Auto de danças com cadeiras à portuguesa
Manhã
Aquele sábado amanheceu escuro e chuvoso. Parecia que o céu, com nuvens prenhes como odres, se ia abater sobre a terra seca e faminta de água. Depois de engolir as sopas de café, deixei a casa dos meus avós onde residia por opção e privilégio, para ir ter com o primo Ricardo. Mas a meio do caminho, a nuvem negra desfez-se em água. Nunca tinha visto ou imaginado coisa assim. Até pensei que fosse o princípio do apocalipse, de que a jovem Célia falava, nas sessões de catequese, entre a missa dominical e o namorico com o João Sapateiro. Mas o esgarrão foi tão depressa quanto veio. Escampou, e um sol brilhante, iluminou as paredes caiadas da aldeia. Tive a estranha sensação que esse iria ser um dia diferente, digno de figurar nos registos da memória. Enquanto brincava com o Ricardo, ouviu-se o ronco dum altifalante, que silenciou o som de um riacho acidental. ”De quem eu gosto, nem às paredes confesso…”: Tinha chegado à aldeia o cinema ambulante! Era uma alegria rara. Deitei fora os bocados de lama que segurava nas mãos, esqueci o quotidiano salazarento, as reguadas diárias na escola, o dique em construção. Sabia que nessa noite iria assistir, na praça central, a uma sessão de imagens animadas com os meus avós, indefectíveis cinéfilos.
Tarde
A tarde passava lenta e aborrecida. As horas arrastavam-se no relógio da torre sineira. Na minha ansiedade, a noite tornara-se preguiçosa e demorava a cobrir de escuridão as ruas. Só o altifalante alimentava a minha esperança e distraía o meu espírito com as modas de singela felicidade decretada pelo regime. De quando em vez anunciava a aventura a projectar. “Venham ver as aventuras do Robim dos Bosques” Ao cair da noite, regressei a casa dos avós para um jantar alargado a toda a família. Comemos arroz com massa condimentado com toucinho de porco preto a que o dedo mágico da avó dava um gostinho incomparável. Depois de regalado o estômago o avô disse: -Está na hora de irmos ao cinema. Já pus as cadeiras no melhor lugar da praça. A avó, a mãe, a tia e as primas vestiram as roupas domingueiras, pois quando o cinema descia à aldeia, era dia de festa
Noite
O pequeno gerador que dava luz ao projector fazia-se ouvir entre sussurros da assistência. Lobo Antunes, o projeccionista, remendava a fita que se partira durante a rebobinagem. Robim dos Bosques, o Herói, preparava-se para entrar em acção, com o seu bando de ladrões que só roubava aos ricos. Chegado ao local, o avô verificou que faltava uma cadeira. Descobriu-a longe, encostada a uma parede, debaixo de um altifalante. No seu lugar, outra cadeira igual, suportava o rabo mirrado do Carola, dono de cavalo de cobrição e ferrador da aldeia. O avô, que fervia em pouca água, avançou para o Carola, como besta picada por mosca. - Ó sua grande cavalgadura, porque tirou a minha cadeira desse lugar?! -Não vi cadeira nenhuma. Este lugar estava livre quando cheguei. - Acha-me com cara de parvo, é? A minha cadeira já aí estava, e embora tenha pernas, ainda não anda, retorquiu o avô. Tire daí essa cadeira ou racho-o ao meio! O Robim no seu camarim de celulóide preparava-se para cavalgar pela floresta.”. O Carola continuou colado ao assento, desafiador e confiante na sua razão. Mas por pouco tempo, pois o avô assentou-lhe a mão sapuda no focinho, colando-o ao chão. O Carola mais alto e felino levantou-se tão rápido quanto permite a lei da gravidade, agarrou o avô pelo colarinho da camisa. O João Pequeno, que afinal até é grande e que com o seu bando se prepara para assaltar um solar e levar as economias escondidas no colchão de penas, para matar a fome do povo, está ansioso para sair da pasmaceira da fita. O avô escapou das mãos calejadas do ferrador, e atirou-o contra os espectadores que, envolvidos no reboliço, rebolaram, nas suas cadeiras desengonçadas. Os soldados do xerife continuam serenos à espera que o projeccionista os autorize a atirar Robim para o fosso do castelo. Mariana que assiste à cena de camarote deixará fugir uma lágrima furtiva lubrificando a película. As primas olham espantadas e a sua mãe, mais angustiada que perua na véspera de natal está desolada. Uma prima, perdeu o casaco na confusão e chora baba e ranho, como é próprio da sua idade. A pancadaria pára, finalmente, na plateia e as pessoas procuram acomodar-se nos seus lugares. As lâmpadas fecham as suas íris incandescentes. Lobo Antunes põe a fita em movimento e dá vida às vidas presas. O Carola voltou a acomodar-se no seu lugar, mais amachucado que talega de azeite na prensa. O avô, espumando raiva, assiste à sessão de pé, evaporado numa nuvem de indiferença. As imagens de sombra e luz ganham vida na parede branca. Começam as cavalgadas, espadeiradas, emboscadas, suspiros, castigos, beijos…THE END. A ilusão chegou ao fim. Os espectadores abandonam o local, com as suas cadeiras, sem ilusões perdidas ou renascidas. Entre o burburinho da saída e o barulho do dínamo, o projeccionista rebobina o filme e murmura para o ajudante, fuinha de cigarro apagado ao canto da boca desdentada: -Estes serrenhos são mais selvagens que as personagens das minhas fitas… Usei a cadeira para pôr o altifalante, e olha a confusão que arranjaram! Não volto a esta terra de brigões. O magricela enrolava os últimos fios e estendia no chão duro da calçada a manta onde havia de passar a noite. Robim, confortável no sossego do celulóide,vai finalmente descansar como um irmão ao lado de Mariana. Amanhã é outro dia. FIM
Mateus Gonçalves
(Adaptado para Fábrica de histórias)