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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

disponível na net

 

Antes éramos um país de três efes: fado, futebol e Fátima. Hoje, segunda sua excelência o Presidente da República, um país de sol, cavalos e mulheres bonitas. Estranha mudança. E como o fado até foi promovido a património da humanidade, o futebol continua em bom plano, e Fátima igual ao que sempre foi, tenho que concluir que esta nova classificação será, apenas, reflexo dos gostos de Sua Excelência. Portanto subjectiva. Ainda bem, porque vender o país com estes três ingredientes, a ser levado a sério, levanta muita perplexidade.

Se os nossos visitantes vêm procurar o sol com que Deus nos brindou, significa que são ungidos pelo bom gosto. Não entendo tão bem porque vêm ver os nossos cavalos. Cavalos, cavaleiros e cavalgaduras há em todo o santo mundo. Porque raio haviam de vir aqui a este "finis terra" atraídos por esses animais? Agora o que me faz transpirar perplexidade é que venham atraídos pelas nossas bonitas mulheres.

Por mais que  dê voltas à cachimónia, não consigo encontrar uma relação lógica. E como não quero enveredar pela teoria (nem em sonhos) da utilização sexual, ou pior, da venda de virgens aos haréns das arábias, onde Sua Excelência proferiu tais palavras, arrisco concluir que o magistrado máximo da nação não estava a jogar com o baralho todo. Do mal o menos.

PS, Há outra coisa que me intriga: se há tantas mulheres bonitas, porque não escolheu uma (com ressalva da subjectividade de gostos e de apreciação)  para sua companheira? 

 

Prefácio à segunda publicação

Este diálogo (imaginado) entre Sócrates e Rousseau é uma espécie da alegoria sobre aspectos da vida política à portuguesa e foi publicado há cerca de um ano. Resolvi editá-lo de novo pela actualidade que mantêm, em termos de reflexão de filosofia política e da sua apreciação numa linha sarcástica e irónica. Reconheço que não teve nem terá a visibilidade que merece. Na blogosfera outros valores se salientam. Contudo e porque não conseguiria repeti-lo (pela sua originalidade) decidi que merece sair do seu esquecimento. Nestes tempos de ódio, vingança e raiva, embrulhados em justicialismo popular, quero acentuar, que o julgamento dos homens que governam a polis, deve ser essencialmente político. O Sócrates de Atenas, foi condenado por corromper a juventude, num processo que não sendo foi político. O Sócrates da nossa política caseira está acusado de se deixar corromper. Diz-se hipocritamente que é caso de justiça. E independentemente da sua culpabilidade (ou não) não há maior falácia, na minha opinião. Na sociedade não vivemos em compartimentos estanques. A política, a economia, a cultura, a justiça interligam-se entre si. Não há apenas políticos corruptos e juízes impolutos, uma raça de semideuses acima dos comuns mortais. Há homens condicionados pelas suas convicções e até pelas suas paixões, adquiridas em contexto de vida. Quando tendemos a simplificar o que é complexo, não estamos a praticar justiça, mas injustiça.

 

 

 

Sócrates: Imagina, meu caro Rousseau, que te enganaste em relação ao teu bom selvagem que a sociedade degenerou. O facto é que esse traste feito mau selvagem não voltou às origens como tu previas. Eu digo-te: esse bom selvagem nunca existiu nesta merda de mundo. Lá na Hélade percebemo-lo bem. E procuramos demonstrá-lo. Está tudo documentado. Neste tempo os maus selvagens estão ao virar de cada esquina. Não me esqueço que um betinho cobardola se armou em carapau de corrida e me acusou de ser ,homossexual. O asqueroso disse depois de uma reunião com mulheres do seu partido que eu gostava de outros colos. Chamou-me com todas as letras bichona.Bandalho.

 

Rousseau: A liberdade primeiro. Liberdade de ser, liberdade de amar. Não percebo a indignação. 

 

Sócrates: A indignação é pela verdade. Não tenho essa orientação. Eu sei que lá na Hélade havia invejas da minha amizade com Alcibíades, mas aqui sempre fui um heterossexual. Não condeno quem se inclina para o mesmo sexo e até já o fixei em Lei. Mas o aldrabão só queria tirar dividendos políticos deturpando a minha imagem nos demos cá do burgo. O que merece tal camafeu?

