-Acorda Zé, começou a guerra…
As palavras modeladas pelo timbre arrastado do Alentejo, ricochetearam como balas perdidas no silêncio da manhã adormecida.
Acorda Zé, estão a dizer na rádio para as pessoas ficarem em casa e estão a pedir aos médicos para se dirigirem aos hospitais…
Não havia dúvida, aquela voz única era a do João Cabeça Rato, português de Cuba, que comigo e outros hóspedes ocupava a casa de hospedagem de D. Regina. Levantei-me ainda embrulhado numa manta de sono. Dirigi-me à cozinha onde o João roía uma carcaça, com o ar rude de um camponês na cidade. Eram 7H30M do dia 25 de Abril de 1974. Num rádio de transístores uma voz firme anunciava:
-Aqui posto de comando das Forças Armadas…”Conforme tem sido difundido, as Forças Armadas desencadearam na madrugada de hoje uma série de acções com vista à libertação do País do regime que há longo tempo o domina.
Nos seus comunicados as Forças Armadas têm apelado para a não intervenção das forças policiais com o objectivo de se evitar derramamento de sangue. Embora este desejo se mantenha firme, não se hesitará em responder, decidida e implacavelmente, a qualquer oposição que venha a manifestar-se.
Consciente de que interpreta os verdadeiros sentimentos da Nação, o Movimento das Forças Armadas prosseguirá na sua acção libertadora e pede à população que se mantenha calma e que se recolha às suas residências. Viva Portugal”(1)
Enquanto bebia à pressa uma chávena de café de cevada e continuava a ouvir os receios do João e os comentários de ocasião de outros companheiros, comecei a aperceber-me que a ditadura fascista tinha os dias contados.
-Eu sou bem comportado e respeito as ordens que estão a dar pela rádio. Fico aqui com os més pés quentinhos, até ver o quisto dáá, dizia o Cabeça Rato
-Pois eu vou cumprir as minhas tarefas profissionais, disse eu sem conseguir disfarçar uma tremura na voz. Estava à espera disto há muito tempo. E se for preciso quero ajudar.
A camioneta ronceira atravessava a ponte Salazar, aproximava-se da outra margem. Do alto do Cristo-Rei espreitavam canos de canhões, enquanto uma coluna militar vinda do sul, se aproximava das portagens . Um militar saiu de um jipe e afastou umas barreiras, perante o olhar pasmado dos portageiros.
Em Almada as conversas giravam à volta dos acontecimentos que eram relatados nas rádios. Uma senhora de nacionalidade espanhola dizia-me um pouco incrédula: "habemos democrácia". Não consegui manter-me afastado dos acontecimentos. Queria vivê-los por dentro e regressei à capital. Depois de uma refeição frugal tomei conhecimento da evolução da situação militar:
“ Na sequência das acções desencadeadas na madrugada de hoje, com o objectivo de derrubar o regime que há longo tempo oprime o País, as Forças Armadas informam que de Norte a Sul dominam a situação e que em breve chegará a hora da libertação.
Recomenda-se de novo à população que se mantenha calma e nas suas residências para evitar incidentes desagradáveis cuja responsabilidade caberá integralmente às poucas forças que se opõem ao Movimento.”(1)
Deambulei pela cidade quase deserta à procura da revolução e dei por mim a descer a rua da Misericórdia e a aproximar-me do largo Camões. Soldados estacionados atrás de trempes de metralhadoras estavam colocadas nos passeios e em esquinas de ruas que circundavam o largo do Carmo. Pessoas circulavam por aquelas artérias livremente sem qualquer impedimento e entabulavam conversa com os soldados, algo descontraídos e confiantes. Cheguei ao largo do Carmo ocupado por uma multidão exultante. Pendurados nas árvores, empoleirados nas cabines telefónicas, cidadãos procuravam o melhor lugar e quase submergiam as posições dos militares. Um homem de fato e gravata, cabelos brancos, mas lesto como um gato, saltou para cima da guarita do quartel e com um megafone falava à multidão. (2)
Tanques subiam a rua do Carmo e colocavam-se estrategicamente. O capitão Salgueiro Maia deu ordem para disparar. Uma saraivada de balas esburacou as paredes do quartel e partiu algumas vidraças. Um bando de pássaros esvoaçou assustado. O povo exultou e aplaudiu.
Ao fim da tarde, um carro preto com o general Spínola atravessou coberto de aplausos a multidão contida por um cordão de militares. Pouco depois saiu do Carmo um tanque, seguido pelo carro do general, desceu a inclinada rua com o que sobrava do regime.
A multidão correu atrás das viaturas que se afastaram rapidamente. Nas ruas da Baixa grupos de populares comemoravam a queda do fascismo oferecendo comida aos seus heróis. Vinda de nenhures uma mulher aproximou-se com um ramo de cravos que começou a entregar aos militares. Em vez de balas nasceram flores nos canos das espingardas. A alegria escorria pelas ruas da cidade. Nos campos de Portugal as flores ganham mais cor.
Regressei a casa onde o João Rato continuava à espera que a guerra terminasse. Para mim apenas tinha começado.
MG
1-Centro de Documentação 25 de Abril
2-Alusão a Francisco Sousa Tavares