Flagrante fatal
O sargento Sancho dirigia o aquartelamento através de telefone. A sua residência, propriedade do exército, estava ligada à pequena unidade militar, sob sua jurisdição, por uma linha exclusiva. Esta linha era como um cordão umbilical que o ligava ao dia a dia do quartel. Recebia informações e dava ordens ao seu adjunto furriel miliciano La Mancha. E só em situações especiais se via a sua figura anafada e bonacheirona a passar a porta de armas. Quando isso acontecia, entrava num carocha cinzento, parava junto à secretaria e apeava-se. Via-se então sair a sua grande pança, encimada por um tronco robusto que suportava uma cabeça volumosa preenchida por um rosto apoplexico. Trocava algumas palavras económicas com o furriel, assinava uns papéis e saía tão discreto quanto entrara.
Na casa onde vivia, tinha a companhia da sua doce e fidelíssima esposa. D. Dulcineia tinha tanto de dedicada como de discreta. Era mulher, criada e amante quando dava jeito. Notava-se no seu semblante suave a felicidade dos simples. Apenas o olhar, denotava a espaços, uma estranha angústia pela incapacidade de dar um filho a Sancho marido, patrão e amante quando estava para aí virado.
Tirando umas visitas à sede da unidade militar para despacho com o comandante, o sargento ocupava a maior parte do seu tempo na companhia de Judas Tadeu, construtor civil, um companheiro de muitas boémias, amigo e confidente. Com Tadeu compartilhava até a sua intimidade. E depois de bem etilizado confessava-lhe que além de raramente pôr os pés no local de trabalho, ainda utilizava os soldados para o seu serviço particular a troco de umas licenças mais gordas. Tadeu sabia que foi assim que o sargento construiu uma vivenda na encosta do quartel
Carla Bruna, uma morena de pernas altas e corpo modelado por anos e anos de ginásio, companheira de Judas Tadeu acompanhava-os muitas vezes nas grandes jantaradas e como inspirada cozinheira preparava-lhes de quando em vez deliciosos petiscos
Na noite fatal, os dois companheiros, depois de bem comidos e bem bebidos, deixaram a bela Carla Bruna a arrumar a cozinha e foram tomar café num bar ribeirinho. No regresso, o sargento Sancho estacionou o seu carocha junto ao quartel e disse a Tadeu
-Espera aqui um bocadinho enquanto vou ali à secretaria buscar uns documentos que tenho que levar ao comandante.
Sanchoentrou no aquartelamento por um buraco existente na velha vedação de arame, fundindo-se com a escuridão da noite. Após um tempo de espera que lhe pareceu longo, Tadeu, preocupado, saiu do carro e introduziu-se nas instalações militares pela mesma fenda rasgada na rede. Deu alguns passos um pouco à toa no campo que circundava os edifícios, mas parou de imediato, pois pareceu-lhe ver uns vultos deitados em grande agitação e emitindo estranhos ruídos.
Ao mesmo tempo, a sentinela volante que fazia a ronda de rotina, aproximou-se do mesmo local. Encandeado pela escuridão e embrenhado nos seus pensamentos o vigilante, quase tropeçava nos corpos deitados e ofegantes que no afã de despachar serviço não deram pela sua chegada. Assustado o soldado Marques recuou, carregou a culatra da pistola metralhadora, gritando a plenos pulmões com pronúncia do norte e como que a exorcizar o medo:
-Quem está aí., identifique-se ou disparo!
-Desaparece empata vidas, respondeu uma voz cavernosa e com sotaque beirão, ou dou-te um tiro nos cornos, enquanto procurava desesperadamente a pistola de metal.
A sentinela volante reconheceu imediatamente a voz do sargento Sancho e esfumou-se, com o seu longo nariz, mais depressa do que viera. Tadeu ao ouvir a voz do amigo correu na sua direcção: -Sancho que se passa, disse denotando preocupação e ligando uma lanterna de pilhas. Viu então o sargento a tentar, atabalhoadamente, vestir as calças enroladas junto aos pés ao aperceber-se do embaraço começou a afastar-se, mas o foco de luz escorregou inadvertidamente para a figura deitada a seu lado. Viu então uma dama seminua e um pouco descomposta. Sem ser sua intenção descobriu-lhe no rosto afogueado, um olhar de espanto e receio. O duro construtor fraquejou por um momento que pareceu uma eternidade, sentiu as pernas fugir-lhe para o chão de ervas secas, deixando-o com a sensação de ter perdido toda a capacidade motora.. Ali, meio enroscada com Sancho, estava Carla Bruna a sua bela companheira. Judas Tadeu conseguiu reunir forças no fundo do seu ânimo e com palavras titubeantes disse:
-Se me contassem não acreditava, balbuciou com a voz embargada e que que se foi perdendo na escuridão, “és tu grande cabra.O que está feito está feito mas isto não fica assim, malditos, …”
O coronel Silva Leão, num Volkswagen oficial, passou a porta de armas da sede da unidade às onze da manhã como todos os dias. Primeiro passava sempre por Alvalade para despachar expediente no Clube a que presidia. Ia tão absorto no desaparecimento de um jogador moçambicano de nome Eusébio, que tinha contratado há uma semana, que não se apercebeu da triste e amarrotada figura que o esperava à porta do gabinete. Foi o seu ordenança que o in informou que tinha à espera um paisano, que teimava em falar-lhe com urgência.
