II Um estranho na cidade grande
Menos aborrecimento deu uma outra maria que se deixou iludir por um maltês, que fazia parte da trupe do alcatroamento da estrada. Uma noite, saiu discreta, arrastando os tamancos e a mãe comentou " a nossa filha vai com um qualquer. Só sei que deixou um cheiro a estrada acabada de alcatroar".
O meu pai, tirou uma fumaça do cigarro de onça que tinha acabado de enrolar : deixa-a ir mulher pela estrada que escolheu percorrer e para nós sempre é menos uma boca para alimentar. E estava certo. Desde esse longínquo dia em que essa maria saiu sem se despedir, com o tipo que cheirava a alcatrão fresco, nunca mais se soube do seu paradeiro. Mas não vi grande tristeza com a sua partida, até porque pelo volume da barriga da mãe vinha mais uma alma a caminho para ocupar o seu lugar à mesa.
Nesse dia não imaginava, nem em sonhos, que seria o próximo a abalar. Estava confortável com a vida que tinha. Guardava o pequeno rebanho e na quietude bucólica dos montes, enquanto os animais pastavam, falava com gente de outras paragens que vivia enclausurada em páginas de livros. Eram pessoas que se manifestavam em letras de forma e que me acompanhavam na solidão dos longos dias. Todas as semanas os livros chegavam ao largo principal numa carrinha que se chamava biblioteca Gulbenkian.
sai daí malhadinha
Nesse dia, depois de recolher o gado, estava eu embrenhado nas peripécias das Pupilas do Senhor Reitor, a minha mãe levou-me a visitar um senhor de bom traje e finos modos que nunca tinha visto “o senhor José Francisco que vive há muitos anos na capital, e que está de passagem, quer conhecer-te” O primeiro homem que conheci que não se chamava Zé, começou a falar com frases de fino recorte, émulas daquelas que eu pensava que só eram permitidas aos habitantes dos livros
Tu não me conheces porque quando saí desta aldeia de certo vivias no limbo da existência. Perdi o medo que nos tranca a vida nos portões de castelos de mediocridade. Comi o pão que o diabo amassou. Com perseverança, trabalho enfrentei o destino que me colocou nesta terra onde nem judas quer viver e venci. Hoje comando uma secção de uma grande indústria, mas não esqueço as minhas origens e quero ajudar os que querem ter futuro.
Esforcei-me por seguir o raciocínio, mas perdi-me por entre o labirinto de estranhas palavras. Mais tarde percebi que o senhor José Francisco falava mais para si do que para mim ou para a minha mãe. Quando terminou este discurso olhou-me nos olhos e perguntou:
-Ó rapaz tu queres ir para Lisboa?
Tenho um amigo de infância que é dono de uma mercearia e precisa de um marçano para fazer entregas aos clientes. Cama, comida e roupa lavada e a vida toda à tua frente. E a minha mãe “vai Zé que aqui não passarás da cepa torta”
Fui com o senhor José Francisco que me entregou ao dono da mercearia Flor da Estrela. O meu patrão que passara de Zé a José, instalou-me num pequeno anexo da loja com um divã de rede de arame e uma pequena mesa. A minha formação foi simples e rápida: tinha de me levantar às seis da manhã para ajudar o senhor José a transportar os frescos do mercado abastecedor. À nove começava a distribuir mercadorias pedidas pelas madamas. Cabaz bem cheio em cima do lombo, escada acima, escada abaixo, todo o santo dia
aí está o que pediu madame Lucrécia
Às sete depois de fechar a loja fazia a limpeza, comia um jantar frugal, e lá para as nove, caía no divã como tordo entalado em esparrela. E quando me mostrava mais exausto o senhor José dizia, “também já passei por isso e sobrevivi. Ainda hoje dou no duro porque não sou nenhum fidalgo.
Ó rapaz, onde tens a cabeça, pedi arroz e trazes sabão macaco?
