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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nas últimas décadas do século XX, no verão, as nossas estradas, de má qualidade, animavam-se com a invasão de carros de grande cilindrada e matrícula estrangeira. Eram os emigrantes portugueses vindos da Europa desenvolvida e que vinham de "vacances" à terra mais madrasta que mãe. Para além do carro, portador de estatuto social, usavam a língua do país de acolhimento para o mesmo efeito. Ainda hoje se utiliza, com carácter anedótico, a expressão:

- Jean Pierre, faire attention, tu va tomber!

...porra o moço já partiu os cornos!

 

A entrada na comunidade europeia trouxe fundos e mais fundos. Uns perdidos, outros aplicados, com alguma utilidade. Está neste caso a melhoria de infra-estruturas, nomeadamente as estradas. A prosperidade pouco consistente, trazida pelos dinheiros europeus, permitiu que Portugal, no início do século XXI, passasse de país de emigração a país de imigração. Fomos inundados por emigrantes de leste e do Brasil. Os carros dos emigrantes tugas foram diminuindo nas modernas auto estradas.

 

Durante este verão, nos meus percursos por esse Portugal, de norte a sul, pareceu-me ter regressado ao passado.Os automóveis de matrícula estrangeira voltaram em força. Com uma pequena diferença: a cilindrada não me parece tão elevada. Sinal dos tempos. Contudo, o que merece ser assinalado é que bastaram três anos para recuarmos ao tempo de um país de emigração, como uma sina traçada na palma da mão. E esse é um destino, que nos é proporcionado por uma elite de gente medíocre, a quem temos entregado, de mão beijada, a direcção desta nação secular. Mas se já saímos doutras situações obscuras, também, sairemos desta. E apenas ouviremos dizer às nossas crianças:

 Tem orgulho, João Pedro, nasceste na mais antiga nação da Europa.

 

MG

 

Fazer análises de sangue, especialmente o vulgar hemograma, é hoje uma prática generalizada. É uma coisa tão corriqueira que não merece enquanto experiência individual uma linha mal alinhavada. Só mesmo uma mísera falta de assunto ou de engenho para o abordar, associada a uma vã glória de escrever umas loas a qualquer preço as faz assunto de crónica.

 

Entre os fazedores de análises há os normais que as fazem como quem vai tomar uma bica e os cagarolas que tremem só de as imaginar. É o meu caso. Ou melhor era o meu caso, porque tudo na vida é feito de mudança. E o meu horror a agulhas rasgando-me a epiderme, furando-me a veia e vampirizando-me o sangue, mudou de uma forma acidental. Tudo começou quando a minha velha doutora analista, em boa hora,  se reformou. Boa profissional, meticulosa muito trabalhadora sem dúvida. Tão trabalhadora que ganhou artroses a espetar agulhas, estragou os olhos a espreitar para dentro de microscópios, arruinou o sistema respiratório a snifar estranhos reagentes. Se alguém merece um prolongado descanso é a minha velha analista.

 

No laboratório onde me sujeitei há tortura das agulhas está agora uma nova doutora analista. Nova na total acepção da palavra. Mas chamar-lhe doutora, com aquele palminho de cara e aqueles olhos capazes de encantar passarinhos não me parece apropriado. Doutora é um termo ou chavão que fica bem a pessoas com ar soturno. A minha nova analista não merece esse castigo. Por isso vou chamar-lhe simplesmente menina das análises. 

 

Quando me sento naquela cadeira começo de súbito a tremer. Começo não, começava. Agora fixo-me na candura da minha menina analista que me pergunta qual anjo do paraíso:

-Está a sentir-se bem?

-Estou, estou mesmo muito bem, respondo com a máxima sinceridade. Perturba-me é olhar para o sangue. Não se importa que olhe para si...

- Pode olhar, diz com uma sua voz capaz de redimir um pecador, olhar não tira pedaço.

- Tirar não tira digo em silêncio, mas vontade não me falta, falta-me é coragem.

A última sensação que retenho é a dos dedos delicados a percorrer-me o braço para encontrar a veia. Ao fim de algum tempo ouço de novo a sua voz:

-Pronto já está!

-Já está?

Nem agulha a romper-me a veia, nem seringa a sugar-me o sangue. Apenas sensação de que o que é bom acaba depressa.

. É estranho, mas agora não me importo de fazer análises. E digo sem ironia: até as faria todos os dias, de bom grado, como uma penitência.Talvez ainda bole uma estratégia para convencer o meu médico a fazer das análises uma espécie de terapêutica continua. Sim porque a menina das análises é seguramente mais de meia cura pois se  Deus nos brinda com criatura tão angelical é porque só quer o nosso bem. E até deixei de ter pesadelos com profetas do Apocalipse, tipo Medina Carreira, porque agora estou convicto que estes demagogos da desgraça são seguramente enviados do demo. Estes e a corte de aprendizes de mafarrico que nos sugam até ao tutano e ainda nos querem roubar a alma. Mas não hão-de conseguir, porque com a menina das análises no pensamento sou invencível.

