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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

29 Nov, 2011

Meu caro amigo

Carregado por rafanegreiros em 03/09/2007

 

Meu caro amigo vou-lhe agora falar

Chegou minha vez de estar à rasca

E com a Net  já não há tanto mar

E a mensagem  é de graça

 

Aqui na terra estou curtindo futebol

Há muito fado, muito drama e tintol

E ainda temos pra consolo algum sol

 

Mas a verdade é que a coisa aqui está troika

 

Muita paciência para aturar os governantes

Que se elegeram enganando a boa gente

E disfarçamos com um cálice de aguardente

Para aguentar tantos farsantes

 

Meu caro amigo não lhe quero aborrecer

Nem lamentar minhas penas

Desejo só desabafar e  descrever

Umas quantas tristes cenas

 

Aqui na terra eu discuto futebol

E esqueço injúrias bebendo mais um gole

Sempre pacífico, sempre humilde, sempre mole

 

Mas a verdade é que a coisa aqui está troika

 

Muita pachorra pra aguentar tanto ataque

Nos vão tirando tudo o que Deus nos deu

Dão o inferno tendo garantido o céu

Porque isto aqui  está mesmo a saque

 

Meu caro amigo talvez me possa ajudar

A sair desta aflição

Ajude a gente de novo emigrar

E a partir noutra expansão

 

Aqui na terra ainda temos muito sol

Uma bandeira e usamos um cachecol

Pra tristeza esquecer no futebol

 

Mas a verdade é que a coisa aqui está troika

 

Meu caro amigo perdoe meu atrevimento

Em lhe estar a incomodar

mas é que aqui nó temos tanto jumento

Que nem é fácil falar

 

 

A minha gente manda abraços e lembranças

E desejamos não se esqueça

De juntos cravarmos tantas lanças

Até um dia e apareça.

 

27 Nov, 2011

Parabéns

O fado é uma invenção nacional e o que é nacional é bom. Pondo de parte a polémica das suas origens, o fado só podia ser português porque traduz a idiossincrasia da alma lusa. Nascido em Lisboa, depressa se tornou canção nacional, cantado nos campos e nas cidades. Independentemente dos temas, não o considero uma canção triste. Pelo contrário, vejo-o como uma forma do povo exprimir os mais variados sentimentos isto é como uma forma de exprimir a vida. Alguém imagina um bretão, um franco, um nórdico, um italiano ou até um espanhol a cantar o fado?Qual é o português que não terá trauteado as melodias simples de um ou outro fado com imenso prazer e naturalidade?  

 

Nasceu nos meios populares, aristocratizou-se, democratizou-se e intelectualizou-se, mas continua a manter a sua matriz intimista do quotidiano.Agora que é Património da Humanidade, com todo o mérito pela sua especificidade, merece rasgados PARABÉNS. Em jeito de homenagem aqui deixo uma gravação de tempos idos(podiam ser outras) com as vozes de Manuel de Almeida e de Fernanda Maria.

  

25 Nov, 2011

Memórias

O senhor Simplício era professor e teria sido em tempos poeta popular, se esta designação existe para os deuses dos poetas. Conheci-o no poente da idade. Tinha uma pequena escola de ensino liceal, com paralelismo pedagógico, numa aldeia perdida da serra algarvia. Era director, professor de todas as disciplinas, contínuo e administrativo. A escola funcionava numa dependência da casa de uma senhora solteira de boas famílias e de quem o senhor Simplício constava ser hóspede. Mas dizia-se à boca cheia que viviam de casa e pucarinho

Filho de gente pobre, foi muito novo para o Seminário, mais do que para servir ao Senhor, para fugir à vida madrasta do campo. E se novo entrou na carreira religiosa novo saiu dela, pois abandonou os estudos antes de tomar ordens eclesiásticas. Até regressar à sua  aldeia com cabelos brancos, andou por esse mundo, dizia-se, ao deus dará. Esse período da sua existência confundia-se até com uma lenda. Constava que sofrera grande desgosto e fora gastando a sua vida na boémia, cantando e dançando sabe Deus por onde. Falava-se, que sempre acompanhado de uma guitarra, cantava de terra em terra as suas mágoas em poemas da sua autoria.

