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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Acontecem coisas estranhas. Fila para o multibanco. À minha frente uma dama. Atrás da dama eu, mais ninguém. Escurece. A dama termina a sua operação e deixa cair a chave da viatura. Afasta-se. A chave fica. Aproximo-me para apanhar a chave, mas hesito. Lembro-me da técnica do lenço. Para quem não a conhece digo que foi uma técnica de engate usada em tempos idos. A dama quando queria seduzir o cavalheiro deixava cair o lenço para que este o apanhasse. Se a vítima caísse por ingenuidade ou por vontade de entrar no jogo começava o jogo da sedução. Palavra puxa palavra, sorriso puxa sorriso, gesto puxa gesto e a coisa podia ir até às últimas consequências.

 

Fila para o multibanco. A dama à minha frente acaba a sua operação. A chave da viatura escorrega das suas mãos e estatela-se no empedrado com um som metálico. A dama afasta-se indiferente. Vou apanhar a chave mas lembro-me da técnica do lenço. Será uma versão adequada aos tempos que correm? A dama conhece a técnica do lenço? Não arrisco. Digo: senhora deixou cair a chave. A dama voltou-se com um sorriso amarelo apanhou-a e afastou-se. Se era  truque para princípio de conversa ou para me levar a conhecer a sua viatura não resultou. Se foi um acto fortuito deve ter pensado cobras e lagartos imaginando com razão que não há cavalheiros à antiga.

 

A dama que estava à minha frente na fila do multibanco apanhou a chave que deixara cair e afastou-se. Anoitecia. Podia ter-lhe apanhado a chave mas não o fiz. Lembrei-me da técnica do lenço. Em desuso mas nunca se sabe. Nesta técnica a dama usa o lenço para engatar o cavalheiro. Depois este  decide. Se gosta ou não da dama, se é uma vamp ou um camafeu. Há muitas variáves. Apanhar ou não apanhar a chave eis a questão. Mas afinal qual é a dúvida? São coisas que acontecem. A que propósito vem a história do lenço? Há lembranças estranhas. Reminiscências?

 

MG

 

Todos sabem que as línguas dos países são organismos vivos. Estão sujeitas a diversas influências, principalmente por parte dos falantes. A língua portuguesa não foge a esta regra. È muito diferente hoje do que era no princípio da nacionalidade. Contudo essas mudanças são  lentas e nem sempre perceptíveis no curto prazo.

 

No último ano assisti, em Portugal, a um fenómeno que põe em causa a evolução natural da língua. O fenómeno começou com o significado da palavra irrevogável. Em qualquer dicionário lê-se, "definitivo" ou "que não volta atrás". Agora todo o país ficou a saber que tem novo significado: "é o que tem que ser". Ora aí está. A partir deste princípio pode admitir-se tudo. Por exemplo: coerências, ou compromisso ou palavra de honra ou honestidade ou vergonha na cara, ou recalibrar, é o que tem que ser. De uma penada simplifica-se o que só atrapalhava. Cortar indecentemente nas pensões é tirar rendimentos e direitos adquiridos? Qual carapuça, é o que tem que ser. Para abreviar tudo passa a significar "é o que tem que ser". Dicionários para o lixo já. Tudo passa a ter o mesmo significado.

 

Estamos perante uma revolução linguística. Quem a patrocina? Linguístas, filólogos, enfim gente do métier? Muito longe disso. Quem inicia esta nova semântica para moldar uma realidade a seu gosto, com a maior cara de pau, é nem mais nem menos, que um político da nação. Poderá não fazer mais nada de relevante. E não fará. Mas por isto já ganhou um lugar na história.

 

MG

 

 

Idália era uma moça feliz e bem casada. Nascida de boa cepa deu ao fiel marido, um pé rapado, filhos de boa casta que alegraram as suas vidas. Mas mesmo as mais cheirosas rosas têm espinhos. Passada a meia idade recebeu de herança uma casa. Melhor não a ter recebido, diria anos mais tarde. Mas o que tem que ser é, e aquela casa acabaria por ser um inferno na sua vida perfeita. Não precisava de utilizá-la e colocou-a no mercado de arrendamento. O exemplar maridão encarregou-se de encontrar inquilino e por obra do acaso encontrou inquilina. Chamava-se Maria e era uma cidadã brasileira. Para evitar interpretações abusivas esclareço que  a nacionalidade da inquilina não tem qualquer significado. Podia ser de outra nacionalidade.

 

Durante algum tempo o arrendamento correu com normalidade. Até que um dia o marido que cobrava a renda, chegou a casa de mãos vazias.  Maria tinha deixado  de cumprir o contrato. O cobrador da renda e fiel marido, com boas palavras, convenceu Idália para dar um tempo, pois Maria passava por dificuldades. Melhores dias viriam. Os dias maus perpetuavam-se e Idália perdeu a paciência, tomou o assunto nas suas mãos, e convidou Maria  a saír. Ela foi-se escapulindo pelos buracos da lei e foi adiando a decisão. Como não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe chegou uma altura em que a inquilina teve de sair. Mesmo com muitas rendas por receber, a senhoria respirou de alívio. Ia recuperar, em plenitude, a casa legalmente herdada.