Vou fazer uma inconfidência mesmo correndo o risco (o que não o é?) de perder a aureola de pessoa séria e equilibrada granjeada com tanto labor em linhas e linhas de escrita fingida. Corro, ainda, o risco de perder de uma penada a visita de  leitores recatados. Que seja. Mas a verdade acima de tudo. Aliás, quem sabe ler nas entrelinhas já percebeu a minha tara há muito tempo. Acontece que nasci português, cresci português e hei-de ser português até à eternidade. Quanto a isso, nada a fazer. É o destino. E como  bom português tenho uma fraqueza congénita. Não resisto a pastar o olhar por qualquer rabo de saia ou até de calça com este símbolo.( ) Sem qualquer preconceito, de cor ou religião, desde que bem modelado,(nada a ver com TSU) e tendo a consciência que é um pecado venial. Mas tendo, também, a crença que o arrependimento tudo recompõe. Foi para isso que foi criado. Ou seja, a justiça divina é tão perfeita que cria o castigo e o respectivo antídoto. E não podia ser de outra maneira, a partir do momento em que criou o português.

 

 Muitos antropólogos credenciados, têm afirmado que foi dessa aptidão lusa para a arte da miscigenação, que resultou o/a mulato/a. Quem sou eu para contestar? Limito-me a seguir a corrente e a aproveitar essa fatalidade genética. Assim, arranjo justificação para o meu devaneio para com a chinesinha do lugar da fruta. Para mais, ele só existe porque a gente do império do meio, numa expansão ao contrário, resolveu vir em força aqui para o velho Portugal. Eu acho que foi por saudade dos tugas, depois do regresso das caravelas. Só pode.

 

Digo com toda a sinceridade que minha atracção pela chinesa foi logo ao primeiro olhar. Por aqueles olhos amendoados, por aquele sorriso ingénuo, por aquele corpo esguio, pela tez ainda virgem dos raios ultra-violetas. E digo com toda a propriedade que tenho bom gosto, porque não fui o único atraido por aquela  beleza oriental. Todos os dias vejo outros tugas a mandar a escada a chinesinha, apesar de ter marido. Ainda há dias, vi um desses sedutores, a faze-lo descaradamente. E dizia o sujeito com ar de labrego: (digo convictamente sem ponta de ciúme) "estás tão só, deves precisar de companhia." E ela, com cândida paciência chinesa a dizer-lhe: "o meu ilmão foi a Lisboa complal fluta e deve estal a chegal" . Mas mesmo assim o alarve (com todo o respeito) continuava a insistir. Perante o incómodo tive de intervir, discretamente, para afastar o cretino (sem ofensa). Sim que eu posso ser tuga, mas sou tuga cavalheiro.

 

Todos os dias, acho que inconscientemente, vou ao lugar da fruta. E entre grelos e pepinos, literalmente, vou enchendo devagar , devagarinho, perante a observação e um ou outro sorriso da chinesinha, o meu saco de plástico. É aí que se acentua o meu devaneio e me imagino em tête-á-tête com a bela donzela. Imagino-a a envolver-me de ternura dizendo com a sua voz maviosa, "então meu amol hoje quel leval pão de Mafla?". Sei que é pecado, tipificado como cobiça de mulher alheia, mas não passa de pecado menor, pois é apenas em pensamento. Há dias, enquanto tocava na sua mão delicada para receber o troco, afagou com a mão disponível a minha proeminência abdominal dizendo: "então quando nasce a cliança?". Laios palta. Callaças. Polla. Tanto sonho, tanta aleglia, tanta felicidade sonhados no meio daquela fluta pala ver a chinesinha a apenas se intelessal pele minha balliga. Está decidido. Amanhã vou pala o ginásio. Não quelo, não posso e não devo pôl em causa a missão globalizadola do poltuguês. A chinesinha vai ver!

 

PS Passaram dois anos depois deste texto ser escrito. A chinesinha rumou a outras paragens. A minha proeminência abdominal continua firme e hirta. Mas a sua imagem continua viva na minha memória. Ainda espero que ela regresse. Preciso de voltar a aumentar o meu rácio de fruta. A saúde agradece. E eu agradeço à chinesinha, que sem saber foi (é) minha musa inspiradora.