 

Rousseau: Temos de continuar a acreditar na recuperação do bom selvagem. Fazemos-lhe um contrato de boas maneiras.

 

Sócrates: Contrato de boas maneiras uma merda. O coirão devia ser ostracizado. Boca de xarroco. Já bebi uma vez a cicuta mas não volto a fazê-lo. Não gostei mesmo nada. Nadinha. Agora quem o tentar fazer não perde pela demora vai levar o troco. Nem aquele bárbaro da Germânia fica sem resposta. O filho da mãe andava todos os dias a bufar para os jornais notícias sobre o meu país. Que Portugal era uma lixeira, que os portugueses eram lixo. Que tudo era pigs. O bronco queria pôr-nos a pão e água. E está a conseguir. Estupor.O coscuvilheiro é tão inculto que não sabe que foi o grande Ulisses que fundou Lisboa, antes Ulisseia, e que por aqui deixou os seus genes plantados. E só não tirei os punhos de renda há mais tempo por consideração para com chefe desse estupor, que sempre apreciou a minha filosofia. E quem sabe outros predicados não sujeitos a divulgação pública.

 

Rosseau: Sendo assim também não deve saber  que daí vem muito do génio marítimo dos portugueses e que inventaram por mares nunca navegados a globalização.

 

Sócrates: Boa merda. Essa não engulo. Que se foda a globalização. Primeiro serviu para sacar a pimenta lá nas Indias à má fila: "ou me dizes onde guardas a droga ou levas com uma dose de tortura, ou me passas para cá o material ou levas um balázio nos cornos". Agora serve para roubar à escala global: "os mercados assim, os mercados assado". Badamecos.

 

Rousseau: Mas ó Sócrates vejo-te muito ressabiado. Violência gera violência. Quem com ferros mata com ferros morre. Olha o que aconteceu ao camarada Robespierre. Temos de negociar. Eu sempre disse: contrato social.

 

Sócrates: Que contrato social companheiro? Tu continuas a ser muito ingénuo. A gente assina com toda a boa vontade o contrato social e depois o que acontece. Os filhos da puta que mandam, mandam-no logo às urtigas. Combinamos salários cortam-nos. Tiram uma parte dos rendimentos  para recebermos uma pensão estipulada e de um dia para o outro sacam o que estava contratado. Canalhas.

 

Rousseau: Mas desculpa se mal pergunto: não foram os demos que lá os puseram?

 

Sócrates: Os demos, os demos, sempre os demos. Pois foram. Mas por acaso eles já saíram da caverna? Digo-te que não. Lá continuam prisioneiros. Há séculos. Presos na escuridão só vêem sombras que tomam pela realidade. Nunca viram a luz. Decidem de acordo com as imagens que lhes projectam.Umas vezes de uma maneira, outras vezes de outra.Anjinhos. Quando alguém quer trazê-los para a luz, revoltam-se. Olha o que me fizeram na velha Atenas. Chamaram-me charlatão. Acusaram-me de trair a pátria. Tiraram-me a vida. Pulhas. Não voltam a fazê-lo. Não me sujeito mais ao seu voto.

 

Rousseau: Então temos de trazê-los para a luz  para o conhecimento. 

 

Rousseau: Não querem. Que palavra não percebes. Gostam de ser iludidos. Foram na cantiga do bandido. O PEC IV era austeridade a mais não era? E a que têm agora é menos não é? Ingratos. Foram fodidos com todas as letras por demiurgos populistas. Elegeram para o palácio rosa um estratego sem qualidade, mesquinho, vingativo. Fez-me a vida negra. Lixou-se e continua a lixar-se para o país. Borra-botas. Destruidor da República. "Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a ideia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de recto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública, disse-o a Glauco.  Platão, escreveu-o na República, livro VII. E tu que dizes?

 

Rosseau: Cito Glauco: concordo com a tua opinião até onde posso compreendê-la.

II Um estranho na cidade grande

Menos aborrecimento deu uma outra maria que se deixou iludir por um maltês, que fazia parte da trupe do alcatroamento da estrada. Uma noite, saiu discreta, arrastando os tamancos e a mãe comentou " a nossa filha vai com um qualquer. Só sei que deixou um cheiro a estrada acabada de alcatroar".

