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Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

Nação valente, ao sul

Odeleite Cabeça do dragão azul

 

Um dia de anos

No dia em que ia fazer onze anos José acordou, como sempre acontecia, com a luz matinal que de mansinho escorria pelas frinchas do caniço. A tenebrosa escuridão que o mantinha escondido, entre a enxerga e o cobertor, ia desaparecendo tal como os medos que à noite lhe povoavam a mente.

Percorreu ensonado o corredor que o levava até à pequena cozinha da casa dos seus avós com quem vivia por opção. Da esculateira desprendia-se o aroma do café de cevada que todas as manhãs lhe aconchegava a barriga. Sentou-se na acanhada e tosca mesa. A avó Maria, alta, magra, quase esfíngica, colocou numa tigela de barro as sopas de café, cheirosas e fumegantes.

O avô José Carpinteiro, pequeno mas maciço, regressou da sua ida até à venda do Serafim, volta que dava todas as manhãs para “matar o bicho”. Olhou para o moço e disse:

-Hoje vamos pescar p’ra a ribeira. Temos de apanhar peixe para fazer uma assada. O neto ouviu e após um breve silêncio retorquiu timidamente:

-Mas eu não sei pescar, nem tenho cana de pesca. José Carpinteiro saiu da pequena cozinha de pedra solta e passados breves minutos regressou com duas canas de pesca.

-Aqui estão as canas - disse. Pega na tua e vamos partir. Temos uma longa caminhada pela frente.

José  Carpinteiro e o neto partiram em direcção ao local da pescaria. Calcorrearam as margens da ribeira durante cerca de três quilómetros. O moço nunca tinha percorrido aquele caminho Observou as cores policromas da vegetação ribeirinha Ouviu os sons dos barrancos a correr e os cantos matinais dos pássaros. Assustou-se com o resmalhar dos pequenos arbustos. Seria a manhosa raposa ou a sibilina cobra? Mas sentia-se seguro junto do seu avô.

Chegaram às Pernadas, sítio onde se juntavam duas ribeiras, que tinham decidido unir-se para enfrentaram com mais coragem a sua entrada no grande rio. O silêncio quase assustava. Não se via vivalma. Afinal era domingo., dia de descanso. De repente, a silhueta de uma figura humana desenhou-se no horizonte. Quem será? - pensou José A  figura tornou-se cada vez mais nítida. Não tinha sapatos e vestia uma roupa suja e gasta. José pensou que seria mais um pescador solitário, pois trazia consigo uma cana de pesca.

- Bom dia - disse o homem.

-Bom dia - respondeu o avô. Será que temos peixe?

O homem fez um gesto enigmático e continuou o seu caminho. José Carpinteiro olhou para o neto e comentou:

-Hoje só temos a companhia do “descalço”.

“Descalço” era uma pessoa estranha àquela pequena comunidade rural, embora nela se integrasse temporariamente. Era caldeireiro de profissão e todos os anos aparecia com as chapas e martelos. Arranjava tachos e panelas, fazia tabuleiros de lata, e depois partia, tão discreto quanto chegara com os seus parcos haveres. Ficava apenas a sua sombra: os pequenos trabalhos, os poucos proventos, a aparente boa disposição, quando ao fim do dia o vinho escorria sem cessar pela sua goela.

Os dois pescadores instalaram-se num pequeno terraço, junto à margem e preparam-se para iniciar a pescaria. José notou que a água estava ludra mas serena. José Carpinteiro carregou os anzóis com minhocas e explicou ao aprendiz de pescador como devia proceder.

-Quando o peixe picar e esticar o fio, puxa logo a cana!

José, tinha esperança que os peixes o ignorassem. Não se sentia nada seguro. Atirou o fio para dentro de água e esperou. Quando a cana estremeceu puxou-a. Agarrado ao anzol vinha um peixe prateado que se contorcia para ganhar a liberdade. José tentou agarrá-lo, mas era escorregadio e viscoso. Soltou-se da sua minúscula mão, procurando freneticamente voltar para casa. E teria voltado, se o avô não o tivesse apanhado com a sua mão forte e sapuda. Era um belo exemplar de barbo, escamas largas e douradas. Brilhava ao sol. O avô pô-lo no velho cesto de cana.

Para o pequenito aquele peixe parecia uma prenda impossível. Era como se tivesse a missão de dar-lhe os parabéns pelos seus onze anos.

O avô voltou a alimentar-lhe o anzol. O moço lançou-o de novo para o pego. Outro peixe picou e a cena repetiu-se… O cesto enchia-se com os reluzentes barbos.

Ao seu lado o avô lamentava-se: - Na minha cana não pica nenhum…

-Deixe lá avô, já apanhámos bastantes.

O “descalço” voltou a passar junto a José Carpinteiro e ao seu neto, com ar cabisbaixo e desiludido, remordendo entre dentes:

- Vou-me embora. Hoje não consigo apanhar nada. Parece que os malditos se zangaram comigo.

-Pois comigo também - respondeu-lhe José Carpinteiro. Só picam na cana do moço. E têm razão. Afinal ele é que faz anos!

Quando a hora do almoço se aproximava, regressaram a casa com o cesto bem atulhado.

A avó Maria juntou uns cavacos e fez uma fogueira nas traseiras da casa. Logo que as labaredas se cansaram de crepitar, o avô pôs os peixes numa grelha de ferro, sobre as brasas. De vez em quando remexia-as, fazendo-as reviver por entre o nada do fogo.

José, seguia a cerimónia com ansiedade. Crescia-lhe a água na boca a pensar no esperado pitéu. Finalmente o avô anunciou:

- Estão prontos. Vamos a eles!

Vá-se lá saber porquê, José não voltou a pescar. Do gosto do peixe já não se lembra, mas guardou na memória aquele dia como o início de um novo tempo na sua vida.