Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

 

Os teus olhos têm cheiros

de praias e maresia, 

de sonhos escritos nos ventos,

de canelas e coentros

com odor de fantasia

embrulhada em poesia.

 

Nos teus olhos ouço sons

de mil arrependimentos,

de tempestades de ventos

que ecoam como fantasmas

das profundezas dos mares,

Chorando pelos seus lares.

 

 

Nos teus olhos estão sabores

que enebriam paladares,

picantes noites de amores,

acalorados rubores

alimentados com dores

no silêncio dos altares.

 

Nos teus olhos sinto a força

de tantas mãos calejadas,

sinto a insónia sem esperança

de noites sem madrugada,

de corpos feitos de sal

deixados na longa estrada.

 

Os teus olhos olham mundos

perdidos numa voragem,

horizontes  sem limites

em oceanos de nada.

eu vejo o mar nos teus olhos

Minha pátria, minha amada.

28 Mar, 2012

Carta viciada

Meu caro José

 

Graças a esse exemplo impoluto de jornalismo que se chama Correio da Manha com til, tive conhecimento do local, principesco, onde reside na cosmopolita cidade de Paris. Que inveja. Acontece que esse diário de maus costumes, ao que consta, tem o meu amigo sob observação permanente além de manter no ar diariamente um eterno folhetim por si protagonizado. Pelos vistos o meu caro rende. O lado positivo desta obsessão jornalista é que consegui saber para onde enviar-lhe esta carta.

Confesso que não sei o que por aí anda a fazer. Diz-se cá no burgo que estuda política. Será? Mas já não é o meu caro mais que mestre nessa área. Só não entendo como caiu na esparrela do  agora homem de S.Bento, aquando do PEC IV ? Mistério!

Admito que se queira ausentar da vidinha “deste reino cadaveroso”. E acho que faz muito bem. Foi para isso que andou a fazer economias. O facto, é que este velho reino sem rei, não consegue viver sem o meu caro. Chego a pensar que é uma patologia obsessiva. Veja por exemplo o que se passa no caso Freeport: sabe quem está a ser julgado no tribunal? O Smith e o Pedro? Não! Quando muito são testas de ferro. Quem está mesmo a ser julgad é você meu caro José. E posso garantir-lhe que a prima da empregada da limpeza da secretária do senhor Pedro, garante que ouviu a sobrinha da secretária do senhor Smith, cochichar à sua sogra que o meu amigo recebeu uma grande maquia dos ditos senhores. E também lhe digo que esta procissão ainda vai no adro.

O que já saiu do adro foi a procissão da associação sindical dos juízes.  E não diga que em  devido tempo não o avisei que diminuir as férias e os subsídios de alojamento a essa gente ia dar chatice. Aí está, assim que o sentiram mais fraco, vá de instaurar um  processo (em causa própria) aos seus ministros por eventual uso indevido de cartões de crédito. E Os ministros de Durão, de Santana e deste que agora nos governa e que não nomeio porque me dá urticária? Ao que consta não tinham necessidade, pois já eram accionistas do BPN. Está esclarecido.

Não sei é se está esclarecido sobre quem foi a vedeta no Congresso do PSD. Pois eu digo-lhe: foi mesmo você meu caro José. Afinal quem poderia ser? O empobrecimento dos portugueses? O esbulho de vencimentos no funcionalismo público? O corte cego nas freguesias para troika a ver? Enquanto houver um cordeiro (a Páscoa está próxima) para imolar e assumir todos os males para quê responsabilizar os pastores? E pode estar certo que será sempre a ovelha ronhosa e nunca o filho pródigo. Sei de fonte segura, que ao contrário do que aconteceu com outros primeiros não será condecorado. O homem de Belém já terá dito que não o condecora nem morto, o que só o prestigia, pois receber condecoração de tão cínica personagem é como vender a alma ao diabo . Pior só mesmo acabar como marca de vinho, como aconteceu a outro governante. Não, não é o pretenso clone de Manteigas. Esse só se for marca de salsichas de Frankfurt. Falo do proscrito de Santa Comba.