Na fase em que fui seu aluno, apenas lhe conheci a faceta de professor austero e competente. Dizia-se que nos exames de final de ciclo no Liceu de Faro, os seus alunos eram os mais bem preparados, com algumas excepções (mea culpa). Quanto à poesia apenas se fazia menção a uma cantiga que se cantava nos bailes e que seria se da sua autoria. Em sua memória, pelas gerações que formou e pelo muito que me ensinou, aqui a reproduzo como a ouvi.

 

 

Por causa dela,

Mas só por causa dela,

Meu coração bateu tanto

Que partiu uma costela.

 

Toda a minha juventude

Metido numa prisão,

Foi com a sua lembrança

Que venci  a solidão;

Nas noites escuras e frias,

Resisti na minha cela

E sobrevivi aos dias

Por causa dela,

Mas só por causa dela

 

Sempre no meu pensamento,

Pequei para a procurar,

Mas gorou-se o meu intento

Já não a pude encontrar;

Minha vida foi um pranto,

E tudo por causa dela,

Meu coração bateu tanto

Que partiu uma costela.

24 Nov, 2011

Apatia perigosa

 

Tirando os habituais grevistas, sobretudo do sector público. Tirando centenas de jovens indignados. Tirando mais alguns descontentes, o que resta é um país apático, indiferente e acomodado. O discurso oficial, tipo choro da desgraçadinha, convence alguns; a perda de vencimento convence outros; o medo de represálias convence muitos mais.

Mas afinal é ou não certo que o país está endividado? Certamente que sim como muitos outros. E gasta ou não acima das suas possibilidades? Claro que gasta e há muitos séculos, com algumas excepções. Mas tem pago ou não as suas dívidas? De uma forma geral sim. Por outro lado, precisa ou não de produzir mais? Ninguém duvida disso. É necessário ou não baixar as despesas do Estado? É. Mas serão estas e outras razões suficientes para fazer uma colossal e imoral redução dos salários dos que mais precisam? Não são, até porque em vez de ajudarem o país a resolver a situação poderão agravá-la.

Tirando um mundo de economistas, ou serão contabilistas, do deve e haver, sempre dispostos a martelar na tecla do gastar à tripa forra e por consequência na teoria do empobrecimento para compensar, o certo é que nunca se saiu de crises destas com  dimensão mundial, sem relançamento da economia e sem atacar as suas raízes especulativas. É como se quisesse curar um doente enfraquecendo-o e engordando o vírus em vez de  fortalecer o paciente. O doente enfraquecido acabará por não resistir.

Os cidadãos que foram nos cantos de sereia do PSD do ultra liberalismo, continuam adormecidos por uma dose letal de ignorância. Só isso explica que continuem marchando sonambolicamente em direcção ao abismo e levando consigo o país. 

 

MG

leme.pt

No tempo em que era pequenino, o lugar dos pequeninos estava rigorosamente delimitado. O nosso mundo distinguia-se claramente do mundo dos adultos. Nesta fase estávamos a aprender a crescer com métodos (discutíveis) que estão nos antípodas dos actualmente usados. Cada macaco estava no seu galho e era obrigação dos mais novos ouvir e respeitar os mais velhos. O respeitinho era muito bonito quer se gostasse ou não. E quando não se entendia com entendimento, caia-nos logo no pelo uma sonora chapada. Os dirigentes do Estado Novo até criaram um Portugal em miniatura para aprendermos o país e o patriotismo. Era o Portugal dos pequenitos.

 

A queda do Estado Novo trouxe um novo Estado. Anos de liberdade condicionada fizeram estourar as amarras e a justa liberdade saiu para a rua. Mas a liberdade liberta, depois de tanto tempo encarcerada, esqueceu limites e confundiu-se com libertinagem. Perderam-se valores como o respeito. Esqueceram-se atitudes como a disciplina. Desrespeitaram-se hierarquias, ostracizou-se a autoridade. O resultado está à vista: anos e anos perdidos de formação cívica responsável e a instalação de um Portugal de pequenitos do Minho ao Algarve.

 

Essa geração de gente com sem valor e sem valores está agora no poder. Pouco mostra saber de História e nem parece ter a noção que este país soberano tem fronteiras estáveis desde Alcanices, há muitos séculos. Confunde servilismo a potências estrangeiras com cumprimento de acordos de âmbito bilateral. Confunde partilha de soberania com entrega de soberania. Vende dignidade em troca de qualquer prato de lentilhas. O Portugal dos pequenitos contaminou o país e contaminou o Estado. Até quando?

