Serrenhos e marujos
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A globalização derrubou distâncias, uniformizou costumes, desfez identidades. O padrão cultural personalizado esbate-se, desfaz-se perante a cultura universal de massas comandada pelo consumismo. A individualidade de pequenas comunidades e os seus ritmos ancestrais estão a ser devorados pelo progresso tecnológico. Torna-se indiferente nascer em Trás-os-Montes, Freixo-de-espada-à-Cinta ou Cabeça Gorda (Alentejo profundo). A universalidade da galáxia comunicacional infecta-nos em toda a parte. Apesar disso, quando viajo por esse Portugal menos conhecido procuro encontrar através da neblina da modernidade, algum resquício do passado genuíno dessas comunidades. Tarefa difícil entre catedrais de religiosidade religiosa e catedrais de religiosidade profana dos novos papas Belmiro ou Soares dos Santos. Com algum esforço de presença e de memória consigo vislumbrar alguns traços de genuinidade nas expressões, nos falares e nalguns costumes. Foi o que aconteceu quando viajava pela serra algarvia onde ainda se pode advinhar a matriz do Algarve do século passado. E aí lembrei-me da distinção que pautava o quotidiano entre serrenhos e marujos.
Serrenhos e marujos eram comunidades que se orgulhavam da sua identidade regional, baseada em vivências decorrentes do meio que moldava a sua personalidade colectiva. Estas designações fruto da especialidade geográfica e profissional carregavam consigo rivalidades e tinham um saudável significado pejorativo. Mas serrenhos e marujos estavam obrigados a conviver em complementaridade como forma de garantir a própria sobrevivência. Os da serra percorriam dezenas de quilómetros subindo e descendo, com as suas botas cardadas, montes pedregosos, atravessando a vau riachos sazonais, para vender os produtos que o seu suor roubava à terra nem sempre generosa. Os do litoral saiam das suas cabanas ribeirinhas, protegendo da aspereza dos caminhos os pés calejados com alpercatas quando as tinham. Às costas carregavam canastras serranas cheias de petingas e carapaus que trocavam por uma medida de azeite ou um apetitoso pão. Tirando este intercâmbio, funcionavam como mundos paralelos que não se interpenetravam e mantinham intactos costumes expressos na gastronomia, no vestuário, nas actividades lúdicas e até no linguajar. Contudo, quando um serrenho tinha necessidade de pernoitar na vila do litoral havia sempre um marujo convertido, com raízes serranas, que o acolhia com toda a boa vontade. Ao fim e ao cabo serrenhos e marujos eram gentes que na sua diversidade cultural enriqueciam e cimentavam a grande comunidade lusa. Paradoxalmente, o progresso que uniformizou diferenças regionais contribuíu para descaracterizar a unidade cultural que distinguia um país com uma história impar.
MG