Felisberto foi agricultor e contrabandista do Guadiana. O seu dia começava cedo. Nunca deixava que o sol lhe levassse a palma. Quando este, estremonhado, raiava no horizonte já Felisberto estava, acompanhado da sua fiel burra Narcisa, a emprenhar a terra que havia de parir o pão com que alimentava a familia.
Mas a terra, umas vezes mãe, outras madrasta, nem sempre lhe dava rendimento à medida da sua ambição. Felisberto não se resignava à doce e propagada mediocridade do seu país. À noite quando todos se recolhiam às palhas do colchão, para curar o corpo das mazelas de mais um dia de labuta e retemperar as forças para outro e mais outro sempre igual, Felisberto metamorfoseava-se de contrabandista e com Venício, o seu companheiro de contrabandear e outros pecados, punha o saco às costa e desafiando fronteiras partia para a sua aventura.
Cada nova viagem era uma aventura sempre diferente, sempre desafiadora. Enfrentava os perigos escondidos na noite: o frio, a chuva , o vento. Enfrentava o rio , umas vezes calmo e colaborante, outras turbulento. Enfrentava os adversários directos, os guardiões da ordem, da lei e da grei. Enfrentava o perigo de perder a sua carga e os proventos que ela representava.
Numa dessas viagens caminhou vários dias em território espanhol, dormindo de dia e caminhando protegido pela escuridão. Chegou ao destino, entregou a mercadoria e com o dinheiro recebido, comprou nova mercadoria para vender no seu país.
Iniciou o regresso, de novo dormindo com o dia e caminhando na companhia cúmplice da noite. Quando chegou junto da fronteira sentia-se bem. A missão estava quase cumprida e já pressentia o cheiro da sua terra. Faltava-lhe vencer só mais uma barreira: atravessar o rio frio e caudaloso. Na companhia do seu amigo Venício, começou a fazê-lo como sempre o fazia: nadando sem roupa e puxando um pesado oleado, onde carregava todos os seus haveres. O silêncio era entrecortado pelo chap, chap do seu corpo deslizando na água.
Mas dos rumores aconchegantes do rio ecoou um grito assustador, quase inumano: pára ou disparo... Felisberto ouviu e olhou! E viu em águas espanholas um vulto e a sua voz, gritando berrando...-deixa a carga. O vulto cada vez mais próximo, cada vez mais assustador remava numa lancha que voava sobre eles como uma ave predadora.
-Conho, disse para o Venício, vamos largar os oleados e acelerou as braçadas que o levaram até à margem em segurança. A voz e o vulto esfumaram-se na escuridão.
Um grito contido saiu-lhe da voz embargada:
-Canalha
O canalha , era o Palma o guada-fiscal, que identificou pela voz e que era quase seu vizinho. Nesse dia o canalha não estava sequer no seu posto e no seu serviço. Navegava em águas proibidas, tão ilegal quanto Felisberto. Mas era um homem da lei e um homem da lei não se contesta.
Felisberto percorreuu os cinco quilómetros que separavam a fronteira da sua casa, tendo apenas como vestuário, um chapéu, onde sempre transportava o dinheiro sobrante dos seus negócios.
Elvira, a sua mulher, agastada e triste, dizia: -nem a tua roupa salvaste.
Felisberto, limitou-se a responder - já estou, outra vez, vestido.
Esta estória é real e Felisberto é o meu pai.
Mateus Gonçalves