19 Ago, 2014

Viajar no tempo

 

Viajar, é,  nos tempos que correm, não apenas uma necessidade, mas um acto lúdico. As viagens tornaram-se uma indústria, com peso significativo na economia da sociedade de consumo. O desenvolvimento do sector de transportes permite que se façam deslocações rápidas e fáceis entre países e continentes. Contudo, as grandes viagens são ainda um privilégio das bolsas mais recheadas. A maioria das populações viaja apenas virtualmente através dos media. A democratização política não passa de uma utopia no que diz respeito à distribuição da riqueza.

 

Há, no entanto, coisas que o dinheiro não pode comprar. Uma delas é o anseio, milenar, de viajar no tempo. As ditas máquinas que o permitem  fazem parte do mundo da ficção. No rompimento das barreiras temporais, a recriação de certos aspectos do passado, é o que mais se aproxima da realidade. De há anos a esta parte começaram a surgir as chamadas feiras medievais. Hoje proliferam por diversas localidades do nosso país. O facto é que são um acontecimento que tem forte adesão popular. Viajar ao passado tornou-se um hábito simbólico que casa ancestralidade com modernidade.

 

Santa Maria da Feira foi pioneira na realização destes eventos. Pela persistência e pela experiência é, hoje, a maior recriação da Idade Média, que se faz em Portugal. Este ano encantou durante dez dias cerca de meio milhão de visitantes. Quem ruma a terras de Santa Maria, sabe que pode contar com um espectáculo de qualidade, pautado pelo rigor histórico. E a participação do visitante está cada vez mais inserido no próprio espectáculo. No evento de 2014 dissecou-se o reinado conturbado de D. Sancho II. Uma lição de história viva, feita com profissionalismo. Uma viagem da qual saímos a pensar naquela que virá a seguir.

 

MG 

 

 

 

 

Porque hoje é sábado fui passear os calcantes para o Shopping e como quem não quer a coisa entrei na FNAC (passe a publicidade) para pastar os olhos pelas novidades literárias. Agarrei num livro quase ao acaso e sentei-me entre uma senhora bem posta e um cavalheiro com facies(passe o estrangeirismo) indiano. Cada um deles, com os olhos pregados numa página de um livro ocasional. Nos lugares da frente, uma fila de leitores quase todos equipados com umas apropriadas lunetas na ponta do nariz, saboreavam concentrados páginas de prazeres virtuais.

 

Abri ao acaso o livro, escrito por um tal Gonçalo M. Tavares ( na badana muito premiado) e vi-me envolvido numa história com um cabrão de um guia anão e intelectual (descrição do autor) que  vociferava contra a geometria da catedral da Cidade do México, pondo os cabelos em pé aos visitantes ocidentais, alguns já motivados para tirar o raio do anão (expressão minha) de cena ,quando a visita acabou(e ainda bem). Virei a página e do anão nem rasto. Ia começar outra história no mesmo cenário citadino. Agora era um menino de onze anos que queria à viva força casar-me com a mãe ,que pelos vistos, não tinha marido. E sem ter tempo para respirar fundo, já me apresentava a dama em lingerie e dizia "é este. é este". Tirem-me desta história pensei em voz alta, sem que os leitores envolventes sequer pestanejassem. Apenas um cidadão, sentado em frente, misto de ancestralidade e modernidade (passe a indiscrição) com um boné tradicional a emoldurar uma aparada barba branca e calçado com uns ténis Nike (que se lixe a publicidade) me olhou de soslaio por cima do seu livro de artes culinárias. Isto cada tiro cada melro, pensei, pois mal virei a página já estava envolvido noutra aventura, ao procurar proteger um rapaz que apedrejara um ecrã de cinema, na altura em que o herói ia beijar a rapariga (não interessa o motivo), causando um olho negro no actor/personagem e um rombo na tela. E não fora um jovem amigo ocasional, poderia ter levado um tiro do assanhado proprietário do cinema, que ameaçava o pirralho de revólver engatilhado. Tiro-me já deste filme antes que seja tarde. Recusei mudar de página, fechei o estranho livro e li de supetão a capa. Em letras salientes dizia: Canções Mexicanas ( passe a divulgação). Levantei-me do concílio de leitores e devolvi o livro à estante. Noutro sábado talvez volte a enfrentá-lo, num qualquer Shopping (com toda a descrição) numa qualquer livraria (nada de publicidade) porque este é um dia de parêntesis na rotina ronceira da puta da vida.

 Sérgio Leone realizou nos anos 70 "O Bom o Mau e o Vilão". Filme saído dos estúdios italianos e por isso considerado um western-spaghetti, é um clássico do género. Relata a aliança transitória entre três indivíduos que precisam de se unir para resgatar um pote cheio de moedas de ouro. Mas no espírito de cada um deles está o plano pessoal de se apropriar exclusivamente de todo o bolo. E esse será o epílogo da história que mostra que a honestidade termina onde começa a ganância e a violência.