Há uma coisa em que o compreendo. Como diz o ditado, os cães ladram e a caravana passa. Goza a vida aí na cidade da civilização moderna fazendo-se de peixe morto. Mas a mim, caro José não me engana. Você não dá ponto sem nó. Ainda não percebi é quando .

Quando esta receber, queime-a bem queimada e espalhe as cinzas pelo Sena. E não precisa responder, senão depois do” face oculta”, ainda arranjam o processo carta viciada. E se é certo que o meu caro está no bem bom, eu aqui onde estou, se levanto a garimpa apanho logo bordoada.  

Até um dia, quem sabe a saborear um delicioso pastel de Belém.

 

Eis a prova:o que aqui escrevo é real

 

Num parêntesis à rotina do dia a dia rotineiro (passe o pleonasmo) tudo pode acontecer. Planear, por exemplo, uma actividade e acabarmos por ser devorados ( em sentido figurado) pelo próprio parêntesis.  Foi o que me aconteceu neste domingo: queria fazer um parêntesis no espaço e acabei preso num parêntesis do tempo.

Torres Novas, ano 2012, Março 24. Rio Almonda. Casario. Ruas. Gente. Um castelo. Um restaurante. Uma ementa em escrita tão vernácula, que
antecipa já um novo acordo ortográfico. Uma refeição de “xocos” muito mal-amanhada.(será que confundi com chocos) Talvez devesse ter pedido “burrego”. Enfim, tudo normal, até que num passeio pelo castelo e numa pequena distração caí (não perguntem como que não sei) num buraco do tempo.

Torres Novas ano de 1438. Cortes para discutir a sucessão de el-rei D. Duarte. Agora sou Afonso, príncipe herdeiro, tenho seis anos e fui entronizado como rei menor. Sou rei mas não posso reinar. Nem sei... À minha direita está sentada a senhora minha mãe, a amada rainha Leonor. À minha
esquerda senta-se o senhor meu tio, infante D. Pedro. À nossa volta vêem-se os homens mais importantes de todo o reino. Caras sisudas, algumas assustadoras até. Após a morte prematura de Vossa senhoria, o senhor meu pai, dizem-me que tenho de me portar como um homem. Procuro cumprir. Mas não consigo. Não me sinto bem aqui. Fecho os olhos e vejo os moços que brincam no pátio. É ali que eu quero estar…

Durante muitas horas, os representantes dos homens do reino, discutem quem deve reinar até eu fazer catorze anos. Alguns nobres querem a
senhora minha mãe como regente, mas a maioria inclina-se para meu tio, o senhor D. Pedro. Eu assisto sem direito a opinião. Ainda bem, pois não saberia o que dizer. Não sei ler nem escrever e não entendo o que são leis. Por isso para aqui estou, sentado, apenas um espectador. Vejo-me a correr com o meu alão pela encosta do castelo e a refrescar-me nas águas frescas do rio ou a passear no alegre bulício da feira. Ou a cavalgar pelos campos com o meu aio e o pajem. Gosto de ver os camponeses a trabalhar a terra. De observar o voo dos pássaros.Ouvir as suas belas cantorias.

Finalmente chegaram a um acordo. Que alívio! A regência será repartida entre a senhora minha mãe e o senhor meu tio. Deverão realizar-se Cortes todos os anos. Sou rei mas nada posso mandar. Só quero que me devolvam os meus dias de brincadeira e coisas simples. Só quero ficar longe deste mundo estranho em que me obrigam a viver.