O meu pai, tirou uma fumaça do cigarro de onça que tinha acabado de enrolar : deixa-a ir mulher pela estrada que escolheu percorrer e para nós sempre é menos uma boca para alimentar. E estava certo. Desde esse longínquo dia em que essa maria saiu sem se despedir, com o tipo que cheirava a alcatrão fresco, nunca mais se soube do seu paradeiro. Mas não vi grande tristeza com a sua partida, até porque pelo volume da barriga da mãe vinha mais uma alma a caminho para ocupar o seu lugar à mesa.

Nesse dia não imaginava, nem em sonhos, que seria o próximo a abalar. Estava confortável com a vida que tinha. Guardava o pequeno rebanho e na quietude bucólica dos montes, enquanto os animais pastavam, falava com gente de outras paragens que vivia  enclausurada em páginas de livros. Eram pessoas que se manifestavam em letras de forma e que me acompanhavam na solidão dos longos dias. Todas as semanas os livros chegavam ao largo principal numa carrinha que se chamava biblioteca Gulbenkian.

sai daí malhadinha

Nesse dia, depois de recolher o gado, estava eu embrenhado nas peripécias das Pupilas do Senhor Reitor, a minha mãe levou-me a visitar um senhor de bom traje e finos modos que nunca tinha visto “o senhor José Francisco que vive há muitos anos na capital, e que está de passagem, quer conhecer-te” O primeiro homem que conheci que não se chamava Zé, começou a falar com frases de fino recorte, émulas daquelas que eu pensava que só eram permitidas aos habitantes dos livros

Tu não me conheces porque quando saí desta aldeia de certo vivias no limbo da existência. Perdi o medo que nos tranca a vida nos portões de castelos de mediocridade. Comi o pão que o diabo amassou. Com perseverança, trabalho enfrentei o destino que me colocou nesta terra onde nem judas quer viver e venci. Hoje comando uma secção de uma grande indústria, mas não esqueço as minhas origens e quero ajudar os que querem ter futuro.

Esforcei-me por seguir o raciocínio, mas perdi-me por entre o labirinto de estranhas palavras. Mais tarde percebi que o senhor José Francisco falava mais para si do que para mim ou para a minha mãe. Quando terminou este discurso olhou-me nos olhos e perguntou:

-Ó rapaz tu queres ir para Lisboa?

Tenho um amigo de infância que é dono de uma mercearia e precisa de um marçano para fazer entregas aos clientes. Cama, comida e roupa lavada e a vida toda à tua frente. E a minha mãe “vai Zé que aqui não passarás da cepa torta”

Fui com o senhor José Francisco que me entregou ao dono da mercearia Flor da Estrela. O meu patrão que passara de Zé a José, instalou-me num pequeno anexo da loja com um divã de rede de arame e uma pequena mesa. A minha formação foi simples e rápida: tinha de me levantar às seis da manhã para ajudar o senhor José a transportar os frescos do mercado abastecedor. À nove começava a distribuir mercadorias pedidas pelas madamas. Cabaz bem cheio em cima do lombo, escada acima, escada abaixo, todo o santo dia

aí está o que pediu madame Lucrécia

Às sete depois de fechar a loja fazia a limpeza, comia um jantar frugal, e lá para as nove, caía no divã como tordo entalado em esparrela. E quando me mostrava mais exausto o senhor José dizia, “também já passei por isso e sobrevivi. Ainda hoje dou no duro porque não sou nenhum fidalgo.

Ó rapaz, onde tens a cabeça, pedi arroz e trazes sabão macaco?

A primeira carta que enviei à minha mãe e que mantenho como recordação desses tempos de infância perdida escrevi:

Querida mãe desejo que esta a vá encontrar de boa saúde, na companhia da restante família. Eu fico bem graças a Deus . (esta do fico bem é aquilo a que se chama um lugar comum, a seguir desmentido) Estes primeiros dias têm sido muito ruins. Carrego cabazes pesados às costas com produtos para as senhoras finas. Ao fim do dia quase que não sinto as pernas e só quero deitar-me e até chego a ter saudades da vida de moiral.. A cidade é muito grande e sinto-me um estranho e um capacho de gente importante

Desculpe dona Lucrécia, vou repara o engano

E a minha mãe na resposta “ meu querido filho, nós bem graças a Deus (segue-se uma demorada descrição de cada um dos elementos da família) …se essa vida é tão dura volta pra casa, ainda cá tens o teu prato e o teu garfo” e eu na resposta “querida mãe e querido pai…por cá trabalho que nem um moiro, mas voltar para o rebanho não vou voltar, custe o que custar”.

