhava quando não resolvia as fracções ou as expressões numéricas, e voltava a a apanhar de cada vez que a bola passava por mim sem dizer água vai. Num jogo em que estava colocado na baliza formada por dois postes de cimento, que estavam na divisória com a escola feminina, umas fedelhas provocaram-me, volt ei-me para trás, precisamente no momento em que a bola aproveitou para passar. O senhor professor virou-me gentilmente a cabeça para o lugar onde devia estar virada. Mas pelo facto de a mão ser muito avantajada, deixou-me um olho fechado. Há males que vêm por bem. Com um único olho operacional não podia ser guarda-redes. E assim acabou a minha carreira de futebolista. Mas fiz um bom tirocínio em levar porrada.
Partimos na tarde desse dia rumo ao Sul. O senhor Zé viajava ao lado do meu genro que era o condutor. Eu seguia com o Toni no banco traseiro. O meu filho estava calmo, mas eu sentia que o peito ia explodir. Seguimos por estradas secundárias sem ser interrompidos por nenhuma brigada policial. Ao cair da noite chegámos a uma pequena povoação perto do Guadiana . O senhor Zé saiu da viatura e mandou-nos esperar. Pouco depois chegou com um indivíduo esguio como um pinheiro bravo. Entraram no carro. Disse:
-Apresento-vos o Zé do Salto, velho contrabandista e emigrante reformado. É pessoa de total confiança. Vai levar-nos até junto do rio onde procuraremos um pescador para passar o Toni para a outra margem. Precisamos da máxima descrição. Os bufos estão em todo o lado.
O senhor Zé do Salto olhou-me e com um tom calmo e determinado disse-me:
-Estou ao corrente da situação. Daqui a pouco o seu filho estará livre de ser carne para canhão. Esta guerra que está a destruir uma geração de jovens também me atingiu. O meu filho mais velho foi mas não voltou. Uma mina pulverizou-o. Os outros dois vivem em França e não voltarão enquanto este regime estiver de pé. Acredito que mais dia menos dia cairá.
Seguimos já noite cerrada até um pequeno lugarejo na fronteira. O senhor Zé do Salto dirigiu-se a uma casa próxima da margem. Regressou pouco depois, com um semblante preocupado.
- O barqueiro que fui visitar recusa-se a fazer o transporte. Diz que o rio está muito caudaloso. Receia não p conseguir atravessar.
Quando terminou o seu relato, emergiu da escuridão fria de Dezembro, um vulto indistinto e inesperado. Ficamos expectantes. Ao aproximar-se vimos que vinha embrulhado num capote tipo militar. Acendeu um isqueiro para servir lume à ponta de um cigarro. Desenhou-se na luz da chama um rosto esguio onde rugas davam a ideia de uma serra cortada por regatos secos. O Zé do Salto falou:
-Mas que diabo fazes aqui Paco Caballero. Vieste do além?
-Conho Zé do Salto venho antes do Paraíso. Da casa da Rosalia. Conho Zé do Salto Venho los antes do Paraíso . Da casa da Rosalia
Conho Zé do Salto vienen antes del Paraíso. La casa de Rosalía.
-Ó homem ainda não te reformaste-te’
-De carabinero sí, pero no la adicción de las mujeres.
O senhor Zé do Salto sossegou-nos. Disse-nos que o Paco era seu amigo desde os tempos do contrabando apesar de estarem em campos opostos. Tinha perdido o pai, um anarquista, na guerra civil, alutar pela república contra Franco. Depois da guerra terminar, entrou para a guarda civil porque precisava de alimentar as bocas que lhe pediam pão. E chegaram a ser tantas que o magro ordenado não era suficiente. Fazia-se de cego quando passavam contrabandistas na sua área e deles recebia algumas oferendas. Á sua maneira era uma forma de se opor à ditadura. Para mais, sabia-se, que para além da matriz a mulher oficial, tinha sucursais dos dois lados da fronteira. E dizia-se que tinha filhos das duas nacionalidades. Era um verdadeiro internacionalista revolucionário.
Pero, ¿qué haces aquí a estas horas Zé ? Volvimos al contrabando ??
-De certo modo sim, Paco. Quero passar a encomenda mais preciosa. A vida de um jovem que foge à guerra. Contava com um pescador, mas tem receio de atravessar com esta corrente.
O senhor Paco emocionou-me na minha viuvez sentimental, desde que me separei do pai dos meus filhos. E fosse outra a situação cairia a seus pés. Com um voz que me lembrar Humprey Bogart em Casablanca, deixou no ar daquela noite fria, mais palavra menos palavra , e pelo que percebi, o seguinte: se é para salvar uma vida, seja porque razão for, também viro contrabandista. Tu sabes que eu espalhei vida por esta raia. Se me derem essa honra, regresso agora à minha sede, e levo chico comigo. Sabes que não há caudal que me pare. Aliás tenho um pacto de irmandade com o rio. Garanto que amanhã o jovem estará na estação Ayamonte de onde viajará de comboio para Sevilha.
O rio quebrava,a monotonia da paisagem rude das margens. Parecia uma passadeira ondulante que tudo submergia. O Toni entrou na lancha do velho carabineiro reformado, mas pouco.
-o rio e eu temos um pacto de não agressão, disse na despedida.
Confiei no senhor Paco e até me apeteceu-me ir com ele, mesmo que o destino fosse o inferno. O barquito foi desaparecendo na imensidão da água, cada vez mais barquito, até chegar ao porto de salvação
O Toni chegou são e salvo ao seu destino e tudo voltou ao rame rame habitual. Não esqueci, nem nunca vou esquecer a juda que o senhor Zé me deu. Por isso fiquei muito abalada com o que lhe aconteceu uns meses depois. Tudo começou quando a sua namorada o trocou por um piloto cinquentão, de uma companhia de aviação. Não era nada que eu não estivesse à espera. Sempre que os encontrava, ocasionalmente, nas salas de algum cinema, dizia de mim para mim, “esta tipa tem cara de cabra vadia”. Oxalá me tivesse enganado, mas não foi isso que aconteceu.
O senhor Zé ficou de rastos. Deixou de comer. Passava noites acordado. Emagrecia a olhos vistos e parecia um cão sem dono. Metia dó. Começou a faltar ao trabalho e não tardou a ser despedido. Não me pagava a hospedagem, mas isso era o menos. O que eu desejava era voltar a ver o meu menino recuperado. Sim que todos os que ali habitavam eram para mim filhos adoptivos.
O doutor Abel Sisudo da Caixa de Previdência, mandou-o fazer uma pilha de exames. No dia em que foi saber os resultados, pedi-lhe para me deixar acompanhá-lo. O médico olhou para as análises sem mexer qualquer músculo facial. Pegou num papel onde fez uns rabiscos. Com a mesma falta de expressão e economia de palavras que era costume, disse:
-Não tem nada. É tudo problema da cuca. Leve esta credencial e vá para psiquiatria.
Mais valium, menos valium, e outras drogas mais pesadas, o meu hóspede foi recuperando. Foi um tempo muito duro, mas como diz o povo, o que não nos mata, endurece-nos e pela minha experiência sabia que senhor Zé iria dar a volta. Foi o que aconteceu quando entrou para os quadros de uma grande empresa de transportes e resolveu voltar a estudar. Estávamos no início de 1974. E muita coisa estava prestes a mudar.