Meu caro dr. Medina Carreira
Vou escrever-lhe esta carta que seguramente não receberá. É até altamente improvável que tome conhecimento do seu conteúdo. O senhor paira num plano inacessível aos comuns mortais. Um lugar onde apenas têm assento semi-deuses da opinião. Contudo, quero acreditar que às vezes missões impossíveis podem ter êxito, como aconteceu com a entrega da carta a Garcia. Posso iludir-me, mas tenho que acreditar, que esta cairá em saco roto, e arrisco a dizer-lhe que o vejo na televisão apresentar sem contraditório a sua visão do mundo. Admito, que ultimamente, até me tem surpreendido com a abordagem de alguns temas interessantes, como por exemplo a situação da floresta, e que têm a virtude de fugir ao tradicional "economês" que pratica ritualmente.
Quero dizer-lhe, olhos nos olhos, que discordo, frontalmente, da forma como aborda a realidade, reduzindo-a a uma espécie de deve e haver. E digo-lho, porque a vida humana não se pode considerar uma máquina que se alimenta para produzir. Nem se pode resumir ao "só de pão vive o homem". Poderá não concordar, mas entendo, que se no inicio da génese humana, os protagonistas dessa aventura, se limitassem a produzir e a consumir nunca teriam passado da cepa torta ou seja da pré-história. O que irá distinguir o homem do animal, para além da capacidade de fazer, é o uso da linguagem, da escrita, da cultura. A partir daí, foi uma longa caminhada de constante aprendizagem e aperfeiçoamento, sujeita, naturalmente, a avanços e recuos.
Digo isto, caro doutor, para salientar, que tão importante, como a economia nas sociedades humanas, é a cultura, a religião e a política. Considero, que é esta última que permite ao Homem sair do caos e construir uma ordem fundamental para o devir. Foi neste contexto que chegámos à forma de organização chamada Democracia, émula do Estado de Direito, em que as leis escritas definem e limitam todos os vários poderes.
Com este arrazoado, pretendo dizer-lhe, que num Estado de Direito, a lei não hierarquiza os sectores, dando, por exemplo mais importância ao papel da economia, especialmente reduzida ao deve e haver. Mas é esta tese, que depreendo das suas opiniões, porque o senhor acha que o Tribunal Constitucional é um empecilho à governação. O seu argumento, se bem entendi, é que este órgão não faz dinheiro e portanto não tem espaço para existir. Isto é não se encaixa na ideologia do deve e haver. Dizendo de outro modo, não cabe na sociedade do "economês". Com todo respeito e sem pôr em causa a sua inteligência, que não posso nem devo contestar, quero dizer-lhe que está errado.
Eu sei que esta sua posição deriva do facto do Tribunal Constitucional considerar inconstitucionais normas do Orçamento de Estado, como aplicação de taxas extraordinárias sobre os vencimentos dos reformados, entre outras. Desculpe, mas o senhor põe, na minha opinião, o carro à frente dos bois e privilegia o infractor. Quem está a violar as regras é o governo e não o TC. E quando se coloca o deve e haver acima do primado da lei, entramos numa deriva perigosa, que em última instância, poderá levar ao regresso de um qualquer faroeste. E como o vejo como um homem culto e civilizado, tenho dificuldade em compreender a sua posição. E mesmo que reduzíssemos esta situação a uma questão da produção e distribuição da riqueza, deve saber, que não é a maioria produtora que mais recebe na divisão do bolo. Antes pelo contrário. Ou seja, quem gasta acima das suas possibilidades não são os assalariados, sem os quais a produção, bye bye, mas aquela minoria que se apropria, pelas mais desvairadas vias, da maior parte da riqueza. Chico espertismo ao fim e ao cabo. E isto acontece no Estado de Direito. Olhe se não existisse Estado de Direito, nem Tribunal Constitucional. Era o regabofe completo. Era a escravatura institucionalizada, sim, porque a escravatura mitigada nunca acabou, nem acabará enquanto a distribuição da riqueza não for equitativa.
Fique bem, sobretudo com a sua consciência!
MG