Estimada mãe e pai, como é que vão. Por cá vou indo menos mal graças a Deus...
Naquele tempo, naquela aldeia, a camioneta da carreira chegava todos os dias, impreterivelmente, às dez em ponto da manhã. Impreterivelmente às dez em ponto da manhã, o senhor António Sales, cego de um olho, recebia das mãos do motorista o saco do correio.
...por cá a vida continua dura de roer levanto-me cedo para limpar a loja e quando o patrão chega para a abrir está tudo arrumado depois é o dia todo a subir e descer escadas com o cabaz às costas para entregar as mercearias aos fregueses é a sina do marçano...
O senhor António Sales descia a rua poeirenta orientado apenas por um olho,até à sua casa/posto de correio. A sua esposa, a senhora Laura, abria o saco e despejava as cartas em cima de um balcão pintado com as tintas do tempo...
...quando fechamos a porta como depressa o jantar e só quero estender-me no divã que está na arrecadação de tão moído que estou diz-me para voltar se quiser mas para aí para o pé do gado é que eu não volto nem morto...
Em frente ao balcão do improvisado posto dos correios, as mulheres da aldeia, acompanhadas de alguns pirralhos pequenos, aguardavam a distribuição da correspondência. A senhora Laura punha os óculos de aros redondos na ponta do nariz, pegava numa carta com a ternura de quem afaga um filho e lia o nome do destinatário, perante o silêncio religioso das assistentes.
...e as coisas por aí como é que vão a vaca beleza já teve vitelinho e o pai anda melhor do reumático espero bem que sim...
Ti M a r I a C a v A c a lia na sua voz pausada e soletrada a senhora Laura. Ti Maria, rosto magro e enrugado pelos anos de duro labor, pegava no envelope de papel branco e segurava-o junto ao peito mal disfarçando a emoção.
...e a pequena Bia está melhor do catarro e o nosso Tonico está a ir bem na escola olhe ele que se aplique para fugir a essa vida miserável...
Do lado de fora, perto de uma janela sem vidraça, o ti Zé Adriano espreitava discreto. A senhora Laura levantou os olhos do envelope que ia ler e olhou-o por cima dos óculos de aros pequenos: - ó compadre Zé, espera notícias da comadre? Quando é que ela regressa? -Não sei comadre Laura, pois quando vai para casa da filha demora em voltar. Espero que chegue antes do Inverno para me aquecer os pés.
...a mãe se puder mande-me umas laranjas e um pão com gosto a pão para matar as saudades pois o que aqui se faz nem o nosso cão o tragava...
A senhora Laura, terminada a distribuição das cartas, tirava os óculos de aros de tartaruga, arrumava o saco. À tarde havia de ser transportado, pelo senhor Manuel Sales subindo a rua enlameada, só com um olho, até à paragem da camioneta, que havia de chegar no regresso, às seis em ponto da tarde, impreterivelmente.
...eu tenho muita vontade de vos ver mas estou tão longe que não sei quando isso será às vezes uma lágrima quer saltar-me dos olhos mas eu não deixo como prometi tenho de ser um homem...
As mulheres que assistiram à distribuição do correio saem. Algumas satisfeitas com o tesouro que receberam, outras, nem tanto, vão de mãos a abanar. Regressam à labuta diária de arrumar a casa, dar de comer aos bácoros, ver se as galinhas têm ovo, preparar as refeição do homem que já moureja na lavoura. No dia seguinte, hão voltar à sala do correio, impreterivelmente às dez em ponto, porque às vezes chegam cartas...
...por hoje não tenho mais nada para dizer despeço-me com um grande beijo para a Bia e para o Tonico e para voçês queridos pais, um abraço sem tamanho do vosso filho
Alberto
ps desculpem a mancha no papel mas estive a escrever junto ao pote do azeite e não reparei que estava sujo