E não voltei. Aguentei firme. Fiz quilómetros de escadas, gastei solas e meias solas que os tempos eram de poupança. Anos depois subi na hierarquia. Cheguei a caixeiro. Comecei a estudar à noite. Não me via toda a vida atrás do balcão e nem me imaginava a acabar os meus dias como merceeiro. Aos domingos, ia vender bebidas para os jogos de futebol. Escrevi, , então,. à minha mãe para a convidar a ir à venda do Zé Picoito à hora do relato, para me ouvir falar na rádio..

A minha mãe que nunca mais me tinha posto os olhos em cima disse à senhora Laurinha do posto dos correios, , para lhe pôr na carta que tinha ido ouvir-me como combinado: “meu filho, os homens que escutavam o relato, começaram a mangar comigo

olha a laranjada fresquinha

eu disse-lhes “ venho ouvir o meu Zé” e eles “o seu Zé vai falar na rádio?” Ah ah ah

atenção Amadeu, atenção Amadeu,

E eu ouvi-te e conheci a tua voz e eles “pois ouviu- apregoar as bebidas sabe lá se é o seu filho, um entre muitos?”

olha a gasosa fresca.

Eu sei que é o meu filho, conheci-lhe a voz. Labregos, invejosos, mortos de fome é o que são.

diz Artur “ penalty a favor do Sporting”

Outras cartas foram e vieram. Outros pregões se gritaram nos campos de futebol. No ensino nocturno fui aprendendo e conhecendo novas realidades. E a adolescência chegou. Comecei a ver as madamas com outros olhos. Reparei em pormenores que antes me escapavam. A dona Regina na sua camisa de dormir transparente, a dona Aninhas, mulher do senhor deputado da Assembleia Nacional de grandes olhos negros e seios a querer saltar pelo decote ousado, que tinha um tratamento especial. “Olha que o senhor deputado é tu cá, tu lá com o doutor Salazar que Deus o proteja, porque nos livrou da guerra e do comunismo”. Estas e outras alumiavam-me a existência nas noites solitárias.. Com todo o respeito. Pecado apenas em pensamento.

Admito que o doutor Salazar nos tenha livrado da Segunda Guerra Mundial, mas a mim não me livrou de outra guerra, a colonial. Como mancebo da nação fui aprovado para ingressar nas forças armadas da nação. Como todos, incluindo os coxos, deram-me uma espingarda e mandaram-me combater.

Angola é nossa, rádio Moscovo não fala verdade

Outras cartas, levaram saudades, trouxeram mágoas, dores de velhice, alegrias breves. Correspondi-me com muitas marias, ditas madrinhas de guerra. Quando chegava o correio aquelas paragens , que eram imitações do inferno, havia uma consolação breve e passageira , nas palavras doces gravadas em aerogramas.

voltei da guerra são e salvo, como alguns, que não todos

E Salazar caiu. E o salazarismo continuou. E o paíscontinuou, convictamente pobre, e sobretudo acomodado a um destino sem horizontes. E a emigração despovoou os campos e inventou “bidonvilles” e inundou estradas de automóveis em “vacanças”.

 

Continuei a estudar que o saber não ocupa lugar. Perdão pelo lugar-comum. Consegui habilitações que se traduziram em promoções profissionais. Mas continuei simplesmente Zé. Vivendo em quartos alugados, como e com outros zés. Quando visitava a aldeia vinha sempre a mesma conversa. Ó Zé afinal quando casas? Ficas velho, as moças não te querem ou vê lá se arranjas aqui uma das nossas. Essas moças das cidades não são de confiança. E eu a pensar a vida é uma rotina. Nascer, Crescer, Procriar e partir para outra ou como se diz na gíria “ir desta para melhor”. Para melhor? Sei lá! Amanhã penso nisso. Hoje tenho uma história para continuar.

Aquele país imaginário ou imaginado estava uma pasmaceira. Os seus habitantes sofriam de uma estranha doença. Vegetavam como zombies numa espécie de sono encantatório. Havia até quem admitisse que estavam sob o domínio maléfico de uma bruxa má. Tentaram-se vários esconjuros. Aplicou-se a receita tecnoforma sem resultado. Colocara--se num labirinto. A pasmaceira persistia.            

