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António Simplesmente
Quando António viu pela primeira vez a escuridão da noite, uma tempestade diluviana quase destruiu a laboriosa aldeia de Oliveira do Dão. O seu nascimento, tão desejado, foi para aquela família humilde como a luz redentora de uma casa sem herdeiro varão. Alegria e perplexidade invadiram como um turbilhão devastador a mente dos pais e irmãs de António. O seu pé defeituoso, foi visto, à luz da religiosidade popular, como uma maldição e um castigo divino. O pai, Zé d`Avó, arrasado com a fúria do dilúvio, ficou de rastos com aquela machadada do destino e não conseguia pregar olho. As irmãs, rezaram novenas até altas horas, para acalmar os maus espíritos. Apenas Maria, a mãe cansada pela canseira da parição, manteve a serenidade e procurou animar as hostes pensando"amanhã penso nisso" .E depois de alimentar o filho, dormiu a sono solto.
Entretanto, na mansão do morgado de terras do Dão, João Gonçalves Zarco, todas as criadas de fora e de dentro, foram reunidas na capela, para rogar pelo bom regresso do patriarca que fora a cavalo visitar uma herdade distante. Já a noite ia alta e do fidalgote nem sinal. Dona Efigénia Zarco, acolhida à cama por imperativos de gravidez, mandou um criado chamar o feitor Zé d`Avó com urgência, para pedir conselho sobre a demora do marido. O braço direito do morgado, apesar da angústia familiar que estava a enfrentar, não se fez rogado e deslocou-se de imediato à casa do patrão onde se inteirou da situação. Procurou acalmar dona Efigénia e prontificou-se de imediato a agir. Constituíu um grupo de serviçais para começar as buscas, apesar de não se enxergar um palmo à frente do nariz.
João Gonçalves Zarco aproximava-se com seu cavalo Alão, o mais seguro, fiel e inteligente da sua manada, quando foi atingido pela borrasca que se fez sentir em todo o vale do Dão. Apressou o Alão como que a tentar antecipar-se à fúria dos elementos e à cheia eminente do rio, mas um golpe de água repentino atirou-os ao chão. João e Alão, sentiram-se arrastados por uma corrente de água e lama, que descia apressada da encosta. O seu corpo, chagado e dorido, rebolou desamparado até ser travado por uma sebe de canas, que ladeava as margens do rio. A força da torrente, indiferente aos seus apelos de ajuda, submergi-o e quase o abafava, mas o morgado não era homem de desistir e recorrendo a todas as forças presentes, passadas e futuras que possuía, agarrou-se ao canavial que o protegia e com uma fúria mais ciclópica que a do vendaval, conseguiu pôr-se de pé. De quando em vez, a escuridão era alumiada por grandes clarões de luz, seguidos de estrondos que silenciavam a voz das águas revoltas. Um homem da sua estirpe, com antepassados que tinham enfrentado a dureza das ondas oceânicas e vencido todos os Adamastores, não podia deixar-se vencer por um regato de água ocasional. Era um homem na flor da idade, alto como um choupo e duro como o aço das suas alfaias. A esposa, D. Efigénia, ainda não lhe dera o primeiro descendente e portanto o futuro da sua família não estava garantida. Três vezes se levantou e três vezes a irreverência da ribeira improvisada o deitou ao chão. Ao fim do que lhe pareceu uma eternidade o caudal desenfreado diminuiu de volume. Foi quando sentiu as pernas fraquejar, a cabeça rodopiar, o corpo amolecer e ao mesmo tempo ser invadido por uma sensação de não estar.
Zé d´Avó chegou com os seus homens às margens do rio já os pássaros sobreviventes anunciavam o nascer do dia com tristes trinados matinais. O espectáculo dantesco que observaram fê-los pensar no pior. O rio engordara para além do leito e apanhara coisas e animais desprevenidos que navegavam como náufragos sem sentido. O moinho das Quebradas, local onde se passava a vau de uma para outra margem estava em parte submerso. Uma coluna de fumo espesso saía da chaminé da casa do moleiro. Zé bateu na grossa porta aferrolhoada. O moleiro abriu a porta:
-Entrem já estava à vossa espera, disse aliviado.
Num canto da sala de pedra solta e negra de fuligem, ardia uma generosa fogueira junto da qual estava um vulto embrulhado num grosso cobertor. Aproximaram-se e os seus corações exultaram de alegria. Era o senhor de Oliveira do Dão.
-Quando o temporal amainou saí para ver os estragos, que foram muitos, pelo menos um rodete e duas mós foram levados, disse um homem atarracado e com uns olhos pequeninos e piscos. Foi então que vi preso no açude o Alão, o cavalo preferido do senhor Joãozinho. Não o fazia por aqui, mas fiquei preocupado e peguei no pitromax e caminhei pela margem. Em boa hora o fiz, porque uns metros adiante, na curva, vi o morgado preso no canavial. Estava enregelado...vim buscar um cobertor e uma bebida quente e consegui despertá-lo e trazê-lo para dentro do moinho. É um homem forte como um boi, senão...
O disco solar despontava no horizonte quando João Zarco entrou na sua casa, de pé, mas muito combalido. D. Efigénia passou a noite numa dupla aflição, entre a ausência do marido e as dores de parto que não paravam de aumentar. Era uma mulher de aspecto frágil mas muito corajosa. Suportou estoicamente aquela longa noite, mas ao raiar do dia as dores não abrandavam e mandou um criado chamar o doutor João Oliveira, que apesar de carregado de anos a dar saúde às gentes da terra, não demorou a estar ao seu lado. O primeiro som que o proprietário João ouviu ao entrar na sala de fora, foi um choro de criança. Refeito da surpresa, sentiu-se invadido pela mesma sensação que horas antes o atingiu no canavial, ao mesmo tempo que indo buscar ainda forças, onde já não as havia, se arrastou para o quarto conjugal, enquanto balbuciava: obrigado Senhor, tenho um herdeiro. Nos braços de D. Efigénia, feliz no grande sorriso, estava uma bonita menina, a Maria Eugénia.
Será Maria Eugénia, anjo ou demónio na vida de António Simplesmente?