 

Em tempo de pequeninos na superstrutura da Europa, precisávamos de um Portugal de gente grande, que despertasse e mobilizasse sem receios os povos vítimas de ,no mínimo, obscuros interesses, para um novo paradigma. Se todos somos europeus e se todos somos iguais perante a lei por que raio hão-de ser alguns mais iguais que outros. 

 

MG

 

 

17 Nov, 2011

Aniversário

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

 

A noite era escura e tinha estrelas abraçadas pela lua,

Os pássaros voavam em bandos por cima dos trigais,

Espantando os insectos parasitas.

Os galos cantavam sempre de madrugada anunciando o sol

Que amadurecia as searas,

No Tempo em que festejavam o dia dos meus anos.

 

Corria pelos campos enlameados pela brisa matinal,

Mergulhava livre nos pegos  enxameados de cardumes ,

Corria atrás da bola de farrapos em relvados de terra escura

E pontapeava a vida com candura.

Eu era feliz e ninguém estava morto

 

Aprendia nos longos serões

A vida vivida e a esperança do devir de ser alguém,

Aprendia na cartilha maternal o passado reflectido no presente

Para ser homem português e cidadão,

Porque

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos

 

Nas feiras de tendinhas animadas por ousados carrosséis,

Nos bailes de concertinas afinadas em concertos de desafinação,

Arrastavam-se pesados pés em ladrilhos poeirentos de ilusão,

Sapatos de homem beijando os de mulher.

Crescia mais um palmo em cada dia,

E a alegria de todos e a minha estava certa como uma religião qualquer

Nota: Quero acredite ou não em milagres, esta ficção aconteceu.

vivaterra.org.br

 

No momento em que estava sentado à frente do seu patrão, José, lembrou-se do dia em que foi pescar com o seu avô. O patrão, António Oliveira que o mandara chamar ao seu gabinete, tinha-o mandado sentar-se e olhava-o como se o quisesse fuzilar. Disparou:

-Senhor José, mandei-o chamar para lhe dizer que vamos dispensar os seus serviços nesta empresa.

-Acorda Zé, disse o avô com uma entoação firme, mas suave.

-Não percebo, replicou José, meio atordoado pela saraivada de palavras saídas da boca do patrão.

-O que lhe estou a dizer, continuou Oliveira num discurso que parecia ensaiado, é que vai deixar de ser nosso colaborador.

-Acorda Zé que hoje fazes anos, repetiu o avô, num tom mais ríspido.

-Continuo a não entender, afirmou José com uma ligeira tremura na voz. Afinal não sou eu o melhor vendedor desta loja de electrodomésticos? Afinal não fui eu que ganhei recentemente o prémio por ter vendido mais de máquinas de lavar?

-Acorda Zé, que hoje fazes anos e temos que ir pescar,gritou o avô, abanando energicamente a cama de ferro onde o neto persistia em dormir.

-Pois senhor José, acontece que tenho informação que na semana em que é responsável pelo stand, a exposição de materiais vira uma bagunça, continuou Oliveira dando alguma ênfase à sua estudada arenga discursiva e sem o mínimo interesse em entabular qualquer diálogo.

-Mas senhor Oliveira, desculpe discordar, afirmou José finalmente desperto do seu adormecimento. E mesmo que assim fosse, diga-me uma coisa: contratou-me como vendedor ou como arrumador de exposição?

-Levanta-te José, já tenho as pescas preparadas. Temos de chegar à ribeira antes de nascer o Sol.

-Só me falta perguntar-lhe e parecia aliviado por estar a terminar aquele discurso previamente preparado - de quanto tempo precisa para encontrar outro caminho.

-Nenhum, disse José secamente.

-Nenhum? Notava-se que Oliveira tinha esgotado o reportório ensaiado e não conhecia aquela deixa.

-Pode mandar fazer as minhas contas, rematou José que começava a ficar embaraçado com o embaraço do patrão. Depois passo por cá para receber. Conversa acabada. Passe bem.

José dirigiu-se à sua secretária e retirou alguns objectos pessoais, perante o olhar pasmado dos colegas. Com algum azedume mas sem raiva esclareceu:

-Estou a recolher as minhas coisas, pois acabo de ser despedido por um mentecapto. Mas, ao fim e ao cabo, estou-lhe grato, pois intuí que quando nos fecham uma janela é porque a vida nos quer abrir uma porta. Foi um prazer trabalhar com vocês. Sem sentimentalismos a vida continua.