Até que alguém,não identificado, presentou uma solução radical. Tratava-se de os exorcizar todos os males com um animal feroz. Acendeu-se o Sol, ou dito de outra forma fez-se luz. Mas onde encontrar esse animal,num país amorfo de carneirada, incluindo os lobos disfarçados? Até que alguém, não se sabe quem, sugeriu que se podia imaginá-lo. E imaginou-se um que não destoava de um país imaginário.

A etapa seguinte consistia em arranjar um domador. Alguém, há sempre alguém, disse que conhecia um que por caso até era o único. Tinha o perfil ideal. Fora gerado acima de qualquer suspeita. Havia quem garantisse que teria sido gerado sem pecado, embora não fosse filho de um carpinteiro e de uma virgem. Mas era filho de um mensageiro da manhã e de uma dama de pés de cabra. Era de uma pureza de desafiava a essência do conceito. Não se lhe conhecia um deslize. De certo não fora conspurcado pelo pecado original das fraquezas do género humano. Os cidadãos de um país sem cidadãos, curvavam-se  perante a santidade do justiceiro. À justiça o que é da justiça disseram em coro. Infalível.

 

Chegou a hora de montar o circo. O espectáculo estava pronto. Estava na hora de acordar o povo pasmado. Ia começar um fim de semana alucinante. O animal feroz, inventado, desceu dos céus como um cavaleiro do apocalipse, sem visto Gold. O domador puxou do longo chicote justiceiro e domou com pompa e circunstância o animal. Sacou-lhe as garras roubadas a outros animais. Soaram as trombetas. O povo acordou estremunhado. Do espanto passou à euforia. As emoções estavam ao rubro. Aleluia. O encantador de consciências estava domado. O reino salvou-se.

Na arena imaginada o povo rejubilava. Depois de um longo sono vivia a realidade virtual. Abata-se, esfole-se. Acabaram-se as nossas agruras.A multidão alucinada queria mais. Mas o domador imaculado consultou o deus menor que adora e decidiu: o animal feroz vai recolher aos curros. Precisamos dele porque o espectáculo tem que continuar. Este é apenas o primeiro acto.

 

PS aplique-se o lugar comum: não se pode estabelecer qualquer semelhança destes não factos com a realidade. 

 

MG

 

Aleluia! Mação não perdoa, escreveu um deputado do PSD, chamado Duarte Marques, sobre a detenção de José Sócrates. Esta frase tipifica o comportamento do "povoléu" que se manifesta nas redes sociais. E quando tamanha imbecilidade vem de um deputado da nação, o que esperar da turba que passeia ufana a sua mediocridade.

As redes sociais são o retrato fiel da sociedade em que vivemos. Ao dar acesso livre a todos os cidadãos a Internet dá visibilidade à opinião que estava confinada à discussão de café. Pulula a ignorância, a idiotice, a grosseria, o disparate, o desrespeito. O caso Sócrates pelas paixões que desencadeia, pela imagem de impunidade e de desonestidade que tem sido criada pela imprensa que vive nos esgotos e chafurda na porcaria, vai trazer à tona essa fauna que gerada e alimentada nas redes sociais. A guerra dos imbecis já começou.

Um outro nível, o do jornalismo de sargeta, Sócrates já ,está condenado. Muito antes da justiça actuar, chafurdaram na vida privada do visado, reuniram provas, traçaram cenários e aplicaram penas. Estes justiceiros fazem lembrar os processos inquisitoriais de má memória. Ilibam ou condenam de acordo com os seus interesses. São imbecis mais refinados cujo grau de se felicidade se mede pela humilhação daqueles que transformam em inimigos públicos.

MG

As razões que levaram à detenção de José Sócrates são, neste momento, uma total nebulosa. Não existe informação rigorosa sobre acusações em concreto. A situação é propícia a todas as especulações. Para os órgãos de comunicação social que se alimentam destes casos mediáticos, a notícia caíu como sopa no mel. Não é por acaso que o CMTV está em emissão exclusiva desde o início do dia e que o semanário o Sol vai fazer uma edição especial. O revanchismo que sempre manifestaram em relação ao ex-primeiro- ministro está, finalmente, a ser recompensado.

