04 Mar, 2012
Parêntesis vazio
Há dias em que ficamos tolhidos por uma estranha apatia mental. Olhamos, vemos e ouvimos mas o mundo passa-nos o lado. Sentimos até uma agradável indiferença perante os analfabetos culturais que o governam. Aceitamos passivamente o papel de cifrão que nos atribuem cada vez mais. E ficamos orgulhosos se, nesse papel, damos lucro para aqueles que nos gerem a vida nas colunas de deve e haver. Aceitamos, bovinamente, as patranhas que nos metem na cabeça: é preciso trabalhar, trabalhar, trabalhar. Mas trabalhar porquê? Mas trabalhar para quê? Mas trabalhar para quem? Mas que mundo é este do início do século XXI? O que é feito da dignidade humana? O que é feito de milhares de anos de evolução humanista? Onde fica a igualdade? Para onde as foram as ideias do Iluminismo e da revolução francesa, porra!?
Caminho meio zombie pelas ruas da cidade de Vila Franca de Xira. Percorro a rua Alves Redol, mestre do surrealismo, por entre gente que adivinho tão indiferente e distraída quanto eu. Até arrisco a dizer que a sua principal preocupação são os fait-divers que alimentam os títulos da comunicação social: a novela da licenciatura (ou não) do Sócrates, os processos mediáticos que se eternizam na justiça, as gafes do ministro A ou B, as horas infindas de tempo de antena do mundo da Bola etc. Pão e circo. Seguramente muito mais circo que pão. E a indignação contra a injustiça selvagem onde está, carago!?
Há um pormenor (ou será pormaior?) que chama a minha atenção e desperta, levemente da letargia. Naquela rua (do Alves Redol), porta sim, porta sim , está uma loja chinesa. Vendem calçado, roupa, sapatos, bugigangas, fruta, hortaliça, eletrodomésticos. O que é feito do comércio genuinamente português? Terá emigrado, como bom aluno do piegas que pusemos a governar? (há pois foi). Naquela rua a nacionalidade portuguesa já só existe no museu do neorrealismo, mas quase como um túmulo dourado onde se guardam e veneram memórias, apenas memórias da identidade e da cultura portuguesa. E neste breve despertar pus-me a pensar o que pensaria Redol se regressasse à sua terra outrora com identidades e contrastes, com exploração, mas de luta contra inimigos com rosto.
Não consigo encontrar resposta. Talvez ficasse, também tolhido por esta estranha apatia que grassa como uma epidemia neste mundo surreal, ou quem sabe, talvez o descrevesse com a lucidez das almas iluminadas. Possivelmente, sem se deixar arrastar para um Parêntesis ( nem por ser domingo) vazio.
MG