Saí do buraco do tempo no instante (como nos filmes de Indiana Jones)em que  podia  ficar aprisionado para sempre nesta infância sem infância. Volto a controlar este  parêntesis. Mergulho nas ruas calmas em direcção ao rio. Há ali uma feira de antiguidades. Objectos antigos, pesados livros de História, actas das Cortes. Mas o que perdura na minha mente é a imagem do rei menor a correr pelas ruas, pelas margens do rio, pelos campos... livre…

MG

Numa entrevista dada ao Jornal de Negócios e reproduzida aqui, João Galamba, deputado do PS, fala do chumbo do PEC IV. Porque também  acho que foi um disparate e um mau serviço ao país, destaco este extracto:

 

O chumbo não valeu a pena?
Tendo nós uma oportunidade na qual BCE e Comissão também acreditavam não era só o Governo do PS que estava "cego", ele tinha o apoio dessas instituições e dos próprios bancos. O ultimato dos bancos foi posterior ao chumbo do PEC IV, quando os "ratings" começaram a cair em catadupa. BCE, Comissão, bancos, todos queriam evitar que Portugal pedisse ajuda externa. A oposição, numa coligação negativa profundamente irresponsável, decidiu desbaratar essa oportunidade.

Este é um parêntesis atípico e particularmente estranho. Não brota da realidade. Nasce e vive estranhamente prisioneiro de si próprio. Nasce e vive  na mente que o cria e aprisiona. Não é um exercício sobre as coisas mas sobre o porquê das coisas, da razão de ser das palavras e da sua utilização, na sua vertente mais pura, a poesia.

Ás vezes construo umas frases a que atribuo formalmente o rótulo poesia. Mas sei que não sou poeta. Poesia não se aprende. Grosso modo e
salvaguardadando toda a subjectividade  e matéria opinativa considero que há poetas e escrevedores de poesia,(sem desprimor) categoria onde me
incluo. Nos meandros da minha mente procuro estabelecer a diferença, neste dia mundial da poesia:

 

O poeta sabe:

Levam justiça consigo
as palavras que dissermos.
Por quanto sentido antigo,
nelas ficou por castigo
o futuro que tivermos.
Jorge de Sena

 

para o escrevedor  são apenas: 

Palavras, palavras ,palavras

Expressão de sentimentos
ou de sisudas teorias,

De Babel por castigo
libertadas

No barro em cunhas
amassadas,

Com sangue escritas e
gravadas

Para poderem viver na
poesia.

 

E se  o poeta vê: 

Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.

Florbela Espanca

 

O escrevedor enxerga: 

 só te conheço-te pelos teus olhos

 Iluminados por auroras boreais

de tempestades, de sonhos
intemporais,

de onde brotam palavras
livres de metáforas

e da ditadura das regras
gramaticais,

como é livre o pensamento  das mentes excepcionais.

 

Enquanto o poeta sonha:

 

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.

Gedeão

 

O escrevedor  filosofa: 

Os sonhos são feitos da
matéria que os sonhos faz,

Habitam etéreos no
inconsciente da inconsciência

Os desejos são sonhos que
os sentidos inventaram,

Cuja  forma e conteúdo sem sentido aparente

Nos mantem no limite da demência

Que nos persegue das profundezas da mente

 

Um :

Brindo com o copo vazio,

O conteúdo está em mim.

Não troco sorrisos, nem lágrimas,

Mas brinco de esculpir palavras.

Finjo que são aladas, que voam.

Que têm a liberdade que não tenho

Brandão Marcon

 

O outro

tenho as palavras presas
na teia da minha insegurança,

No receio de que me as roubem
da lembrança

De ser por bardos aviltado

Ou , mais aviltante,
cinicamente  tolerado;

Pobre verbo poético

Liberta-te e liberta-me desta  pressão obsessiva

E deixa ir as palavras à deriva.

 

E se a poesia vive no poeta, que o escrevedor viva na poesia!

 

MG

 

18 Mar, 2012

Milagre dos peixes

 

Nota: Quer acredite ou não em milagres, esta ficção aconteceu.

 

No momento em que estava sentado à frente do seu patrão, José, lembrou-se do dia em que foi pescar com o seu avô. O patrão, António Oliveira que o mandara chamar ao seu gabinete,. disparou:

-Senhor José, mandei-o chamar para lhe dizer que vamos dispensar os seus serviços nesta empresa.