Independentemente do que a investigação vier a provar, e ao contrário da surpresa que a sua detenção parece ter causado, era um acontecimento previsível. Basta recorrer à história recente. De facto, as acusações, com ou sem fundamento, estão presentes no seu percurso político desde que assumiu a direcção do PS. Não houve caso mediático em que não se procurasse envolvê-lo. Não se perdeu nenhuma oportunidade para o levar à barra dos tribunais.

A detenção de Sócrates era, portanto, uma detenção adiada. Os seus inimigos sabiam que seria uma questão de tempo e de oportunidade. E ela surgiu finalmente no estilo rocambolesco em que a nossa justiça actua. Uma actuação tipo big brother. Um espectáculo mediático que diverte as massas sem pão. Não ponho as mãos no fogo por ninguém sem excluir o sistema de justiça, exageradamente endeusado, mas que é composto por homens com convicções e interesses como todos nós. Coloco a dúvida: neste processo haverá alguém com as mãos totalmente limpas?

MG

 

 

 

 

 

I Guardador de rebanho

 

O meu nome é Zé. Um Zé Qualquer. É assim que me chamam na minha já longa vida, apesar de longa ser um eufemismo ou um lugar comum, como preferirem. A vida não é longa coisa nenhuma. Nunca chega para fazermos tudo o que gostaríamos de fazer. Deixemos especulações e voltemos ao fio da narrativa.

Chamo-me Zé, mas já me chamaram muitas outras coisas. Filho da puta, grande cabrão, parvo de merda, nabo do carago(foi mais na tropa quando não acertava o passo com a carneirada) e outros mimos que não vêm ao caso. Nem estes nem outros, que são desvios à narrativa central.

Diz-me como te chamas e dir-te-ei quem és. Zé, está na cara, é nome de pobre, que nem sempre de pobre diabo. Da barriga da mãe de onde saí, saíram aaí maís onze se a memória não me atraiçoa. Como se vê não havia recursos para nomes pomposos. O meu pai gabava-se, na venda do Zé d`Alzira, entre um copo de três e um jogo de sueca, que cada vez que tirava as botas e ficava em ceroulas, metia mais um na “fábrica” da mulher. E dizia-o com propriedade, pois recordo-a ou prenha ou a parir. Da outra variante não tenho lembrança, que nas duas camas disponíveis a lotação estava esgotada e alguém tinha que pernoitar no palheiro.

Lembro-me, isso sim, de ver zés e marias acabadinhos de chegar . Uma vez, por mero acaso, até vi atravessar a porta de saída creio que da Maria dos Remédios. (ou seria a Maria da Consolação?) Foi durante a ceifa, num dia em que o estio mostrava a sua verdadeira face. Era como se o inferno tivesse descido aquele outeiro.

lembro-me

A minha mãe gritou “ áuguas”. E eu larguei o molho de trigo e na minha inocência juvenil corri a buscar a infusa onde estava água para da canícula. Quando cheguei já ali estava uma nova Maria,

da Encarnação?

O meu pai a gritar, e a cortar o cordão com a foice, “ não é da infusa que precisamos mas do alforge para deitar a tua mana, grande burro” (aí está). E lá montamos a minha mãe, na lindinha, a burra cinzenta, com a Maria de regresso a casa. E durante esse verão, pelo menos, a mãe não voltou à ceifa. Sim que entre uma e outra "parição" e uma outra amamentação a mãe ainda ajudava nas lides do campo, quando a faina apertava.

No espaço que sobrava entre guardar a vaca, duas ovelhas, e uma cabra, comecei a ir escola. Tinha que ir porque era obrigatório. Foi lá que comecei a conhecer o mundo para além do horizonte curto da aldeia. Foi lá que percebi aquele mistério da crucificação de que ouvia falar na catequese, em que Jesus tinha sido crucificado ao lado de dois ladrões. Ali estava, à nossa frente, a representação da cena com o crucifixo, no meio dos ditos ladrões.

tão verdade como me chamar Zé

O senhor professor que era um bom católico e um grande patriota, a quem tínhamos de saudar de braço esticado, dizia-nos que aqueles dois de ar severo, eram o senhor Presidente da República e o senhor Presidente do Conselho. Na minha ignorância campónia, não entendia o significado daquelas palavras. Presidente só conhecia o da Junta de Freguesia. E o meu pai, sempre que ele nos visitava, murmurava entre dentes “aí vem o ladrão contar as galinhas e os ovos que elas poem, com a lengalenga dos interesses da nação”. Bate certo. Presidente igual a ladrão. Se calhar não apenas pilha galinhas, mas “pilhador” de coisas mais avantajadas. E aqueles dois que ladeavam Jesus, na parede da escola, só podiam ser chefes de quadrilha. Pensava eu na minha ingenuidade de um zé qualquer.