 

Final feliz? Pura ilusão. Quem ainda acredita em estórias da carochinha? Afinal a história não acaba aqui. Vai começar a parte mais dramática. Idália entra no apartamento como quem volta a receber uma  nova herança. Olha em volta e não quer acreditar. Deve ser um sonho mau. O que é isto meu amado esposo? conseguiu balbuciar antes de cair desamparada num vazio existencial. À sua volta ergue-se um vazio real, um espaço totalmente vazio de conteúdo. De forma mais prosaica, todo o recheio está sumido.

Idália herdeira e proprietária pega em papel e lápis e começa a fazer uma longa lista: bengaleiro, fogão, microondas, máquinas de lavar, mesas, cadeiras, louceiro, cama, guarda-roupa, mesas de cabeceira, televisão... Dos móveis esfumou-se a forma. Nem resta o cheiro. Manda de imediato email a Maria com a indicação. Devolva de imediato tudo o que levou por desconhecer que vivemos em regime de propriedade privada. Salve-se o meio da desgraça o sentido de humor da nossa heroína.

 

Maria, ex-inquilina ou inquilina de outro senhorio, não demorou a dar a resposta: cara, levei sim esses objetos, mas te fiz um grande favor. A tralha que habitava a tua casa era indigna de tal espaço. Aceitas que estou certa, né? Olha que já dei muita coisa na vida mas nunca dei coisas tão reles. Meu bem, talvez se salve cama, mas isso se deve à recordação das transas que ali dei com o teu marido. Ou achas mesmo que não pagava a renda? Ou ainda acreditas em almoços grátis? Mas deixo-te o teu mais que tudo. E se não levo ele é porque gosto da vida ao natural. Homem com viagra não levo pra casa, não? Tenho os meus predicados, um deles um generoso bumbum. Pergunta a ele o que tem a dizer dele. Agora que negócio é esse de mesa de cabeceira? Essa não levei não? Onde já se viu mesa de cabeceira de latão? Não sou perfeita não, mas traço o meu limite!

 

Idália foi uma moça feliz, mas não há bem que sempre dure. Maria levou os móveis de Idália, mas deixou-lhe a mesa de cabeceira e o marido. Não há mal que nunca acabe.

 

MG 

 

 

 

 

 

"É preciso elevar o povo à altura da cultura e não rebaixar a cultura ao nível do povo"

                                                                         

                                                                                    Simone de Beauvoir

 

Nasceu num dia 9 de Janeiro e viveu grande parte da sua vida no século XX. Século de extremos: duas mortíferas guerras, milhares de jovens que não envelheceram, regimes de feroz brutalidade, guerra fria, queda de fascismos, democratização, desenvolvimento, nivelamento social, Maio de 68. Viveu no tempo em que foram derrotados os projectos de nacionalismos xenófobos. Assistiu à derrota dos obscurantismos e de esperança na vitória da cultura. Rebaixar a cultura ao nível do povo inculto é acabar de vez com a cultura. Elevar o povo à altura da cultura é combater a ignorância que permite que a exploração seja aceite como uma coisa natural e que continue a perpetuar-se a apropriação da riqueza por uma minoria.

 

Simone de Beauvior teve a felicidade de ver o mundo começar a mudar no sentido de uma sociedade mais igualitária. Hoje constataria que essa pretensa mudança foi como um fogo fátuo. E com a sua inteligência perceberia que foi apenas um passo atrás nos privilégios seculares, um recuo táctico, para preparar novo avanço. E verificaria a razão do seu pensamento: nenhum mudança será duradoura e estável enquanto não colocarmos a cultura como a primeira prioridade. O resto vem por acréscimo.

 

MG

 

 

 

 

07 Jan, 2014

Dia de reis

A vida às avessas eis a simbologia que se pode extrair da adoração de um menino pobre por três Reis. Ricos e poderosos, saem dos seus palácios e caminham guiados por uma estrela, para oferecer riquezas terrenas a um desconhecido nascido na pobreza de um estábulo. E para além da crença ou da não crença na sua divindade, a cena da natividade constitui uma lição, nunca aprendida por muitos, de que todos somos pó da mesma estrela. Muitos reis brilharam como fogo fátuo. Vieram e foram, sem deixar rasto visível. Mas os três Magos ,como o Menino, continuam a viver na memória e no coração dos povos, como protagonistas de uma revolução de pensamentos e valores que esteve na génese de uma cultura de tolerância, solidariedade e respeito pela dignidade humana. Os Magos estão hoje enraizados nas tradições populares, como a do cantar os reis, onde se diluem. Como há dois mil anos, sem clivagens sociais. Em tempos de retocesso humanista convém não esquecer. Bons reis.

 

E se uma desconhecida ou desconhecido (depende do género) o quiser levar para casa? Impossível? Garanto-lhe que não! Garanto-lhe com a verdade de experiência feita. E não ouse pensar que isto é uma ficção de um escriba sem assunto . Aconteceu. Aconteceu tal e qual como o vou relatar.