- Só me faltava mais esta. Primeiro presumo que o clube rival me roubou o jogador e agora aparece um matarruano a chatear-me a cachola…Mande-o entrar, disse em tom colérico.
Quando entrou no gabinete do comandante, Judas Tadeu, estava tão perturbado que nem reparou no homem fardado de óculos graduados sentado atrás de uma secretária ornamentada com galhardetes militares. Na parede as armas da unidade estavam encimadas pelos dizeres: Artilharia 14, DISCIPLINA HONRA GLÓRIA e mais abaixo outra frase: ESFORÇO DEDICAÇÃO E GLÓRIA EIS O SPORTING. Uma voz fortemente metálica acordou-o da seu ensimesmamento:
- O que pretende senhor…?
-Senhor comandante, venho fazer queixa do sargento Sancho. Manchou a minha honra, usou a minha mulher e destruiu a minha vida. Mas isso agora não interessa nada. O que lhe vim dizer é que essa criatura é um crápula, que se serve da instituição militar em benefício próprio como lhe vou demonstrar.
O coronel Silva Leão ouvi-o com uma paciência pouco usual e quando ele terminou a sua exposição num tom frio e convincente disse:
-Senhor Judas nós vamos analisar a sua queixa e se se confirmarem tais acusações agiremos em conformidade.
-Espero, disse o queixoso, que metam o traste no xilindró e desejo que lá apodreça por inteiro, ele e a sua pistola.
- Fique descansado. Apresente a queixa por escrito na secretaria. Na altura própria contatá-lo-emos.
Depois do Judas ter saído, o coronel pediu ao seu ordenança que convocasse o sargento Sancho com urgência para uma reunião. Uma hora depois, Sancho entrava no gabinete do comandante com o seu ar jovial e bonacheirão. Cumpridas as formalidades militares o coronel disparou à queima roupa:
-Ó Sancho o que é que você andou a fazer com a fêmea dum tal Judas.
- Judas?
-Ó meu caro, não me menospreze que eu já o conheço de outros carnavais. Vá directo ao assunto.
Bem, meu coronel, eu de facto envolvi-me com a senhora de um amigo, mas sabe como é... um homem não é de pau e se até o puro Adão se deixou levar pelas aleivosias da Eva, lixando a humanidade, por que raio eu um simples mortal não havia de pecar.
-Sargento, sargento, meu camarada, deixe-se de filosofias baratas que eu hoje tive um dia difícil. Que partilhe a dama do seu amigo é lá consigo, agora o que não consigo perceber é porque lhe passou informações confidenciais. Emburrou.?
-Bem, comandante o tipo parecia-me tão choninhas, tão otário…
-Pois, mas a mim é que me caiu o menino nos braços. Já não me bastava o rapto do craque moçambicano,possivelmente por aqueles filhos da (som de corneta) da segunda circular e vem agora você a meter-me em mais uma enrascada. Sinceramente só vejo uma saída: parte daqui a uma semana um regimento para a guerra de Angola e o meu amigo vai oferecer-se para partir com ele em comissão voluntária. Ou isso ou cadeia.
-Afirmativo comandante. Compreendo.Vou já entregar o pedido.Com sua licença.
-Sargento, espere…afinal o que aconteceu à mulher do corno!?
-A Sandra Bruna está resguardada na casa da mãe. De qualquer maneira penso levá-la comigo, pois além de me encher as medidas, tem um filho meu na barriga.
Sargento, joga pelo seguro e sempre com tripla. Safa-se da vingança do cornurdo, fica-lhe com a mulher e ainda leva um bónus. Sancho, Sancho tenho que admitir que você é mesmo um traste.
Uma semana depois, envolto numa nuvem de nevoeiro o navio Niassa desatracava do cais de Alcântara rumo a paragens africanas. A silhueta de uma pequena multidão, lavada em lágrimas, estava cada vez mais afastada dos bravos que iam a bordo. A densa neblina não deixou o sargento Sancho ver o lenço agitado pela doce Dulcineia, numa despedida sem retorno, pois ela sabia que ficara viúva para sempre no coração do seu amado Sancho.