A primeira carta que enviei à minha mãe e que mantenho como recordação desses tempos de infância perdida escrevi:
Querida mãe desejo que esta a vá encontrar de boa saúde, na companhia da restante família. Eu fico bem graças a Deus . (esta do fico bem é aquilo a que se chama um lugar comum, a seguir desmentido) Estes primeiros dias têm sido muito ruins. Carrego cabazes pesados às costas com produtos para as senhoras finas. Ao fim do dia quase que não sinto as pernas e só quero deitar-me e até chego a ter saudades da vida de moiral.. A cidade é muito grande e sinto-me um estranho e um capacho de gente importante
Desculpe dona Lucrécia, vou repara o engano
E a minha mãe na resposta “ meu querido filho, nós bem graças a Deus (segue-se uma demorada descrição de cada um dos elementos da família) …se essa vida é tão dura volta pra casa, ainda cá tens o teu prato e o teu garfo” e eu na resposta “querida mãe e querido pai…por cá trabalho que nem um moiro, mas voltar para o rebanho não vou voltar, custe o que custar”.
E não voltei. Aguentei firme. Fiz quilómetros de escadas, gastei solas e meias solas que os tempos eram de poupança. Anos depois subi na hierarquia. Cheguei a caixeiro. Comecei a estudar à noite. Não me via toda a vida atrás do balcão e nem me imaginava a acabar os meus dias como merceeiro. Aos domingos, ia vender bebidas para os jogos de futebol. Escrevi, , então,. à minha mãe para a convidar a ir à venda do Zé Picoito à hora do relato, para me ouvir falar na rádio..
A minha mãe que nunca mais me tinha posto os olhos em cima disse à senhora Laurinha do posto dos correios, , para lhe pôr na carta que tinha ido ouvir-me como combinado: “meu filho, os homens que escutavam o relato, começaram a mangar comigo
olha a laranjada fresquinha
eu disse-lhes “ venho ouvir o meu Zé” e eles “o seu Zé vai falar na rádio?” Ah ah ah
atenção Amadeu, atenção Amadeu,
E eu ouvi-te e conheci a tua voz e eles “pois ouviu- apregoar as bebidas sabe lá se é o seu filho, um entre muitos?”
olha a gasosa fresca.
Eu sei que é o meu filho, conheci-lhe a voz. Labregos, invejosos, mortos de fome é o que são.
diz Artur “ penalty a favor do Sporting”
Outras cartas foram e vieram. Outros pregões se gritaram nos campos de futebol. No ensino nocturno fui aprendendo e conhecendo novas realidades. E a adolescência chegou. Comecei a ver as madamas com outros olhos. Reparei em pormenores que antes me escapavam. A dona Regina na sua camisa de dormir transparente, a dona Aninhas, mulher do senhor deputado da Assembleia Nacional de grandes olhos negros e seios a querer saltar pelo decote ousado, que tinha um tratamento especial. “Olha que o senhor deputado é tu cá, tu lá com o doutor Salazar que Deus o proteja, porque nos livrou da guerra e do comunismo”. Estas e outras alumiavam-me a existência nas noites solitárias.. Com todo o respeito. Pecado apenas em pensamento.
Admito que o doutor Salazar nos tenha livrado da Segunda Guerra Mundial, mas a mim não me livrou de outra guerra, a colonial. Como mancebo da nação fui aprovado para ingressar nas forças armadas da nação. Como todos, incluindo os coxos, deram-me uma espingarda e mandaram-me combater.
Angola é nossa, rádio Moscovo não fala verdade
Outras cartas, levaram saudades, trouxeram mágoas, dores de velhice, alegrias breves. Correspondi-me com muitas marias, ditas madrinhas de guerra. Quando chegava o correio aquelas paragens , que eram imitações do inferno, havia uma consolação breve e passageira , nas palavras doces gravadas em aerogramas.
voltei da guerra são e salvo, como alguns, que não todos
E Salazar caiu. E o salazarismo continuou. E o paíscontinuou, convictamente pobre, e sobretudo acomodado a um destino sem horizontes. E a emigração despovoou os campos e inventou “bidonvilles” e inundou estradas de automóveis em “vacanças”.
Continuei a estudar que o saber não ocupa lugar. Perdão pelo lugar-comum. Consegui habilitações que se traduziram em promoções profissionais. Mas continuei simplesmente Zé. Vivendo em quartos alugados, como e com outros zés. Quando visitava a aldeia vinha sempre a mesma conversa. Ó Zé afinal quando casas? Ficas velho, as moças não te querem ou vê lá se arranjas aqui uma das nossas. Essas moças das cidades não são de confiança. E eu a pensar a vida é uma rotina. Nascer, Crescer, Procriar e partir para outra ou como se diz na gíria “ir desta para melhor”. Para melhor? Sei lá! Amanhã penso nisso. Hoje tenho uma história para continuar.