-Acorda Zé, disse o pai com uma entoação firme, mas suave.

-(…)

 -O que lhe estou a dizer, continuou Oliveira num discurso que parecia ensaiado, é que vai deixar de ser nosso colaborador.

-Acorda Zé que hoje fazes anos, repetiu o pai, num tom mais ríspido.

- Não entendo, afirmou José com uma ligeira tremura na voz. Afinal não sou eu o melhor vendedor desta loja de electrodomésticos? Afinal não fui eu que ganhei recentemente o prémio por ter vendido mais de máquinas de lavar?

 -Acorda Zé, que hoje fazes anos e temos que ir pescar,gritou o pai.

 -Pois senhor José, acontece que tenho informação que na semana em que é responsável pelo stand, a exposição de materiais vira uma bagunça, continuou Oliveira, sem o mínimo interesse em entabular qualquer diálogo.

-Mas senhor Oliveira, desculpe discordar, mesmo que assim fosse, diga-me uma coisa: contratou-me como vendedor ou como arrumador de exposição? -Levanta-te José, já tenho as pescas preparadas. Temos de chegar à ribeira antes de nascer o Sol.

 -Só me falta perguntar-lhe e parecia aliviado por estar a terminar aquele discurso previamente preparado - de quanto tempo precisa para encontrar outro caminho.

 -Nenhum, disse José secamente.

-Nenhum? Notava-se que Oliveira tinha esgotado o reportório ensaiado e não conhecia aquela deixa.

-Pode mandar fazer as minhas contas, depois passo por cá para receber. Conversa acabada. Passe bem.

José dirigiu-se à sua secretária e retirou alguns objectos pessoais, perante o olhar pasmado dos colegas. Com algum azedume mas sem raiva esclareceu:

-Estou a recolher as minhas coisas, pois acabo de ser despedido por um mentecapto. Mas, ao fim e ao cabo, estou-lhe grato, pois intuí que quando nos fecham uma janela é porque a vida nos quer abrir uma porta. Foi um prazer trabalhar com vocês. Sem sentimentalismos a vida continua. José saiu da loja e caminhou no empedrado de calçada portuguesa da longa avenida. Os candeeiros de iluminação pública abriam os seus olhos de luz ofuscando à nascença o débil lusco-fusco. José começou, naturalmente, a abstrair-se daquele ambiente artificial e viu-se a descer um áspero caminho que ladeava uma caudalosa ribeira no inverno.

 -Mexe-me essas pernas Zé, incentivava o pai. Estamos quase a chegar às pernadas.

José entrou como era habitual numa taberna sem nome, onde refeitava muitas vezes. Sentou-se numa mesa tosca de madeira e esperou ser atendido. -Já chegamos e conseguimos o melhor lugar de pescaria desta ribeira, desabafou o pai, enquanto pousava o cesto de cana e uma pequena lata ferrugenta onde transportava o isco. Estavam numa pequena falésia, na confluência de duas ribeiras, que tinham talvez por capricho da natureza resolvido juntar-se para continuar o percurso até ao grande rio, de mão dadas..

-Senhor José, perguntou o taberneiro da taberna sem nome: O que vai comer hoje?

-Zé, traz-me a lata das minhocas para colocar o isco no anzol, ordenou o pai. Quando se preparavam para lançar a pesca nas águas ludras da ribeira, aproximou-se recortada, no raiar do dia, uma figura tão silenciosa que quase passava despercebida. Zé reconheceu-a pela sua imagem peculiar. Era, nem mais nem menos que o Descalço, um cidadão que temporariamente demandava aquelas paragens com os seus apetrechos de caldeireiro. Nunca andava calçado, para poupar os seus parcos proventos para uma alimentação frugal e bem regada, mas os seus pés tinham adquirido uma dura sola natural. Enquanto estava sóbrio, deitava uns gatos numas bilhas rachadas, tapava uns furos nuns tachos furados, mas o que deliciava o Zé era a sua alma de artista, quando dava asas à imaginação e desenhava na chapa de zinco deliciosas figuras.

