Dote da princesa
Quadro pintado por Ticiano (Museu do Prado)
Sou rainha e sou mãe. Hoje nasceu o meu primeiro filho, Filipe, de um casamento feliz com sua Majestade o senhor meu primo, Carlos, rei de Espanha. Foi no dia 6 de Dezembro de 1525 que se realizou nas cortes de Torres Novas o contrato de casamento, por vontade do senhor meu pai, el-rei D. Manuel. O meu amado irmão e rei, D. João, teve de pagar um pesado dote de 900 mil dobras em ouro. Nesse dia, que nunca esquecerei, estive em Torres Novas para assinar o compromisso. Era apenas uma princesa, mas antes de mais uma menina simples e despreocupada. Lembro-me de ter chegado a Torres, depois duma longa viagem numa liteira e de a minha comitiva ser entusiasticamente recebida pelo povo, que me aclamou nas ruas até ao Paço.
Retenho na memória para sempre esse dia, que representa o fim de uma vida sem preocupações. Procurei aproveitar esse momento de liberdade e de comunhão com o meu povo, pois sabia que em breve os deixaria. Ao passar pelas ruas vi as gentes do meu país, que apesar das suas agruras e da sua miséria, estiveram disponíveis para me homenagear. Novos e velhos, rostos enrugados e mãos calejadas, crianças descalças, mendigos, aleijadinhos, todos vieram com orgulho receber a sua princesa.
Os outros, os cortesãos, senhores nobres, os homens bons do concelho, reservaram-se para os festejos no terreiro, onde houve grande festança. Percorri a feira. Provei os deliciosos doces conventuais, os relaxantes licores. Aí folguei até altas horas ao som da música. Bailei como é do meu gosto até me doerem os pés. Sabia que não voltaria a este lugar nem a esta condição. Deixaria de ser a menina princesa para me tornar rainha, esposa e mãe. Uma tarefa bem mais espinhosa.
(das memórias desconhecidas de Isabel de Portugal, Imperatriz do Sacro-Império Romano-Germânico)
PS Estive ausente deste local devido a uma viagem relâmpago ao século XVI onde não havia internet, nem computadores, nem blogues mas também nem Passos, nem Gaspares. Havia alarves, embora fossem menos. Mas, em contrapartida, tive a honra de conhecer uma mulher inteligente, culta e lindíssima, a princesa Isabel de Portugal, que por uns breves dias voltou a Torres Novas, para recordar esse acontecimento que muito para além da aprovação de um dote de casamento, teve repercussões dramáticas na história de Portugal. Por razões na altura impensáveis, foi Filipe I de Espanha, seu filho, o primeiro rei ibérico a unir as duas coroas peninsulares. Mas isso são contas de outro rosário.
Vi a princesa desfilar sorridente por entre uma multidão perdida no tempo. Vi uma princesa de faz de conta e que nunca será rainha. Vi um séquito de figurantes desta e doutras princesas. Vi banquete e festa até às tantas. Esqueci-me da mediocradade dos tempos que correm. Das injustiças, mas principalmente, da falta de visão, de futuro e da esperança como forma de estar. Por entre ciganos, mendigos, artesãos, bufarinheiros, monges, camponeses...comi coiratos qb, bebi canecas de água benta, senti o odor de ervas milagrosas, ouvi jograis. E percebi porque é que esta nação tem oito séculos. E antes de regressar a casa, fiquei convencido que, para além dos poderes transitórios que nos desgovernam, esta nação valente será sempre imortal.
MG

