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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

 

 

Fascículo II, António Simplesmente

 

A vida é feita de sonhos. Dos que acontecem realmente enquanto navegamos nas asas de Morfeu e dos nos aprisionam durante a nossa existência. Eu, António homem nascido de mulher sem qualquer graça divina , racional e contemplativo mergulhei num mar de sonhos desde a mais tenra idade. Estou até em crer que já neles navegava na barriga da mãe.

Desde que me conheço, se é que me conheço e desde que me vejo feito de memórias que me  vejo embrulhado nas ilusões que dão sentido à vida. Aqui no meu quarto de asceta acidental, no seminário que me destinaram, no verdadeiro sentido do conceito, tenho meditado muito sobre de que sonho devo fazer o meu Graal. Acabei de receber ordens menores e nenhuma alegria, mesmo breve as acompanha. Recorro todos os dias à dúvida cartesiana e de tanto recorrer já ponho em dúvida a própria dúvida. Sinto-me preso dentro de uma teia que não ajudei a construir e por isso não sei como a posso destruir.

O sonho que recorrentemente marca os meus dias nestes dezanove anos de existência é o sonho de ser escritor. Umas vezes vejo-me como um Flaubert, outras vou mais longe e gostava de ser Virgílio ou até um Camões do século XX e escrever uma nova epopeia da heroicidade portuguesa. Mas que heroicidade? Só sinto um país abúlico, sem a gente e o rasgo dos grandes navegadores de quinhentos. Apagada e vil tristeza é o que me rodeia. Que há para escrever sobre um rei moço, voluntarioso nas sem poder? Que se pode dizer da canalha republicana, anticlerical, maçónica e dominada por carbonários? Que gesta há no gesto cobarde dos que mataram o rei Carlos a sangue frio?

Começo a perceber que nunca serei um grande escritor. Falta-me matéria e falta-me a alma. Tenho de descer das nuvens, regressar a à simplicidade de objectivos de um aldeão em tirocínio para eclesiástico. Nasci humilde e assim espero continuar. No imediato, preciso de encontrar um  rumo, uma caravela que me leve até a um mundo de real subsistência.

Aleluia! Abriu-se -me uma porta transitória! Vou para o colégio de Viseu como prefeito. Se não posso ser escritor, talvez me descubra como homem de acção. Entretanto, vou escrevendo uns artigos para matar o vício no jornal das Beiras, onde exponho o meu pensamento, melhor um pouco meu com variadas influências, mas de certo muito mais de Maurras um mestre que sigo religiosamente.

A minha mãe recebeu-me como um presidente como sempre faz. Se tivesse meios, que não tem, estou certo que contrataria a fanfarra para abrilhantar a minha presença. É se calhar a única pessoa que acredita no meu valor. Dá-me força e incentiva-me todos os sonhos mesmo quando embrulhados no papel pardo da absurdidade. Mãe é sempre mãe. Mas estou numa fase de descrença. A desistência da literatura fez-me cair num vazio existencial. Nem a Almerinda, professora primária formada e que me namoriscou desde a infância me consola. Acho até que me inquieta e aumenta o meu desespero. Não sei ainda por onde quero ir, mas sei que por aí não será. Olho-me ao espelho e não admiro a imagem reflectida: esguia, encimada por um rosto seco, inexpressiva, merece-me pouca confiança.

Assumi funções no colégio onde sou prendado com uma fabulosa biblioteca. Livros, livros e mais livros. Este é o meu mundo e já que não sou escritor, vou-me doutorar como leitor. Esse prazer ninguém me o vai tirar , agora que sou marinheiro num mar de literatura. Mau grado não desisto de escrever. Fui buscar coragem e alguma insensatez não sei onde e comecei a escrever uma novela com o título provisório de António Simplesmente, uma história com muito de auto-biográfico. Já que não me sinto preparado para escrever uma obra de grande fôlego, ao menos abalançei-me na literatura de cordel. Quem sabe se a consigo publicar no semanário das Beiras?