-Hoje, disse José ao taberneiro da taberna sem nome, apetece-me um peixinho.

 -Bom dia disse o Descalço, vou tentar a minha sorte ali mais para baixo.

-A água está muito barrenta. Não me parece bom dia para pescar, sentenciou o pai como experimentado pescador. O pai enfiou com destreza as minhocas nos anzóis. E com paciência foi explicando ao filho como devia utilizar a pesca. As minhocas rabeando, freneticamente, mergulharam na água fria do pego.

-Então já escolheu senhor José? Perguntou o taberneiro da taberna sem nome.

-Acorda Zé, gritou o pai. O peixe está a picar na tua pesca. Puxa a cana como te ensinei. Zé sentiu então um puxão contínuo como se alguém lhe quisesse roubar a cana. Com um movimento certeiro para principiante, atirou a linha para trás de si. Olhou e viu um peixe escamoso e prateado que procurava desesperadamente libertar-se. Agarrou-o e conseguiu soltá-lo do anzol, mas este com desesperados esticões escorregou-lhe da sua pequena mão e num salto acrobático quase voltava ao seu habitat. Valeu a atenção do pai que com uma ligeireza juvenil o agarrou atirando-o para dentro do cesto e exclamando no meio de uma sonora gargalhada.

 -Gaita Zé, nem no dia dos teus anos deixas de ser desemaranhado? Só tens habilidade na ponta da língua?

 -Quero um carapau assado com molho à espanhola, disse José ao taberneiro da taberna sem nome, enquanto reflectia sobre a sua suposta falta de jeito para actividades manuais.

 Zé ignorou a provocação do pai e repôs a pesca na água. Ainda não se tinha desfeito o remoinho provocado pelo impacto e já outro peixe se deixara prender na barbela do anzol. E depois outro e outro e outro e outro….Quando o cesto estava a ficar atulhado de peixes o pai disse:

-Hoje os peixes não querem nada comigo, nem um único caiu na minha pesca, mas fizemos uma boa pescaria. Podemos regressar.

-Aqui tem o seu carapau grelhado senhor José. Está mesmo fresquinho. Bom apetite, desejou o taberneiro da taberna sem nome.

Ao retomar o caminho de volta reencontraram o Descalço que caminhava silencioso e conformado, sem um único peixe.

-Vejo que encheram o vosso cesto, constatou o caldeireiro.

-Eu também não pesquei nada. Os danados caíram todos na pesca do moço. Se não fosse republicano e ateu, até pensava que era milagre. Mas o fedelho merece, pois só se faz onze anos uma vez.

-Que os faça com saúde, eu não conheci pai, nem tive filho, disse o Descalço afastando-se resignado com a sorte madrasta que era a sua mãe.

 -Pai, pai… temos tantos peixes, que podemos dar alguns ao senhor Descalço.

-Está bem, afinal tu és o aniversariante e o verdadeiro pescador. O pai atirou um punhado de peixes para o balde do caldeireiro “ leve para o seu almoço”.

-Obrigado, assim já aconchego o estômago. José e o pai despediram-se do Descalço e regressaram à povoação para preparar a refeição daquele dia especial.

-Zé, chamou o pai, anda almoçar, o peixe já está assado.

 -Então senhor José, gostou do peixinho, perguntou o taberneiro da taberna sem nome, para cumprir o ritual de bom vendedor.

-Muito, muito, respondeu José sentado numa mesa tosca de uma taberna sem nome, enquanto pensava no dia em que o Zé tinha feito onze anos e tinha recebido a melhor prenda de todos os seus aniversários.

MG

 

Adaptado para Fábrica de Histórias

17 Mar, 2012

Pedaços de vida

No início dos anos oitenta comecei a dar aulas no Ensino Secundário. Com formação científica adequada, mas sem qualquer formação pedagógica tive de me adaptar bruscamente a uma realidade que desconhecia. Nessa altura os cursos estavam organizados por áreas de aprendizagem que eram reminiscências dos antigos cursos das escolas industriais e comerciais. Assim havia os mecânicos, os electricistas, as secretárias e afins. Neste contexto as turmas eram maioritariamente masculinas ou femininas.

