Alice
O ano de 1975 foi a mãe (ou o pai ) de todas as emoções: revolução, liberdade, democracia, discussão, convívio, utopia. Vivia-se em constante turbulência, uma espécie de Maio de 68 retardado. Todas as ilusões, todas as utopias estavam em aberto.
Frequentava o ensino nocturno num colégio privado. Todos os que lá estávamos queríamos aprender mais. Discutíamos entre nós e com os professores a situação política. Estudava numa turma de preparação para o exame AD Hoc à Universidade. Foi nessa turma que conheci a Alice. Apareceu, tardiamente, com um ar algo perdido, discreto, tímido e um sorriso luminoso. No final do ano o grupo turma combinou um convívio nocturno numa boîte. Reunimos ao fim do dia num café das avenidas novas e decidimos o destino a seguir. Calhou-me e ao meu Fiat 850 coupé, transportar a Alice.
Chegámos ao local combinado depois dos outros companheiros. Ao entrar na boîte um porteiro com ares maneiristas, disse-nos que a lotação estava esgotada. O nosso grupo tinham partido para outro local. O tal porteiro fora avisado do endereço, mas não se lembrava. Fizemos uma lista de possíveis locais e fomos em sua demanda.
De repente o céu escureceu e formou-se uma tempestade quase diluviana. Debaixo de uma chuva impiedosa descemos colinas, subimos ladeiras, navegámos por vielas inundados, por ruas desertas, por boîtes e mais boîtes, mas rasto dos desalmados, zero. Às duas da manhã desistimos, deixei Alice na rua onde se hospedava. Não deixou de ser uma forma divertida e diferente de convívio. Falámos do tempo, da vida, dois estudos, do trabalho, de sonhos e de outras mundividências. Fiquei a saber que trabalhávamos na mesma empresa, CP, embora em sectores diferentes.
Depois dessa noite, voltei a encontrar Alice na Universidade. No curso nocturno, da Faculdade de Letras refizemos o grupo e começámos a trabalhar juntos. No primeiro trabalho, reunimos num café, para conferir o que estava feito e dar-lhe a versão final. Depois da Alice apresentar a sua parte, António o ancião do grupo, caiu literalmente em cima da infeliz e pôs de rastos o a sua abordagem, concluindo que ele próprio a iria reescrever. Senti que Alice apanhada de surpresa, só não sumiu naquele momento porque não existe desmaterialização
Posteriormente, Alice, com toda a singeleza e generosidade, deixou ao Grupo sua contribuição, mas desistiu do trabalho, do grupo, da cadeira e saiu do nosso circulo. Ainda procurei com toda a diplomacia trazê-la de volta, mas a sua firmeza e indignação mantiveram-se. Às vezes encontrava-a, sempre discreta e tímida nos espaços da Universidade. Trocavamos umas palavras ocasionais e seguíamos o nosso percurso. O Curso acabou, aquele grupo dispersou-se e Alice sumiu para sempre.
A vida é feita de encontros e desencontros. Alice saíu da minha vida tão naturalmente como tinha entrado. Saíu fisicamente, mas sua presença ainda hoje perdura na minha memória, assim como a culpa, de apesar de não ter sido o autor do vexame, ter contribuido, por omissão, para que ele acontecesse. Obrigado Alice por te ter conhecido e desculpa qualquer coisinha. Para ti esta música...
MG