 

O filme de Leone é uma alegoria da natureza humana, numa ficção da realidade. Mas a realidade às vezes supera a ficção. A história do BES também se alicerça à volta do vil metal enquanto símbolo do poder financeiro. Para mais, há o Banco mau e o Banco bom ou vice-versa. E à partida não se sabe, como na fita de Leone, qual é o bom, nem qual é o mau. Será Ricardo Salgado ou Carlos Costa? Sabe-se, contudo, quem é o vilão. No imaginário medieval é o grupo menos privilegiado e do qual dependem todos os outros. Ai está. Os vilões não são bons nem maus. São o "povoléu" que acredita que tem o poder na sociedade. No fundo vivem na ilusão de chegar ao pote, mas apenas servem para ajudar os que, camaleonicaMente, são bons e maus conforme as circunstâncias. Mas os vilões estão claramente referenciados: enchem o pote que os bons e os maus acabarão por esvaziar. Num eterno retorno.

 

MG

 

 

 

Todos sabem. Se não sabem deviam saber. Faltar à formação religiosa é pecado. Vou recordar. Deus fez o mundo. Criou Adão  gostou da sua obra e descansou. Mas por pouco tempo. Sentiu que faltava qualquer coisa. Pelo canto do olho espreitou Adão  e viu-o acabrunhado e triste. Mesmo sabendo tudo não estava a entender. Fez o mundo e entregou-lho de mão beijada. Olhou de novo, e lembrou-se que lhe podia ler o pensamento. Leu e percebeu. Adão tinha acabado de inventar a solidão. Deus reconheceu a sua falha e resolveu agir. Esperou que Adão adormecesse, tirou-lhe uma costela e fabricou a mulher. Viu felicidade no rosto de Adão, quando  sentiu o odor da sua Eva. Finalmente podia descansar. Com a autoridade de um pai disse: crescei e multiplicai-vos. E assim se fez. O multiplicador começou a funcionar mas com pouca equidade. Multiplicava mais as mulheres que os homens e de tal modo que muitas ficavam sem companheiro. A perfeição não é possível. Para compensar a situação e perante o  descanso de Deus, alguns homens multiplicaram-se por várias mulheres. Sem maldade, tinham inventado o adultério antes da existência do próprio conceito. Também sem conceito nasceu o pecado. Para dar a volta ao texto, de forma subtil, o profeta Maomé, com mandato divino, fez contas e decretou que cada homem devia cuidar de sete mulheres. Assim se fez e extraordinariamente se equilibrou o que o multiplicador desequilibrava.

 

A cristandade não adoptou a norma e o problema continua a persistir. Foram porém as mulheres que encontraram a solução. Para sairem do domínio masculino, conquistaram a sua autonomia. Sairam da situação de dependentes e invadiram todas as profissões onde, dado o seu estatuto demográfico, aparecem em maioria.

 

É por isso que na pastelaria onde vou tomar café trabalham, para além da proprietária, mais três empregadas. Tudo Evas. Chego até a interrogar-me se o que me atrai para aquele espaço é o delicioso sabor do café ou a deliciosa presença das simpáticas Evas

.

 Entro. Percorro maquinalmente o espaço até ao balcão. Na minha frente pousa uma chávena de fumegante café trazido pelas mãos reconchuchudas de uma Eva loura  enfeitada com um sorriso com reflexos de centelha divina.  Outras vezes o saboroso néctar negro chega discreto nas mãos delicadas de uma morena de corpinho iogurte magro. Um sorriso arco íris reflectido nas cores do aparelho de correcção dental reflecte-se na cor uniforme do café matizando-lhe a sisudez.

 

Não consigo decidir de qual das Evas gosto mais. Penso então na felicidade de Adão que nunca teve que passar pelo dilema de optar. Mas agora são tantas e todas tão atraentes na sua diversidade que apetece ficar com todas. Mas isso não passa de pensamento, apenas pensamento que fique claro. Pois se até o pensamento é acto pecaminoso, o que não será o acto concreto. Condenação para a eternidade ou quase. Esta questão não se põe para quem nasceu muçulmano. Não é o caso. A questão minimiza-se para quem é mórmon. Não ouso!  Resta carregar mais esta injustiça. Afinal a desigualdade não está apenas na divisão da riqueza mas também no acesso à beleza. Às vezes apetece gritar: Vítimas da monogamia uni-vos. Mas emudeço. Carrego nos meus genes milhares de anos de inculcação de valores judaico-cristãos. Aguento. Talvez no paraíso haja também igualdade no acesso às não sei quantas Evas para a eternidade.Não me importo se são mil ou se são virgens.Têm é que saber servir um bom café.