Numa das turmas constituídas apenas por raparigas aconteceu-me algo insólito. No fim de uma aula fui abordado por duas alunas muito correctas e simpáticas que desejavam colocar-me uma questão fora do âmbito da matéria. Uma delas, a porta voz perguntou-me:

- Sabe-nos dizer o significado de felatio?

(...)

A inusitada questão deixou-me um pouco encabulado e após uma breve reflexão perguntei:

-Porque precisam de saber isso?

A justificação, que já não recordo com precisão, pareceu-me pouco consistente. Contudo, procurei ganhar tempo e disse-lhes que também não sabia dar uma explicação segura, mas que iria documentar-me e depois responderia.

Fiquei com a esperança que desistissem, mas na aula seguinte voltaram à carga. Sem grande escapatória comecei a explicar o mais cientificamente possível o significado da expressão. A determinada altura a porta voz interrompeu-me e disse:

 

-Obrigado, já percebemos. Despediram-se e quando estava perto da saída, voltou-se e ainda perguntou:

-Setôr foi muito difícil descobrir a resposta?

-(...)

Mais tarde, numa troca de conversas paralelas na sala de professores, vim a saber que tinham colocado a mesma questão a outro professor, neste caso sem sucesso. O assunto nunca mais foi abordado e confesso que não percebi se foi uma curiosidade de jovens adolescentes ou uma mera provocação.

Passaram muitos anos. Perdi o contacto com essas meninas do Secundário. Actualmente devem ser quarentonas, possivelmente mães de outros jovens, agora adolescentes.  

 

- Hoje ao ouvir, acidentalmente, uma canção de um grupo de rock-Grupo de Baile- e que foi grande êxito nessa época e era passada na rádio com muitos pis- patchouli - recordei-me desta história e das alunas desses pedaços de vida, que pela sua insolência ou ingenuidade, mas também pela correcção e respeito merecem esta pequena alusão acompanhada da canção que a motivou e que à sua maneira é testemunho desse tempo de infância da liberdade

MG.

 

 

vermelhos.net

 

Salazar governou Portugal durante longas quatro décadas. Chegou ao poder de forma antidemocrática e impôs ao arrepio dos direitos políticos  e humanos dos povos uma férrea ditadura. Numa análise fria e distante da sua governação, temos que admitir que tomou medidas correctas e incorrectas, na minha opinião mais estas que aquelas. Lembro, a título de exemplo, a insensata e desfasada política colonial. Podemos criticar e até odiar o regime ditatorial que conseguiu manter, com base numa repressão sem limites, mas não podemos apagar a História. Nesta, sempre terá o seu lugar como têm outros de muita má memória. E temos que entender que a sua ascensão e sobrevivência política se encaixa no contexto europeu de regimes totalitários de direita e de esquerda, onde a democracia era excepção.

 

Os homens, mesmo os chamados providenciais, passam e as nações ficam. Neste momento Salazar é passado. Um passado doloroso para muitos, um passado sem futuro para o país, mas passado. Nestes dias tem sido título na comunicação social a transmutação do nome Salazar para a marca Salazar. A ideia ,se percebi, nasceu no município de Santa Comba Dão. Logo se levantou um coro de protestos por este renascimento comercial de Salazar,  e por constituir falta respeito para com os valores democráticos. Não faço essa interpretação. Sinceramente, acho que acaba por ser mais uma desclassificação, bem intencionado, que uma homenagem. Tanto me faz que o nome do poderoso ditador seja transformado em nome de vinho do Dão ou de morcela de porco preto. É igual ao litro. Não "aquenta nem arrefenta" e até faz jus  ao um slogan da sua autoria " beber vinho dá de comer a um milhão de portugueses". E até estou convicto que este nome vende, especialmente nos tempos que correm.  O que me preocupa não é o Oliveira Salazar. Esse já foi. O que me deixa perplexo são os salazarzinhos que por aí andam disfarçados de democratas e alguns com reflexos directos na nossa vida. Não convêm esquecer que mudam-se os tempos, mas os "Salazares" continuam e não é só no rótulo de uma garrafa de vinho.

