São sete horas. O meu filho está a sair de casa para apanhar o comboio na estação de Alhandra, rumo à capital. Hoje vai participar na mini maratona. Ele vai nos vinte anos, já anda na Universidade, mas fico sempre preocupada, pois nunca andou no meio de tanta gente. Sou mesmo uma mãe galinha. Penso que devo ter alma de pássaro. Se calhar é por isso, que todas as madrugadas, me delicio a ouvir cantar o melro que vive na nespereira do quintal. Ainda há pouco estava em grande cantoria, que o meu menino interrompeu quando saiu. Quem me dera percebê-lo
(Eu não entendo estes tipos que se dizem humanos e me chamam pássaro. Todas as manhãs interrompem o meu namoro. Metem-se numas caixas ruidosas e lá vão deixando mau cheiro. Há lá melhor coisa que namorar.)
São sete e meia. O comboio deve ter chegado a Sacavém, onde o meu Sandro Rafael se encontra com duas companheiras, que o acompanham na corrida. São a Maria Ana Camelo, que foi sua colega de turma no Secundário e a sua irmã caçula com dezasseis alunos, a Ana Maria. São boas pessoas, muito orientadas, pois até nos nomes são poupadas como se vê pela amostra. Não foi decerto por causa destes Camelos que o país caiu na crise. Há outros com culpa formada, esses sim, grandes animais.
O melro voltou às cantorias. E eu que não sou pássaro estou toda derretida. Que delícia! Este melro é um grande sedutor. Todas as manhãs canta para conquistar a sua amada porque quer constituir família para garantir a espécie. Depois, durante o dia, toca trabalhar para construir o ninho onde há-de criar os filhos que terá com a companheira.
A esta hora já o meu menino e as duas moças devem ter chegado à capital. Vamos ver como se vão portar na corrida. O meu Sandro e a Ana Maria têm perfil de corredores, pois têm o corpinho de yogurte magro dos anúncios, agora a Maria Ana não sei. Toda ela é forte e bem rechonchuda, benza-a Deus que gordura é formosura. Espero que não desfaleça a meio da ponte 25 de Abril. Recomendei ao meu Sandro que estivesse de olho nela.
Nove horas. Está quase a começar a prova. Vou ligar a televisão para ver se os vejo. O melro já acabou o seu concerto. Depois de tão encantador preliminar deve ter a "melra" caidinha e bem satisfeita com um galanço. Quem me dera que o meu homem, o Sebastião, tivesse, ao menos, um poucochinho da sedução do melro. Mas não! O Sebastião vai mesmo directo ao assunto:-Chega aqui Daniela Vanessa. Salta-me para cima e depois pimba. Quando eu me começo a habituar já ele se foi.
Tive a ver a corrida e só mostravam uns africanos que andavam na frente. Dos meus meninos nem sombra. Ainda pensei que fossem entrevistados por um senhor da televisão, que entrevistava pessoas desconhecidas. São onze horas, a prova terminou e estou ansiosa por saber deles. Sou mesmo uma mãe pássaro a cuidar das suas crias. Eu vejo como, o casal de melros, as defendem. E então quando o gato miau miau, que é mais embrulho, pois pesam-lhe os anos nas articulações, como a mim, passa por perto, eles viram feras. Ai como gostava de os perceber.
(Vai-te embora aborto de pelo sem asas. Deixa as minhas crias em paz. Olha que ainda te arranco os olhos, inútil que não fazes nada. Vives à custa dos humanos. Parasita.)
São três horas e nada. Por onde andarão aqueles desgraçados. Não dão sinal. O telemóvel está desligado. Espera...toca o telefone: -fala a Mariana, mãe da Maria Ana e da Ana Maria. Estou muito aflita. Estou com a minha Mariana em Alcântara. Ela telefonou-me há três horas para me dizer que chegou mais tarde à meta, pois não conseguiu acompanhar o Sandro e a Ana Maria, que não os encontrou e tem todos os seus pertences. Dei conhecimento do desaparecimento à polícia. Sei que o Sandro partilha em Lisboa uma casa com um colega. Já fui aí procurá-los mas não estavam.
-O meu Sandro não podia ter ido para essa casa porque não levou a chave. Espere onde está que eu vou ter consigo. Desliguei: .olha a grande cabra, a pensar que meu Sandro Rafael tinha desencaminhado a sua princesinha. O meu menino é um verdadeiro cavalheiro. Creio que me sai a mim com alma de pássaro. Quando quiser conquistar uma moça será com sedução e seriedade, como um verdadeiro melro.Ou ela confunde-o com o marido,que como o meu lhe salta para cima e pimba. Também com o bojo que tem, benza-a Deus, ele deve precisar de uma escada. Há com cada Camela.
Até chegar com o meu Sebastião à estação marítima de Alcântara nada tinha mudado. O Sandro Rafael e a Ana Maria continuavam desaparecidos. O mistério é comparável à nossa angústia. As duas Camelas estavam no sítio combinado e bem visíveis. Pudera, com aquela ocupação de espaço até se vêem da lua, benza-as Deus e assim as conserve. A Mariana olhou-nos e disse: -tenho boas notícias. Acabo de receber um telefonema da polícia a dizer que os localizaram junto à minha casa em Sacavém. Aconteceu, que depois de terminarem a prova, esperaram pela Maria Ana, mas como ela demorava e o tempo limite para utilizarem os transportes públicos gratuitamente estava a terminar, resolveram regressar. Quando chegaram já eu tinha vindo para cá procurá-los. Como todos os seus objectos estavam com a Maria Ana ficaram sem contactos e tiveram que ficar à espera. Enfim, desencontros.
Anoitecia quando regressamos a casa. Tirando o susto e uns raspanetes aos jovens pela inconsciência, tudo acabou bem. Os melros após mais um dia de muita azáfama descansavam entre os ramos da nespereira. O ninho estava quase concluído, o que não passou despercebido ao meu homem que me disse:- os descarados dos melros estão-se a instalar na árvore, mas qualquer dia corto-lhes o pio. Não me deixam descansar de madrugada com as suas cantorias. Não fazem ponta de corno a não ser cantar e galar, mas eu tenho que dar no duro se não o patrão põe-me na alheta. Ó filho, deixa lá, ele canta tão bem que até a mim me apetece ser galada. "-Bem, se é assim, Daniela Vanessa, vou pensar"...ai como gostava de o perceber o que dizem, pensei
(Finalmente os humanos regressaram com a sua cria. Talvez tenha sido ameaçado por um bicho de pelo, metaforicamente falando. Seja como for com o tamanho que tem devia voar sozinho. Agora em vez de se amalharem vão sentar-se à frente de uma caixa, a olhar para a sua imagem. Não entendo mesmo os humanos, mas o defeito deve ser meu que não passo de um obscuro pássaro, literalmente pensando.)
MG