José saiu da loja e caminhou no empedrado de calçada portuguesa da longa avenida. Um discreto lusco-fusco estava a instalar-se sem pedir licença. Os candeeiros de iluminação pública abriam os seus olhos de luz ofuscando à nascença o débil lusco-fusco. José começou, naturalmente, a abstrair-se daquele ambiente artificial e viu-se a descer um áspero caminho que ladeava uma caudalosa ribeira no inverno.

-Mexe-me essas pernas Zé, incentivava o avô estugando a sua passada larga e rápida para a sua idade. Estamos quase a chegar às pernadas.

José entrou como era habitual numa taberna sem nome, onde refeitava muitas vezes. Sentou-se numa mesa tosca de madeira e esperou ser atendido.

-Já chegamos e conseguimos o melhor lugar de pescaria desta ribeira, desabafou o avô, enquanto pousava o cesto de cana e uma pequena lata ferrugenta onde transportava o isco.

Estavam numa pequena falésia, na confluência de duas ribeiras, que tinham talvez por capricho da natureza resolvido juntar-se e continuar o percurso até ao grande rio, de mão dadas, para o enfrentar com mais confiança.

-Senhor José, perguntou o taberneiro da taberna sem nome: O que vai comer hoje?

-Zé, traz-me a lata das minhocas para colocar o isco no anzol, ordenou o avô.

Quando se preparavam para lançar a pesca nas águas ludras da ribeira, aproximou-se recortada, no raiar do dia, uma figura tão silenciosa que quase passava despercebida. Zé reconheceu-a pela sua imagem peculiar. Era, nem mais nem menos que o descalço, um cidadão que temporariamente demandava aquelas paragens com os seus apetrechos de caldeireiro. Nunca andava calçado, para poupar os seus parcos proventos para uma alimentação frugal e bem regada, mas os seus pés tinham adquirido uma dura sola natural. Enquanto estava sóbrio, deitava uns gatos numas bilhas rachadas, tapava uns furos nuns tachos furados, mas o que deliciava o Zé era a sua alma de artista, quando dava asas à imaginação e desenhava na chapa de zinco deliciosas figuras.

-Hoje, disse José ao taberneiro da taberna sem nome, apetece-me um peixinho.

-Bom dia disse o Descalço, vou tentar a minha sorte ali mais para baixo.

-A água está muito barrenta. Não me parece bom dia para pescar, sentenciou o avô como experimentado pescador.

O avô enfiou com destreza as minhocas nos anzóis. E com paciência foi explicando ao neto como devia utilizar a pesca. As minhocas rabeando, freneticamente, mergulharam na água fria do pego.

-Então já escolheu Senhor José? Perguntou o taberneiro da taberna sem nome.

-Acorda Zé, gritou o avô. O peixe está a picar na tua pesca. Puxa a cana como te ensinei.

Zé sentiu então um puxão contínuo como se alguém lhe quisesse roubar a pesca. Com um movimento certeiro para principiante, atirou a linha para trás de si. Olhou e viu um peixe escamoso e prateado que procurava desesperadamente libertar-se. Agarrou-o e conseguiu soltá-lo do anzol, mas este com desesperados esticões escorregou-lhe da sua pequena mão e num salto acrobático quase voltava ao seu habitat. Valeu a atenção do avô que com uma ligeireza juvenil o agarrou atirando-o para dentro do cesto e exclamando no meio de uma sonora gargalhada.

-Gaita Zé, nem no dia dos teus anos deixas de ser desemaranhado? Só tens habilidade na ponta da língua?

-Quero um carapau assado com molho à espanhola, disse José ao taberneiro da taberna sem nome, enquanto reflectia sobre a sua suposta falta de jeito para actividades manuais.

Zé ignorou a provocação do avô e repôs a pesca na água. Ainda não se tinha desfeito o remoinho provocado pelo impacto e já outro peixe se deixara prender na barbela do anzol. E depois outro e outro e outro e outro….Quando o cesto estava a ficar atulhado de peixes o avô disse:

-Hoje os peixes não querem nada comigo, nem um único caiu na minha pesca, mas fizemos uma boa pescaria. Podemos regressar.

-Aqui tem o seu carapau grelhado senhor José. Está mesmo fresquinho. Bom apetite, desejou o taberneiro da taberna sem nome.

