Regresso à escola ( crónicas do absurdo)
Dezembro 2012. A vida suspensa à espera do fim do mundo. Há que fazer um upgrade (estrangeirismo) antes que tudo acabe e enquanto há tempo. Revisito a infância. Banalidades indignas de relevo. Subo mais uns anos e paro na adolescência. Muitas recordações, apenas nostalgia. Tem que ser um regresso ao real. A ideia começa a ficar clara. Tenho de regressar à escola.
O plano é o seguinte: com a cumplicidade de companheiros de route (mais um estrangeirismo) vou ser matriculado numa turma do terceiro ciclo por uns breves dias. Há, contudo, naturais dificuldades. Primeira dificuldade: por mais que me esforce não sou propriamente teeneger (estrangeirismos perseguem-me); segunda dificuldade: como se justifica a queda numa turma no final do ano. A necessidade desenvolve o engenho e aí lembrei-me da minha menina do salão e beleza. Dito e feito. Sondei-a para um trabalho de renovação facial. Maquilhagem daqui, maquilhagem dali, fui sendo restaurado. E não é que a competência da menina (por mais anos que viva não a esquecerei) me pôs mesmo jovem. O acaso muda o impossível e aí apareceu o circo no povoado. Nem mais, nem menos, estava encontrada a solução para o segundo problema. Ia ser um artista circense e aluno itinerante. Não podia ser mais perfeito.
Depois de esconder o abdómen com a ajuda de uma cinta, lá fui à primeira aula. Nome de guerra Santiago(está na moda) Royal. Fui recebido por cinquenta olhos curiosos na aula de português. Lia-se Camões lírico por entre um burburinho que não trazia das lembranças passadas. Resolvi intervir. Puxei dos galões de "sabichão" de experiência feito. "amor é fogo que arde sem se ver" disse numa voz forte e bem timbrada. Silêncio repentino. Aproveitei a deixa e continuei a perorar sobre o bardo, num registo a puxar a um misto de humor e sentimento. A aula embrenhou-se no mundo camoniano. A setôra entrou no esquema e a aula foi um êxito.
No intervalo fui abordado, naturalmente, com conversas triviais da idade da inocência(?). Uma garota mais atrevida perguntou-me a idade: -quantos anos me dás? interroguei. Olhou-me como a querer advinhar para além da aparência e respondeu: - dou-te dezasseis anos. Dezasseis a multiplicar por nx pensei , já concentrado na aula de matemática. Nada mal. Tinha passado no teste. Passei neste, mas não passei no das equações. Solicitado para ajudar a resolver uma equação de terceiro grau dei com os burrinhos na água. Nunca foi a minha praia. A setôra não me repreendeu e até me ajudou a limpar a folha com a minha situação de itinerância. De mim para mim pensei: este país não é para matemáticos.
Fui-me integrando com a ajuda da minha estirpe circense: uma longa família de artistas de renome, os Royal: um pai trapezista (quem não é nos tempos que correm?) uma mãe equilibrista e eu que já faço, às vezes, uns números de malabarismo.Verdade, verdadinha.(quem não os faz?) Comecei a ter alguma popularidade, sobretudo entre as meninas. Algumas pediram-me e trocámos contactos por SMS. Tudo ia de vento em popa. Ia, até à malfadada aula de educação física. Começou a entornar-se o caldo. Apesar de estar a deitar os bofes pela boca ainda fui disfarçando. Quando a cinta se soltou com o esforço, consegui disfarçar encolhendo a barriga. O pior foi quando comecei a transpirar e a maquilhagem começou a escorrer pela pele flácida, a destapar os papos dos olhos, a pôr a nu a papada caída.Quem te manda sapateiro a quereres tocar rabecão? Valeu-me, in extremis, o toque da campainha. Salvo pelo gong, pensei. Agarrei as últimas forças e fui saindo de fininho. No outro dia parti, com o circo para outra aventura, satisfeito por ter voltado a um sítio onde tinha sido jovem e feliz. E como o mundo não acabou, quem sabe se não adiro à galáxia do SMS e envio uma mensagem às meninas do 7.º C.
MG