Em memória dos velhos contrabandistas da raia(o meu pai incluído) que nas décadas de quarenta e cinquenta do séculoXX tinham a noite como cúmplice para com, sangue, suor e lágrimas ganhar uns trocados. Em memória dos regionalismos do falar algarvio e/ou da linguagem oral. (quase em desuso)
Truz, truz,truz…
Três pancadas secas ecoaram na madrugada, sobressaltando o sono dos pássaros que esvoaçaram sem sentido.
Truz, truz, truz…
Três pancadas promissoras entraram suavemente no sonho de Elvira. Não havia dúvida, o seu homem tinha chegado.
Truz, truz, truz…
Três pancadas estremeceram a velha porta de madeira da casa de Felisberto, escurecida pelo tempo.
Elvira riscou a pederneira e acendeu o candeeiro a petróleo.
Levantou-se cambaleando de sono mal desperto e movimentou o seu pequeno corpo até à porta de entrada.
Truz, truz, truz…
Três pancadas desesperadas sobressaltaram -na. O seu homem parecia desesperado. Assomou-se ao postigo para confirmar. O home tá cheio de âiças(1). Puxou a taramela e abriu a porta. Felisberto entrou de supetão.
Brrrrrrr
Elvira recuou cheia de cagufo(2). Mas home disse, tu tás em pelão?!(3) Só tens o chapé(4), o que te aconteceu? Foste róbado?
Brrrrrrrrr
Fui róbado por um guarda da nação e estou …meio almariado(5)... Faz-me um café quente… vou-me meter nos lençós(6).
Homessa, panhado (7) por um guarda. O mundo anda às avessas!
-Pois anda e panhei um cagaço que só eu sei, mas já cá tou.
Elvira acendeu o fogão a petróleo , pôs a esculateira a aquecer água e misturou-lhe duas colheres de café de cevada.
Felisberto partira com o seu sócio Venício para Espanha havia duas semanas. Faziam-no várias vezes por ano nos tempos mortos da lavoura, para juntar alguns tostões ao débil rendimento da sua actividade. Quando acabavam as sementeiras, quando terminavam as ceifas e as debulhas, no fim das mondas. Transportavam uma pequena carga de café em grão, cedida por Sebastião um comerciante de contrabando e passavam a fronteira para a entregaram a outro comerciante de contrabando. Durante uma semana dormiam de dia e viajavam escondidos na noite. Depois de entregar a mercadoria recebiam o pagamento. Arriscavam então entrar nas cidades densamente iluminadas. Disfarçados de cidadãos comuns e arremedando um castelhano arrastado entravam nas lojas para aplicar os seus lucros. Compravam umas bugigangas para rentabilizar o ganho e regressavam, fazendo o mesmo trajecto em sentido inverso.
-Aqui tens home o café, para te tirar o entenguido(8), disse Elvira.
Uiiiiii
-Raça melher, o puc´ro (9) tá mesmo quente…até escalda.
-Mas então como é que foste panhado?
Nós chegamos ao rio, respondeu Felisberto entre goladas de café, já a noite ia dentro e bem negra.Como sempre tiramos a roupa para o atravessarmos. Pusemo-la dentro do saco oleado, assim como uns veludos e uns perfumes que trazíamos para mercar. Entramos na água sem ver vivalma. Apenas se ouvia uma ou outra arrã (10)e o barulho das nossas braçadas….
Chlap, chlap, chlap-
-Ó Felisberto nã ouves um barulho estranho?
Chlap, chlap, chlap
-Tu tázé maluco… Venício? É barulho dos remos duma lancha.
- Tá escuro como breu. Serão carabineiros?
-Qual carabineiros qual carapuça. Esses têm todos as mãos untadas. São tão contrabandistas quanto a gente.
-Parem em nome da lei.
-Venício,conheço esta voz é… do cabo Palma da Guarda fiscal.
-Mas qu´é canda o gajo a fazer em águas espanholas a esta hora?
-Nã sei, mas tá clandestino como a gente.
-Pode estar Felisberto,mas tá armado, conho .
- Temos a burra nas couves. (11)O que fazemos?
- Vamos largar a porra do oleado, que é o que magano (12) quer, e vamos salvar a pele.
…E foi assim que saímos do rio e fizemos o caminho até casa, finalizou Felisberto. E agora não me besoires mais…(13)
Elvira mais triste que a noite já não conseguiu dormir. Sentou-se junto à Singer onde costurava para fora. Quando o dia amanheceu, Felisberto saiu do quarto e Elvira sem levantar a cabeça do remendo (já ensanguentado de tanto se picar na gulha) que estava a pregar numas calças puídas disse marafada(14):
- Ó home isto é que foi um negoiço,(15) nem a roupa do corpo salvaste?
- Deixa lá melher, já estou vestido outra vez e agora vou entregar ao Sebastião o dinheiro da viajem, que trazia bem seguro na copa do chapé.
Elvira levantou a cabeça e ficou estarrecida
- Mas tu tás vestido com a roupa de soldado reservista? Hoje por acaso há inspecção?
- Não. Pior, hoje há guerra e onde há guerra há sangue,respondeu Felisberto, enquanto saía porta fora, sem ouvir a mulher comentar, “ai mé Deus ainda arranja mais desgraça com um filho pra comer coida(16)".
Na venda de Sebastião os copos de mata-bicho iam deslizando pelas goelas sequiosas dos agricultores/contrabandistas. Felisberto entregou ao comerciante um pequeno frasco ;”tá aqui o material.” Sebastião agarrou-o e leu o rótulo escrito em letra de caneta de tinta permanente vermelha: óleo de rícino.
Pouco depois entrou o cabo Palma, como acontecia todas as manhãs, garboso na sua farda cinzenta.”Deita-me aí um o conhac do melhor que
ontem fiz bom negocio”.O comerciante pegou um copo já preparado e encheu-o “aqui tem, cabo Palma”.
O Palma bebeu de um trago como sempre fazia estalando a língua, perante olhares meio submersos na penumbra matinal.
- Este escorregou mesmo bem, disse o Palma …mas que esquisito …parece que me está a dar a volta às tripas, disse, enquanto segurava com as
mãos o abdómen.…
Aiaiai…
E soltava esgares de dor :“que zurrapa me deste sacana, vais pagar-mas”
Levantou-se então um pelotão de soldados reservistas formando-se em duas filas. Enquanto faziam continência ao cabo Palma, diziam em coro “às suas ordens nosso cabo”.
O Palma arrastou os pés trôpegos e saiu da venda por entre as alas militares, deixando atrás de si um cheiro nauseabundo a enxofre.
-Vocês são mesmo uns bons velhacos- disse Sebastião. Exageraram na dose, o homem está todo borrado!
Tictactictactictac
Quando Felisberto empurrou a porta de madeira negra da sua casa, Elvira continuava a pedalar na sua máquina de costura.
- Então home em que sarilho te foste meter?
- Fui participar numa boa acção; demos uns dias de folga ao Palma. O garganeiro(17) mereceu-os depois do serviço que prestou ao Estado Novo...
Adaptado para Fábrica de histórias
1-ânsias
2-medo
3-nu
4-chapéu
5-tonto
6-lençóis
7-apanhado
8-com frio
9-púcaro
10-rã
11-não estou a gostar
12-velhaco
13-não me incomodes
14-zangada
15-negócio
16-côdea
17-quer sempre mais