Ao retomar o caminho de volta reencontraram o Descalço que caminhava silencioso e conformado, sem um único peixe.

-Vejo que encheram o vosso cesto, constatou o caldeireiro.

-Eu também não pesquei nada. Os danados caíram todos na pesca do moço. Se não fosse republicano e ateu, até pensava que era milagre. Mas o fedelho merece, pois só se faz onze anos uma vez.

-Que os faça com saúde, disse o Descalço afastando-se resignado com a sorte madrasta que era a sua mãe.

-Avô, avô… temos tantos peixes, que podemos dar alguns ao senhor Descalço, arriscou o neto.

-Está bem, afinal tu és o aniversariante e o verdadeiro pescador.

O avô atirou um punhado de peixes para o balde do caldeireiro “ leve para o seu almoço”.

-Obrigado, assim já aconchego o estômago.

José e o avô despediram-se do Descalço e regressaram à povoação para preparar a refeição daquele dia especial.

-Zé, chamou o avô, anda almoçar, o peixe já está assado.

-Então senhor José, gostou do peixinho, perguntou o taberneiro da taberna sem nome, para cumprir o ritual de bom vendedor.

-Muito, muito, respondeu José sentado numa mesa tosca de uma taberna sem nome, enquanto pensava no dia em que o Zé tinha feito onze anos e tinha recebido a melhor prenda de todos os seus aniversários.

 

 

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

 

 

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12 Nov, 2011

Idade de trevas

 

O orçamento de 2012 é o mais duro da democracia, dizem. É um orçamento que podia ser da ditadura, digo.Podia ser, mas não é, porque é da democracia! Será? Formalmente foi aprovado por uma Assembleia eleita pelos cidadãos. Formalmente será promulgado por um Presidente da República reeleito em eleições. Mas para além da formalidade existe a dignidade e este orçamento pode ser formal mas não é digno, nem respeita a dignidade.

Trata-se de um orçamento de deve e haver feito por contabilistas sem formação humanista e sem cultura. Gente sem sensibilidade, sem visão, sem rasgo, sem imaginação, sem coragem. No fundo gente cega, míope, de vistas curtas, Reduzem a complexidade das coisas a números mais e números menos. Ignoram que a vida de um país é muito mais que estatísticas. É feita de pessoas, de trabalho,de necessidades, de sofrimento, de dor, de esperança, de desejos, de vontades...

Vivem num reino de enganos, enganam-se e enganam-nos. São profetas do medo que nos aterrorizam com o inferno se não obedecermos cegamente à santa troika. Está tudo às avessas porque o inferno é própria troika. E por mais penitências que fizermos já nos condenaram ad eternum. Até a esperança nos querem tirar. Idade média, idade de trevas? Idade de trevas é aqui e agora.

 

MG  

 

 

 

 

10 Nov, 2011

É urgente

Antes era o PREC (Processo revolucionário Em Curso) e agora é o PREC (Processo de Retrocesso e (Em)pobrecimento  Curso). Antes havia esperança numa vida melhor e houve. Agora nem uma réstia de esperança nos querem deixar ter. Temos de empobrecer porque sim, porque tivemos uma vida melhor e não podíamos ter tido. Isto pode parecer inocente mas não é. É a receita básica do ultraliberalismo. Traduzo: mais exploração, menos direitos, mais especulação, menos estado social, no fundo mais desumanidade. Estamos em pleno retrocesso económico e social. E mais grave: estamos num processo em que pretendem condicionar-nos mentalmente e tirando-nos até a dignidade. Precisamos de iniciar um novo PREC (Processo de Recuperação da Esperança Construtiva). É urgente. 

07 Nov, 2011

Flagrante fatal

O sargento Sancho dirigia o aquartelamento através de telefone. A sua residência, propriedade do exército, estava ligada à pequena unidade militar, sob sua jurisdição, por uma linha exclusiva. Esta linha era como um cordão umbilical que o ligava ao dia a dia do quartel. Recebia informações e dava ordens ao seu adjunto furriel miliciano La Mancha. E só em situações especiais se via a sua figura anafada e bonacheirona a passar a porta de armas. Quando isso acontecia, entrava num carocha cinzento, parava junto à secretaria e apeava-se. Via-se então sair a sua grande pança, encimada por um tronco robusto que suportava uma cabeça volumosa preenchida por um rosto apoplexico. Trocava algumas palavras económicas com o furriel, assinava uns papéis e saía tão discreto quanto entrara.