 

MG

 

Tenho de me render à evidência. Estou mesmo a ficar velho. E digo-o porque me estou a transformar-me num bicho de rotinas. Foi assim que ontem por ser domingo e querer fazer um parêntesis numa semana sem horizontes, me vi novamente aterrar nas Caldas da Rainha, aonde ainda há pouco tinha estado. Por outro lado, a ida a esta cidade teve o condão de me distrair do quotidiano pobre e das lutas de alecrim e manjerona entre Álvaro e Gaspar e poder mergulhar no Portugal profundo. Mais uma vez passeei pelo mercado ao ar livre entre cenouras, muitos grelos, alguns nabos e fruta para todos os gostos. Aproveitando a oferta dos vendedores “prove esta maravilha” lá fui experimentando sabores à conta da generosidade da gente genuinamente portuguesa. E entre o doce da tangerina e o ácido do limão veio-me à porta da memória uma canção popular dos anos 60, chamada “Rosinha dos limões” da autoria de Artur Ribeiro. Trancrevo este excerto: 

Passa ligeira, alegre e namoradeira,

E a sorrir, p'rá rua inteira, vai semeando ilusões.

Quando ela passa, vai vender limões à praça,

E até lhe chamam, por graça, a Rosinha dos limões.

 … Quando ela passa, apregoando os limões,

A sós, com os meus botões, no vão da minha janela

Fico pensando, que qualquer dia, por graça,

Vou comprar limões à praça e depois, caso com ela!

Depois, por associação, lembrei-me de quando nos esperançosos anos 70, passou por mim no rossio uma mocinha ainda a desabrochar mas já com diploma da universidade da vida, a querer vender-me rosas. Lá fui educadamente dizendo que não precisava, e estugando o passo. Enquanto me afastava, algo aliviado, ouvi a sua voz dizer “ anda cá que eu ofereço-tas”. Esta cena ficou registada na gaveta do arrependimento, pois foi a primeira e a última vez que uma desconhecida por impulso me ofereceu flores e que por embaraço e atrapalhação não aceitei .Ontem quando passava junto à banca das flores, a caminho da feira anual de velharias, ainda olhei, de soslaio, para ver se havia alguma jovem a oferece-las mas não, apenas divisei uma matrona com saudades dos anos 70. Avancei. Ali ,no meio de muitas bugigangas descobri numa exposição de livros, uma capa desbotada pelo tempo onde se lia “gramática da língua portuguesa”. Folheei e comprovei que os substantivos se chamavam substantivos e não nomes epicenos ou contáveis e não contáveis, os adjectivos, adjectivos simplesmente e não”radical adjectival” e não havia nenhum “verbo abundante”, nem sujeitos expletivos, ao invés do que acontece na gramática generativa ou degenerativa (que não para de degenerar) ou na moderna tlebes. Mas isto é na feira de velharias. Por fim, agarrei num velho dicionário e procurei o significado de excepção. Deu: desvio da regra geral, restrição, privilégio. Ai fiquei mesmo baralhado. Então porque raio é que o ministro Relvas que julgava que era dos Assuntos Parlamentares e pelos vistos também é especialista de língua, afirmou que excepção (a propósito dos não cortes de vencimentos na TAP, CGD...) significa adaptação . Se calhar está a construir um novo dicionário. Se assim for ainda bem. É que já estou a ver que em vez de me chamarem preguiçoso e enfezado latino do sul, passam a chamar-me adaptado de laborioso e matulão bárbaro do norte. De repente ganhei estatuto. Afinal já não sou uma velharia. Oh, Relvas…corta! Na próxima ofereço-te um Zé povinho adaptado ao que mereces: toma=rua!

MG

Pág. 1/2