Quando fiz exame da 4º classe, com distinção, passei a moiral dos animais a tempo inteiro que as bocas para alimentar não paravam de crescer, embora as mais velhas tenham ido servir a senhoras da cidade. Mas a Maria dos Remédios

ou seria a da Purificação?

deixou-se enganar por um gandulo da cidade, com promessas de ludibriar tolas, e apareceu em casa com uma barriga maior que o globo da escola primária e ali pariu mais uma alma inocente, que pai teve que alimentar. Que havia de fazer? Pai é Pai. O que valeu foi que o Zé tendeiro já sem mercado entre as moças casadoiras, comprou o produto desvalorizado e ainda levou o brinde.

(continua)

16 Nov, 2014

Pai, sou ministro

Nem tudo o que brilha é ouro. O ditado, aplica-se com toda a propriedade, aos vistos gold. O que brilha, neste caso, é corrupção nas altas esferas do Estado. Mas e ao contrário de outros membros do governo, metidos em alhadas, o ministro da Administração Interna teve um comportamento digno. Assumiu a sua responsabilidade política e demitiu-se.

O mesmo não se pode dizer de outros ministros, que parece que se reforçam com os disparates do seu ministério. Um caso paradigmático é o do ministro da Educação. Apesar do rasto de destruição que vai deixando no sector continua firme no seu posto. Se acrescentarmos o tirocínio que fez como comentador/crítico de anteriores ministros, faz lembrar a criança a quem deram uma prenda muito desejada, mesmo que não a mereça. E cheio de vaidade diz depois de receber o cargo: pai, sou ministro!

Diz um dirigente do CDS sobre os vistos Gold. Não podemos confundir as árvores podres com a floresta. É preciso descaramento. Apetece perguntar: afinal quem são as árvores podres? Não são por acaso altas figuras do aparelho do Estado. E peço desculpa se mal pergunto, mas quem foi que plantou estas árvores? Por acaso não foi esta gente que nos governa?

Dizem, procurando passar o sol com a peneira, que estes vistos trouxeram milhões em investimento. E porque gosto de falar com propriedade pergunto: Onde está esse investimento? Quantas fábricas financiou, quantos postos de trabalho criou? Continuo à espera dessa informação.

Dizem que reactivou o sector imobiliário. Mas como? Quantos edifícios foram construídos? Ou será que esse dinheiro apenas desenvolveu a especulação? Enquanto não forem dados números e factos concretos continuo a duvidar da validade deste programa e da utilidade dinheiro para o desenvolvimento do país. E resta saber quantas mais árvores de grande porte têm a doença da podridão

MG

09 Nov, 2014

Muros

Os que se consideram donos de uma qualquer verdade, e que têm poder de a impor aos outros, acabam por a aplicar como verdade absoluta. Foi o que aconteceu em Berlim, quando os dirigentes da zona leste, construiram um muro, para evitar que os seus súbditos tivessem a liberdade de contactar com a parte ocidental. Conseguiram pela repressão, limitar os movimentos dessa população, mas não evitaram a liberdade do seu pensamento. Por isso caíu com estrondo e hoje é uma recordação da ignominia e da negação dos direitos humanos.

No dia em que se comemora a sua queda, temos que ter presente que os muros continuam a fazer parte do nosso quotidiano. E muitas vezes, somos nós, que construimos os muros que que nos encerram nos nossos próprios guetos. Mas mesmo numa Europa que se quer sem barreiras, existem cada vez mais muros. Não são feitos de pedra e cimento, são antes construídos com xenofobia. São muros invisíveis e contudo bem presentes nas nossas vidas. Uma cortina de arrogância divide o norte e o sul, e expressa-se no estatuto de parentes pobres que nos é atribuido, sem direito a defesa. Aqui estamos condenados ao empobrecimento e prisioneiros  da capacidade de reação. Um dia esse muro cairá, porque ninguém pode para sempre aprisionar a dignidade dos povos.

MG

MG 

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