Na casa onde vivia, tinha a companhia da sua doce e fidelíssima esposa. D. Dulcineia tinha tanto de dedicada como de discreta. Era mulher, criada e amante quando dava jeito. Notava-se no seu semblante suave a felicidade dos simples. Apenas o olhar, denotava a espaços, uma estranha angústia pela incapacidade de dar um filho a Sancho marido, patrão e amante quando estava para aí virado.

Tirando umas visitas à sede da unidade militar para despacho com o comandante, o sargento ocupava a maior parte do seu tempo na companhia de Judas Tadeu,  construtor civil, um companheiro de muitas boémias, amigo e confidente. Com Tadeu compartilhava até a sua intimidade. E depois de bem etilizado confessava-lhe que além de raramente pôr os pés no local de trabalho, ainda utilizava os soldados para o seu serviço particular a troco de umas licenças mais gordas. Tadeu sabia que foi assim que o sargento construiu uma vivenda na encosta do quartel

Carla Bruna, uma morena de pernas altas e corpo modelado por anos e anos de ginásio, companheira de Judas Tadeu acompanhava-os muitas vezes nas grandes jantaradas e como inspirada cozinheira preparava-lhes de quando em vez deliciosos petiscos

Na noite fatal, os dois companheiros, depois de bem comidos e bem bebidos, deixaram a bela Carla Bruna a arrumar a cozinha e foram tomar café num bar ribeirinho. No regresso, o sargento Sancho estacionou o seu carocha junto ao quartel e disse a Tadeu

-Espera aqui um bocadinho enquanto vou ali à secretaria buscar uns documentos que tenho que levar ao comandante.

Sanchoentrou no aquartelamento por um buraco existente na velha vedação de arame, fundindo-se com a escuridão da noite. Após um tempo de espera que lhe pareceu longo, Tadeu, preocupado, saiu do carro e introduziu-se nas instalações militares pela mesma fenda rasgada na rede. Deu alguns passos um pouco à toa no campo que circundava os edifícios, mas parou de imediato, pois pareceu-lhe ver uns vultos deitados em grande agitação  e emitindo  estranhos ruídos.

Ao mesmo tempo, a sentinela volante que fazia a  ronda de rotina, aproximou-se do mesmo local. Encandeado pela  escuridão e embrenhado nos seus pensamentos o vigilante, quase tropeçava nos corpos deitados e ofegantes que no afã de despachar serviço não deram pela sua chegada. Assustado o soldado Marques recuou, carregou a culatra da pistola metralhadora, gritando a plenos pulmões com pronúncia do norte e como que a exorcizar o medo:

-Quem está aí., identifique-se ou disparo!

-Desaparece empata vidas, respondeu uma voz cavernosa e com sotaque beirão, ou dou-te um tiro nos cornos, enquanto procurava desesperadamente a pistola de metal.

A sentinela volante reconheceu imediatamente a voz do sargento Sancho e esfumou-se, com o seu longo nariz, mais depressa do que viera. Tadeu ao ouvir a voz do amigo correu na sua direcção: -Sancho que se passa, disse denotando preocupação e ligando uma lanterna de pilhas. Viu então o sargento a tentar, atabalhoadamente, vestir as calças enroladas junto aos pés ao aperceber-se do embaraço começou a afastar-se, mas o foco de luz escorregou inadvertidamente para a figura deitada a seu lado. Viu então uma dama seminua e um pouco descomposta. Sem ser sua intenção descobriu-lhe no rosto afogueado, um olhar de espanto e receio. O duro construtor  fraquejou por um momento que pareceu uma eternidade, sentiu as pernas fugir-lhe para o chão de ervas secas, deixando-o com a sensação de ter perdido toda  a capacidade motora.. Ali, meio enroscada com Sancho, estava Carla Bruna a sua bela companheira. Judas Tadeu conseguiu reunir forças no fundo do seu ânimo e com palavras titubeantes disse:

-Se me contassem não acreditava, balbuciou com a voz embargada e que que se foi perdendo na escuridão, “és tu grande cabra.O que está feito está feito mas isto não fica assim, malditos, …”

O coronel Silva Leão, num Volkswagen oficial,  passou a porta de armas da sede da unidade às onze da manhã como todos os dias. Primeiro passava sempre por Alvalade para despachar expediente no Clube a que presidia. Ia tão absorto no desaparecimento de um jogador  moçambicano de nome Eusébio, que tinha contratado há uma semana, que não se apercebeu da triste e amarrotada figura que o esperava à porta do gabinete. Foi o seu ordenança que o in informou que tinha à espera um paisano, que teimava em falar-lhe com urgência.

