O homem sem stresse
Era um homem entre milhões. Um anónimo. Um desconhecido. Apenas mais uma peça na grande engrenagem. Vivia em Rio de Mouro. Isso não era relevante. Podia viver em Massarelos ou na Lousã. Levantava-se todos os dias às seis da manhã, quando os pássaros ainda dormiam. Depois de um duche breve, espreitava o quarto onde os filhos dormiam, dava um beijo fugaz na mulher meio ensonada e saia do T1 que um dia havia de ser seu. Entrava no carro de que um dia havia de ser proprietário e atacava destemido o IC17. Isso não era relevante. Também podia ser a circunvalação. Duas horas depois de muitas buzinadelas e dos habituais palavrões chegava ao parque periférico. Empurrões e apertões no metro faziam-no sentir o verdadeiro calor humano. Chegava vivo à seguradora onde trabalhava, às nove horas. Depois de acalmar alguns clientes exaltados, comia à pressa e de pé num fast food uma comida rápida. Às cinco em ponto da tarde regressava.(excepto quando fazia horas para pagar as letras em atraso ou as dívidas do cartão de crédito) Por volta das vinte e uma abria a porta do T1 que um dia havia de ser seu, ainda tempo de dizer um olá aos filhos . Depois de um jantar frugal com a mulher com quem havia de ser proprietário de um T1 em Rio de Mouro (ou Canidelo)caia no sofá, exausto. Pregava os olhos no televisor por breves instantes e relaxava. Tinham sido horas e horas de muito stresse. De quando em vez, prescindia do ritual da televisão e juntava o corpo stressado ao corpo stressado da mulher numa alquimia de libertação. Fumavam um cigarro e relaxavam, porque no dia seguinte tudo ia começar de novo. Dias e dias, anos e anos, até que o T1 e o 120 cavalos fossem seus.
O homem anónimo entre milhões que fazia funcionar a engrenagem, levantou-se às seis e meia. Olhou para o quarto vazio dos filhos e para a mulher que ainda dormia. No rosto sereno vislumbrava ténues sinais de juventude. Alisou os cabelos brancos e ralos e fechou a porta do seu T1. Na estação de Rio de Mouro( ou seria Ermesinde?), entrou no comboio apinhado que o deixou no centro da cidade. Chegou à seguradora e sentou-se na mesma velha cadeira. Às cinco em ponto saiu com um até amanhã. Sentiu um estranho clic na cabeça. Na rua olhou e viu um mundo estranho. Pessoas passavam apressadas acotovelando-se nas esquinas. Caminhou ao acaso no meio daquela gente. Não sabia onde estava, nem quem era, nem para onde tinha de ir. Era como estar no vazio. Mas sentiu-se invadido por repentina calma, uma espécie de nirvana. Continuou a caminhar ao acaso e chegou a uma praça ocupada por uma multidão ululante que agitava bandeiras enquanto olhava para um grande ecrã.
Gooooooooooooooolo ouvia-se na instalação sonora. Golo de Portugal. Bonecos de sombra e luz abraçavam-se no ecrã. A multidão extasiada movimentava-se em ritos tribais. O homem desconhecido entre milhões, sentou-se num banco vazio, sereno e pela primeira vez sem stresse. Não sabia quem era, nem entendia o que se passava. A assistência passava da euforia ao desespero. Milhares de corações aceleravam e desaceleravam. Golo da Dinamarca, um a um, disse a voz trémula da instalação sonora, faltam 3 minutos. Um semelhante anónimo sentado ao lado do homem sem stress, sentiu um aperto no peito. Minuto 90.
Gooooooooooooolo de Portugal. O homem com um aperto no peito caiu redondo e frio no empedrado e já não viu a bola bater na barra da baliza portuguesa no último segundo. Um repórter de televisão fazia perguntas absurdas a espectadores excitados. Um outro repórter, envolvido por grupos de emplastros replicados em êxtase, não se fazia ouvir. A praça começou a ficar vazia. O homem sem stresse continuou sentado. Não sabia para onde ir. Uma carrinha dos voluntários da Boa Vontade parou:
- Mais um, disse um voluntário, como se chama, perguntou?
-O homem que não sabia que tinha um T1 encolheu os ombros. Deram-lhe uma refeição ligeira. Adormeceu.
Acordou com o bulício de passos arrastados. Levantou-se e caminhou sem sentido. Passou pela porta da seguradora. Um trabalhador e colega que ia a entrar chamou:
Teixeira, Teixeeeeira...
Diacho, ia jurar que era o Teixeira, há gente muito parecida. O homem que não sabia que era Teixeira, nem o que estava a fazer, continuou indiferente, sem preocupações, sem angústias, sem rumo definido,
Não era mais um desconhecido entre os milhões que fazem funcionar a engrenagem. Era um homem sem stresse.
MG