 

Estava eu a sair de uma pacata pastelaria onde como pacato cidadão tinha ido comprar pão. No mesmo instante ia a passar uma dama, coisa perfeitamente normal. O que já não é normal, parece-me, foi o que aconteceu a seguir. A dama desconhecida parou, encostou-se suavemente à minha pessoa segurou-me por um braço, sem pedir licença, e disparou uma saraivada de palavras: "quer ir comigo para a minha casa?". Sim, tal e qual!

 

Agora vem a parte mais difícil. Que resposta dar ao estranho convite? Poderia ter perguntado para que me queria a tipa na sua casa. Concerteza que não seria para mordomo, espécie há muito em extinção. Nem seria para fazer de pai Natal porque na altura o Natal já era. Poderia ser uma alma caridosa que me viu como uma alma penada, perdido na vida, sem sitio para descansar. Tudo é possível. Mas não resisto e foje-me o pé para o chinelo. A dama não quereria levar-me na condição de macho, sem sentido pejorativo e na verdadeira acepção da palavra?

 

A verdade acima de tudo. A verdade é que não fui! Se calhar desiludi a dama. "Tem medo de mim?" foi outra frase que registei. Medo de mulher? Garanto que não tenho. Não tenho é lata de chegar junto a uma qualquer jeitosa e dizer de chofre "quer ir para a minha casa?". Mesmo que o deseje, penso e repenso, no recato do pensamento, as mil e uma estratégias de o conseguir. E de tanto imaginar cenários acabo de me perder nos labirintos neuronais. Quando de lá saio, já a dama partiu para outros horizontes. Raio de vida: ou oito ou oitenta?

 

Estava entre a espada e a parede ou entre a cruz e a caldeirinha. O diacho que escolha. Onde tinha a gaja a cabeça?? Há por aí tantos e muito melhores. Mais atléticos, mais atraentes, mais disponíveis e especialmente mais novos. O que estaria a dama a pensar? Que era um invertido (do contra evidentemente), um florzinha (de estufa claro)? E porque carga de água foi logo escolher-me a mim? Acharia que eu o único homem disponível? A não ser que seja apreciadora, no caso de me querer comer, de galo velho e duro de roer.

 

Meus amigos sou obcecado pela verdade. Garanto-vos sem contradição que todo este arrazoado é pura ficção. Tudo, com excepção dos factos que serviram de mote. Em nome da verdade resume-se em poucas palavras: uma dama abordou-me e disse: "quer ir comigo para minha casa"? "Não" respondi, secamente. "Tem medo de mim?". "Não...tenho mais que fazer". Foi como sucedeu. O resto é como gostaria que tivesse acontecido e garanto que não foi. Raio de sorte. Porque é que na hora H me falta o discernimento? Porque é que não exploro os preliminares para ver o que dá? Refugiu-me no lugar comum, ninguém é perfeito. Mas bolas, precisava de tanta imperfeição? Porque não aprendo que o cavalo (ou a égua) da oportunidade só passa uma vez. Consolo-me com a ideia que a dama foi uma fada que me apareceu para me dar "bitaites" para este texto, em tempo de secura imaginativa. Fraca consolação, mas que posso fazer?

 

MG

 

Mais uma ano que termina, mais um ano que começa. Despedimo-nos do velho, festejamos o novo. Rei morto rei posto. E contudo trata-se apenas de mais uma data do calendário na inexorável marcha do tempo. Mais uma data que serve para uns festejos mais ou menos comerciais porque tudo gira à volta do consumo.

Entretanto o zé pagode ou o zé pagante cumpre a tradição, come umas passas, bebe um espumante nacional ou importado e debita una lugares comuns de bom ano: feliz ano novo, muita paz e ainda mais felicidade. Depois volta ao lufa lufa do dia a dia nem sempre muito feliz. Desenterra o machado de guerra e esquece a paz por mais trezentos e sessenta e cinco dias. Na família, no trabalho, nas buzinadelas e insultos das guerras de latas, no civismo mitigado. Das guerrinhas do nível micro para as guerras do nível macro é um ver se te avias. Armas, mortes, sofrimento e dinheiro, muito dinheiro.

 

Espero um ano como todos os outros. A hipocrisia de muitos políticos e das suas ladainhas; o despertar dos monstros da xenofobia; a divisão da sociedade em esforçados produtores e preguiçosos sem emenda; uma divisão da riqueza muito desigual (90% com a mesma quota que 10%); Os dez por cento cada vez mais ricos e os noventa por cento cada vez mais pobres, excepto quando do lado da pobreza alguém ganha o euromilhões e se transforma em milionário excêntrico.

A única riqueza que ainda não é totalmente sonegada é a saúde individual. Mesmo assim continuarão a ser limitados universalmente os serviços públicos que a tornavam mais igualitária. Sim porque pobre dá muita despesa. Pode acabar o ano velho, mas não nasce um novo ano no quotidiano ilusório das vidas sem vida. Afinal o que comemoramos com urras e fogo de artifício é mais do mesmo. No entanto como não quero ser desmancha prazeres cumpro a tradição: um bom ano com saúde, paz e esperança no milagre de um mundo melhor.

 

MG

 

 

 

 

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