- Só me faltava mais esta. Primeiro presumo que o clube rival me roubou o jogador e agora aparece um matarruano a chatear-me a cachola…Mande-o entrar, disse em tom colérico.

Quando entrou no gabinete do comandante, Judas Tadeu, estava  tão perturbado que nem reparou no homem fardado de óculos graduados sentado atrás de uma secretária ornamentada com galhardetes militares. Na parede as armas da unidade estavam encimadas  pelos dizeres:  Artilharia 14, DISCIPLINA HONRA GLÓRIA e  mais abaixo outra frase: ESFORÇO DEDICAÇÃO E GLÓRIA EIS O SPORTING. Uma  voz fortemente metálica acordou-o da seu ensimesmamento:

- O que pretende senhor…?

-Senhor comandante, venho fazer queixa do sargento Sancho. Manchou a minha honra, usou a minha mulher e destruiu a minha vida. Mas isso agora não interessa nada. O que lhe vim dizer é que essa criatura é um crápula, que se serve da instituição militar em benefício próprio como lhe vou demonstrar.

O coronel Silva Leão ouvi-o com uma paciência pouco usual e quando ele terminou a sua exposição num tom frio e convincente disse:

-Senhor Judas nós vamos analisar a sua queixa e se se confirmarem tais acusações agiremos em conformidade.

-Espero, disse o queixoso, que metam o traste no xilindró e desejo que lá apodreça por inteiro, ele e a sua pistola.

- Fique descansado. Apresente a queixa por escrito na secretaria. Na altura própria contatá-lo-emos.

Depois do Judas ter saído, o coronel pediu ao seu ordenança que convocasse o sargento Sancho com urgência para uma reunião. Uma hora depois, Sancho entrava no gabinete do comandante com o seu ar jovial e bonacheirão. Cumpridas as formalidades militares o coronel disparou à queima roupa:

-Ó Sancho o que é que você andou a fazer com a fêmea dum tal Judas.

- Judas?

-Ó meu caro, não me menospreze que eu já o conheço de outros carnavais. Vá directo ao assunto.

  Bem, meu coronel, eu de facto envolvi-me com a senhora de um amigo, mas sabe como é... um homem não é de pau e se até o puro Adão se deixou levar pelas aleivosias da Eva, lixando a humanidade, por que raio eu um simples mortal não havia de pecar.

-Sargento, sargento, meu camarada, deixe-se de filosofias baratas que eu hoje tive um dia difícil. Que partilhe a dama do seu amigo é lá consigo, agora o que não consigo perceber é porque lhe passou informações confidenciais. Emburrou.?

-Bem, comandante o tipo parecia-me tão choninhas, tão otário…

-Pois, mas a mim é que me caiu o menino nos braços. Já não me bastava o rapto do craque moçambicano,possivelmente por aqueles filhos da (som de corneta) da segunda circular e vem agora você a meter-me em mais uma  enrascada. Sinceramente só vejo uma saída: parte daqui a uma semana um regimento para a guerra de Angola e o meu amigo vai oferecer-se para partir com ele em comissão voluntária. Ou isso ou cadeia.

-Afirmativo comandante. Compreendo.Vou já entregar o pedido.Com sua licença.

-Sargento, espere…afinal o que aconteceu à mulher do corno!?

-A Sandra Bruna está resguardada na casa da mãe. De qualquer maneira penso levá-la comigo, pois além de me encher as medidas, tem um filho meu na barriga.

Sargento, joga pelo seguro e  sempre com  tripla. Safa-se da vingança do cornurdo, fica-lhe com a mulher e ainda leva um bónus. Sancho, Sancho tenho  que admitir que você  é mesmo um traste.

Uma semana depois, envolto numa nuvem de nevoeiro o navio Niassa desatracava do cais de Alcântara rumo a paragens africanas. A silhueta de  uma pequena multidão, lavada em lágrimas, estava cada vez mais afastada dos bravos que iam a bordo. A densa neblina não deixou o sargento Sancho ver o lenço agitado pela doce Dulcineia, numa despedida sem retorno, pois ela sabia que ficara viúva para sempre no coração do seu amado Sancho.

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